A Iacanga que nos cabe...
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A Iacanga que nos cabe...

Iacanga, palavra bonita. João Gilberto tocou em Iacanga, quem diria!

Randall Neto
4 min
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Iacanga, palavra bonita. João Gilberto tocou em Iacanga, quem diria!

No Festival de Águas Claras, em 83.

Festival de Águas Claras é a cara da minha mãe.

Ela ia. Ou foi. Não sei em quantos, mas foi em mais de um.

1975, recém separada, foi lá.

E quando esteve aqui logo depois da minha separação definitiva, contou isso e recomendou que eu fizesse algo semelhante...

Eu acho que pra seguir o conselho dela eu precisaria ter algumas coisas como: um De Lorean, um anel verde que cria coisas que eu imagino, uma grana guardada, mais desprendimento com relação a filhos, emprego, etc...

Mas tá aí, falar pra alguém que recém separou ir pra Iacanga em 1975 é um puta conselho.

Acontece que o que eu sabia do “Festival de Águas Claras” era mais ou menos o que eu sabia do “verão da lata”, eu conhecia gente que tinha participado ativamente do “evento”.

E só.

Mas gracas a um “Qual é a Boa” do Braincast, caí no documentário sensacional “O Barato de Iacanga”, disponível na Netflix.

Já chego no João Gilberto... mas o documentário todo é de um astral maravilhoso! A Seleção musical e o astral de todo mundo!

Erasmo Carlos exige duas limusines, mas só dá pra chegar na caçamba de um caminhão e ele vai, amarradão.

Egberto Gismonti, Luiz Gonzaga, todo mundo... eu fico imaginando como que a gente foi de algo como aquilo para gente que joga garrafa na cabeça de um artista...

Eu sei que o perigo do anacronismo e saudosismo podem prejudicar muito a análise, mas...

Bom, o João Gilberto tocou lá, em 83. O empresário dele disse que foi complicado porque o João tava preocupado com o violão dele, o violão era friorento e não gostava de passar frio... e teve o lance de ir de carro. Ou melhor... dirigindo. João Gilberto não dirigia. Mas queria ir dirigindo. Queria ouvir o barulho do motor, na cidade não dá pra ouvir o barulho do motor... arrumar o carro era tranquilo, mas quem iria junto? Parece que foi emocionante, pra dizer o mínimo.

João foi e Fechou o festival. Literalmente. Duas coisas chamaram atenção:

Ele senta pra tocar... dá uma puta microfonia. Claro! Palco numa fazenda, ambiente aberto, duzentos shows em 3 dias... ele fechou a cara, olhou pro dono do festival e ele disse que foi tomado pelo pânico... e a única coisa que pôde dizer foi:

“Ô João, toca... toca aí, vai...”

Disse que o João abriu um sorriso largo! E tocou.

E tocou... tocou por muito tempo! Pediram pra voltar e fazer um bis...

A cena no documentário é maravilhosa! João tocando, aquele silêncio absurdo, só o violão dele e o sol nascendo! João tocou até o sol nascer!

O que me lembra a abertura do livro do Barcinski... Jards Macalé tava mal, depressivo, querendo se matar, ligou pra todos os amigos pra ouvir a voz deles pela última vez. Deixou por último o João Gilberto, que o chamou no apartamento dele, à tardezinha.

“Oi Macala, deita ali, vou tocar pra você...”

João foi pra janela e começou a tocar uma música do Ary Barroso e Lamartine Babo. Jards dormiu e quando acordou, o João tava fazendo um café pra ele...

“O sol entrava pela janela do apartamento e toda a tristeza tinha desaparecido de mim. Foi uma coisa profundamente humana o que o João fez. Ele percebeu que eu estava numa pior e usou o que tinha à mão, a música, pra me ajudar”.

Acho lindo. E só não me surpreende porque num teatro, em Goiânia, desisti de ser ateu em novembro de 95, vendo o João Gilberto tocar.

Eu era ateu muito mais por folia do que convicção... ser ateu, budista, vegano, meio de esquerda, torcedor do América, usar chapéu Panamá e ter um MacBook parecem deixar o cara cool por si só...

Mas o João Gilberto me pareceu um argumento forte o suficiente para procurar Deus.

Às vezes a tristeza vai embora. É assim mesmo! Pode parecer “do nada”, pode parecer que é a abertura de um portal, pode ser um beijo numa noite de chuva ou uma gota de Floral trazido pela sua mãe.

Às vezes a gente sai procurando Deus e recupera a vontade de viver e reconhece a alegria aqui e ali.

João Gilberto significa um pouco disso pra mim.

Isso que os olhos já não podem ver e coisas que só o coração pode entender... esse tipo de coisa FUNDAMENTAL...