Análise: redução de danos no Enem, segundo Bolsonaro
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Análise: redução de danos no Enem, segundo Bolsonaro

Neste fim de semana ocorreram as provas do ENEM mais esvaziado que se tem notícia. Motivos para esse esvaziamento estão em discussão desde que o MEC negou isenção de pagamento de estudantes pobres. 

Salete Rossini
9 min
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Neste fim de semana ocorreram as provas do ENEM mais esvaziado que se tem notícia. Motivos para esse esvaziamento estão em discussão desde que o MEC negou isenção de pagamento de estudantes pobres. 

Como a auto exoneração de 37 servidores do Inep contou com protesto dos mesmos, erguendo faixas e cartazes, o senso comum logo imaginou se tratar de reajuste salarial. Nada disso: cartazes e faixas tinham notas reveladoras de fatos nada a ver com salários.

A auto exoneração com direito a protesto foi transmitida por várias mídias e repercutiu nas redes sociais com intensos debates. E nessa divulgação, um fato revelador: a indiferença dos dois principais chefes em questão, Danilo Dupas (Inep) e o pastor Milton Ribeiro (ministro MEC). Culminada na completa ausência de diálogo com os servidores para buscar contorno do problema.

O motivo descrito nos cartazes e faixas era a suspeita de interferência do governo na elaboração das provas, envolvendo alguns fatos e personagens bastante reveladores desse mau comportamento político.        E tudo explodiu logo após Ribeiro e seu chefe Bolsonaro, em visita no Espírito Santo, anunciarem que "agora o Enem vai ter a cara do governo".

ENEM

História- O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) foi criado em 1998, no fim do primeiro governo Fernando Henrique Cardoso. Segundo o MEC na época, a finalidade do ENEM era a avaliação institucional das escolas das redes pública e privada de todo o pais reconhecidas no MEC que tenham o Ensino Médio, a partir do aprendizado e conhecimentos dos alunos concluintes.

Em 2005, o Enem assumiu nova cara, em decorrência da sua nova finalidade: servir de vestibular, porta dos educandos para a universidade, respeitando as pontuações mínimas de aprovação por cada curso.

Há também o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), criado após o Enem com a finalidade avaliativa, só que voltada para concluintes de graduação de universidades públicas e privadas reconhecidas pelo MEC (seus cursos idem).

Elaboração- As provas do Enem são elaboradas por servidores graduados ou pós-graduados, e as do Enade pelos pós-graduados latu sensu (especialização) ou strictu sensu (mestrado, doutorado), numa sala secreta do Instituto Nacional de Educação e Pesquisa (Inep), órgão do MEC.

Embora o acesso a essa sala seja vetado a qualquer outra pessoa, exceto os elaboradores, se sabe que o recinto é, na verdade, um laboratório com computadores sem internet, um por pessoa, com uma interface1 instalada para montagem das provas. A sala tem câmeras por todo lado, sem ponto cego.

Antes de entrar na sala, os elaboradores passam por detecção de metais, pois não pode entrar com metal, daí irem sem celulares e adornos. Visando evitar repetição de questão pretérita e formulações confusas, eles verificam tudo minuciosamente. Tudo é feito com muita antecedência.

Todos os anos, as provas do Enem são elaboradas com 180 questões retiradas do Banco Nacional de itens com milhares de questões redigidas por professores escolhidos por edital. A equipe do Inep escolhe por nível de dificuldade adequado a cada período. 

As provas finalizadas e impressas são depois lacradas em embalagens próprias, que são abertas pelos alunos só quando dada a largada. O acesso público às provas e gabarito ocorre no dia seguinte à finalização completa do exame.

Fraudes 

Embora a segurança seja preocupação máxima, infelizmente o trabalho não é totalmente imune a fraudes. Já foram reportados casos, como vazamento antecipado de questão e/ou gabarito, geralmente atribuído a perfis hackers - que podem estar dentro ou fora do Inep. 

Diferentemente da formulação confusa ou questão repetida, de caráter acidental à primeira vista e passíveis de anulação simples durante a aplicação da prova, o vazamento antecipado é tipificado como crime, no caso um estelionato de natureza cibernética.

O que espanta nisso é o fato de a sala de elaboração ser vetada para internet. Daí, frequentemente recair suspeita, primeiramente, sobre os próprios elaboradores das provas, o que, em caso comprovado, configura crime contra a administração pública. Bem... até chegar o Enem de 2021.

Interferência do governo- Estudantes ouvidos por El País relataram desorganização no Enem 2021. O que se delineia, pelo visto, desde 2019. No Rio, houve protestos de estudantes impedidos de entrar no primeiro dia de prova. 

Desorganização em si não é crime, porém dá espaço para descalabros como a interferência política, que se escancara, muitas vezes, como especialidade do governo atual.

O Enem 2021 não é o primeiro a sofrer com a interferência do governo Bolsonaro. Em 2020, o descabeçado ex-MEC Abraham Weintraub tentou impedir o tema Pajubá, referente ao dialeto dos transgêneros, sem sucesso. O tema seguiu no exame, já menos procurado do que o anterior.

Agora, a interferência política se saiu mais organizada do que o Enem, através de relatos de parte dos 37 servidores não identificados, por meio de entrevista concedida ao G1-Globo e que foi parar no televisivo dominical Fantástico no último dia 21, com certa riqueza de detalhes.

Pressão- os elaboradores revelaram ter passado por intensa pressão da alta chefia por conta dos conteúdos das áreas de Humanas (Língua Portuguesa, Filosofia, História, Sociologia). A pressão vinha por assédio moral contínuo de tom ameaçador, redundando em um trabalho extra e intenso dos profissionais, sujeitos a afetação da sua saúde mental.

PF na sala segura durante elaboração- se a sala é inacessível às demais categorias de servidores, ainda mais durante a elaboração, a presença de um agente da PF foi afrontosa duas vezes, pela irregularidade da sua presença e também por atuar de forma a intimidar os profissionais.

"Grande erro é achar que você pode simplesmente pegar uma prova e sair riscando itens que você não gosta do conteúdo deles", relata um servidor. Outro aponta: "o corpo técnico e pedagógico se vê obrigado a refazer a prova duas vezes", revelando a pressão traduzida por trabalho extra.

Outro servidor disse que o PF passou pelo rito de segurança e entrou na sala, e cobra: "o Inep precisa explicar como essa pessoa foi parar lá dentro, quem autorizou a entrada, o que ele fez, que nível de controle a gente tem das informações que ele acessou lá". Essa pressão se ligaria a um outro problema, que foi relatado com mais detalhes.

Censura- servidores relatam censura às questões, quando foram vistas pelo diretor de avaliação em educação básica Anderson Oliveira: "Esse dirigente [...] foi até o ambiente seguro, fez a leitura [...] e solicitou a exclusão de mais de duas dúzias de questões dessa primeira versão da prova". 

Segundo o servidor, as questões excluídas se referiam ao contexto sociopolítico e socioeconômico do Brasil: "se tratavam principalmente da História recente, dos últimos 50 anos. No ponto de vista da equipe técnica, não havia qualquer reparo pedagógico a ser feito na primeira versão da prova".

Devido a essa censura, os servidores se viram obrigados à segunda versão da prova, contestando a baixa da qualidade e do nível de dificuldade resultante da exclusão daquelas questões. "Isso foi objeto de se fazer uma terceira versão da prova", contou o servidor, que completou que algumas das questões retiradas voltaram reformuladas.

Outro alvo de veto relatado pelos servidores foi um poema de Manoel de Barros, em sua obra O livro das Ignorãças, acusado de contradizer a Bíblia. Manoel escreveu: "No descomeço era o verbo", opondo-se à passagem bíblica "No princípio era o Verbo, e o Verbo está com Deus" (João 1:1-4). Segundo os censores, "fere o sentimento religioso e a liberdade de crença". Oi?

Dupas- servidores apontam que o Inep sempre foi dirigido por nomes com trajetória acadêmica, não vista em Dupas, "uma pessoa sem experiência, sem currículo", escolhida pelo ministro por "estar disposto a fazer o que eles queriam: entrar na prova e retirar o que o presidente não iria gostar", detalha um deles, se referindo ao presidente Jair Bolsonaro.       

Um dos entrevistados disse que, apesar de toda pressão, "a prova atendeu aos objetivos" do Enem. Nesse ponto, podemos dizer, foi graças à reinclusão daquelas questões após reformulação.

TCU- Os relatos detalhados dos servidores foram suficientes para que o Tribunal de Contas da União (TCU) fosse acionado para investigar se houve interferência do governo na elaboração das provas.

Críticas em paralelo e reflexões finais

O fato de um servidor ter dito que a prova "cumpriu o seu papel" não evitou críticas de partícipes do exame e internautas. Alguns alunos o consideraram "extenso e cansativo", outros notaram questões "bem difíceis". Outros relataram não ter visto interferência política nas provas - talvez só dessem conta ao ver noticiosos na internet.       

Entre os internautas nas redes sociais houve críticas bem humoradas em algumas questões, como a da letra da música Admirável gado novo, de Zé Ramalho, em alusão aos bolsominions, chamados de "gado" pela patuleia crítica ou oposta ao governo. Uma nota crítica talvez despercebida pelos censores.

Outro alvo de fortes críticas nas redes sociais foi o tema da redação, Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania. Alguns o consideraram impróprio para o Enem, outros o viram como contradição à política de extermínio por retirada de direitos, negação à comida e saúde, e espalhe da C19.

Em relação à C19, houve quem relacionasse uma analogia entre muitos dos nascidos sem registro e as muitas subnotificações que, por baixo do tapete, engrossam a mortífera estatística oficial de mais de 610 mil mortes desde o seu início da pandemia.

 Vale ressaltar o caráter contraditório da justificativa de que a supramencionada citação de Manoel de Barros "fere a liberdade religiosa". Se a Bíblia é livro sagrado só dos cristãos, as crenças não cristãs são prontamente excluídas, e aí se revela o cristofascismo bolsonarista. E até onde sabemos, não existe governo teocrático pela liberdade de crença e culto.

 Por fim, no reino excludente da era bolsonarista, muitos estudantes foram impedidos de fazer suas provas, além de não terem conseguido o direito à isenção por baixa renda. E, para os partícipes, sem nenhuma culpa nisso, resta-nos desejar boa sorte, e a esperança de mudar essa triste realidade.

E quanto à redução de danos proposta pelo governo, quem realmente os reduziu foram os elaboradores do exame, através de, como já supramencionado, reinclusão daquelas questões censuradas.

Referências

- BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), 1998. Disponível em http://portal.mec.gov.br/enem-sp-2094708791. 

 - https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/avaliacao-e-exames-educacionais/enade 

- https://brasil.elpais.com/brasil/2021-11-17/apos-bolsonaro-sugerir-interferencia-no-enem-governo-entra-no-modo-reducao-de-danos.html?sma=newsletter_brasil_diaria20211118

- https://www.agazeta.com.br/es/politica/enem-vai-ter-a-cara-do-governo-sim-diz-ministro-da-educacao-em-visita-ao-es-1121

- https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2021/11/14/exclusivo-servidores-do-inep-detalham-interferencia-no-conteudo-das-provas-do-enem.ghtml

- https://www.conjur.com.br/2021-nov-19/tcu-abre-investigacoes-interferencias-governo-enem

- https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/11/19/tcu-abre-procedimento-para-apurar-se-houve-interferencia-em-orgao-que-elabora-enem.ghtml

- https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59327095 (Enem com a cara do governo e mais elitizado)

- https://educacao.uol.com.br/noticias/agencia-estado/2021/11/21/prova-do-enem-no-rio-tem-protesto-contra-interferencia-do-governo-no-exame.htm

- https://www.campograndenews.com.br/lado-b/comportamento-23-08-2011-08/poeta-manoel-de-barros-foi-vetado-do-enem-por-contrariar-trecho-da-biblia