PunkYoga #56: Master of Puppets
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PunkYoga #56: Master of Puppets

Nathan Fernandes
9 min
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Prefácio fácil

Um amigo veio em casa e me deu uns cogumelos que já estavam guardados há muito tempo. Achei muito gentil da parte dele saber como agradar um psiconauta. Mas eu sabia que, por serem velhos, eles poderiam já ter perdido qualquer possibilidade de ainda serem psicodélicos. Quem sabe eu poderia fazer um omelete?

Ainda assim, aproveitei um dia que tava sozinho em casa, e resolvi testar. Sem nenhuma esperança de que pudesse sentir qualquer coisa. Mesmo assim, montei meu altar, acendi minha vela, pedi minhas proteções e abri um mini ritual solitário.

Depois de pouco tempo, eu já tava me sentindo um astronauta, com as paredes do foguete estremecendo, prestes a decolar. Alguns minutos depois, o foguete partiu. Os cogumelos não estavam tão velhos assim, afinal.

Vendo que iria mesmo para o espaço, coloquei na hora o Hinário da Lua, da Porta do Sol, uma coleção de músicas de rimas simples e intensas que são um excelente guia para qualquer experiência psicodélica.

A reflexão que você vai ler a seguir aconteceu sob essa circunstância.

Capítulo 1

Eu comecei a questionar Deus por causa das aulas de história do ensino médio. Digamos que aprender sobre as Cruzadas não foi bom para minha fé católica, que já era tão frágil quanto minha heterossexualidade na época. Mas, esses dias, me lembrei que muito antes disso eu já questionava Deus.

Eu ainda devia ter uns 10 anos quando comecei a me perguntar por que eu precisava rezar sentado no pé da cama, como tinha aprendido nas aulas de catecismo. Eu tava morrendo de sono, ou apenas sem saco, e tinha que estar desperto o suficiente pra rezar um Pai Nosso, uma Ave Maria, um Salve Rainha e a oração do Anjinho da Guarda. É óbio que eu rezava que nem o meu cu. Eu só era uma criança com sono. E já ia dormir sentindo culpa.

Nem sei por que fui lembrar dessas coisas, mas foi depois que eu participei de um feitio de rapé. Pra fazer esse composto usado por várias culturas indígenas, é preciso queimar a casca de árvores como a Samaúma ou o Pau Pereira, misturar com tabaco seco, e macetar em um pilão do tamanho de uma criança até tudo virar pó. Mas pra tudo virar pó você tem que macetar muito.

Então eu tava lá no meio desse processo, macetando o pó por horas (na verdade, eram minutos que pareciam horas), meus braços já não aguentavam mais e eu tava só querendo que um ovni estacionasse em cima da minha cabeça e me salvasse, quando um amigo chegou e perguntou "posso te ensinar como faz?".

Ele pegou o pilador firmemente com as duas mãos e começou a sincronizar as batidas do pilador com as batidas da música que tocava. "A firmeza e a intenção que você coloca no feitio ajudam a determinar a qualidade do rapé", ele me disse. E eu fiquei constrangidíssimo por ele ter me visto macentando uma planta sagrada como se tivesse dedos de salsicha.

E aí, quando comecei a macetar do jeito que ele me ensinou — com ritmo, firmeza e cadência — eu entrei em transe. Assim como as repetições dos mantras colocam o nosso cérebro em um estado de consciência fora do comum, eu comecei a sentir que estava completamente integrado ao pilão, ao pilador, ao pó, aos sopros que eu daria com aquele rapé feito por mim mesmo e ao cosmos.

Ali, macetando, comecei a lembrar de todas as vezes que fiz coisas absolutamente sem vontade esperando resultados extraordinários. Me fez pensar que o nível de dedicação e atenção que coloco em todas as minhas atividades no presente dá uma pista do que posso receber no futuro.

Capítulo 2

Foram dias refletindo sobre isso, até que, navegando nas ondas da web, apareceu um anúncio de um curso de música dado pelo Metallica. O anúncio dizia que os integrantes da banda ensinariam os interessados a tocar os seus riffs mais difíceis. E, mostrando que eles entendiam de marketing digital, o vocalista James Hetfield apareceu dando uma amostra prática do que os alunos podiam esperar das aulas.

No vídeo, ele dizia alguma coisa do tipo "você pode até saber onde posicionar os dedos na guitarra e quais notas tocar, mas nunca vai ser um riff do Metallica se você não tocar com firmeza". E, ao mostrar o que era tocar com firmeza, ele se colocou numa postura diferente, como um guerreiro com sangue nos olhos. A partir daí, ele poderia tocar Waka Waka da Shakira que soaria heavy metal.

Achei isso muito foda, e fiquei brisando sobre como a postura com a qual encaramos os problemas diários é determinante pra forma como vamos encontrar uma solução. A ideia de assumir uma postura firme, mesmo que você não esteja em condições nenhuma de fazer isso, é o primeiro passo pra acreditar que você é firme de verdade.

Todas as vezes que fiz isso, me surpreendi com a solidez, o equilíbrio e a segurança que tavam dentro de mim.

Não descarto a possibilidade de que, muitas vezes, podemos estar, de fato, estrupiados, cagados, maldafados, sem a possibilidade de mexer um dedo. É claro que existem essas situações. Mas, em tantas outras vezes, essa sensação de insegurança é só a lei da inércia agindo. Ao invocar uma outra energia de ação, a nossa mente obedece.

Afinal, se podemos condicionar a nossa mente a acreditar que somos uns desgraçados, também podemos condicioná-la a acreditar que somos um sucesso.

Capítulo 3

Uma vez, tomei um LSD tão forte que comecei a passar mal — esse tipo de coisa não é novidade pra quem me lê faz tempo. Eu tava num bar, não tinha noção nenhuma da potência do ácido, fui completamente irresponsável e comecei a achar que ia morrer ali no meio da calçada & que meus amigos teriam que lidar com meu corpo desfalecido ao chão. Então, meu amor Felipe chegou, me tirou dali e me levou para dar uma volta com ele.

— O que você tá sentido? — Ele me perguntou.

— Eu tô com o coração acelerado, acho que vou ter um enfarte — eu disse, me esquecendo do que era uma bad trip.

— Mas você tá andando, tá falando, você tá normal...

— Nossa! É mesmo! — lembrei, já recuperando o viço.

Quando voltei pro bar, ainda tava completamente em outra dimensão, mas não estava mais passando mal. Simpesmente fiz o que todas as pessoas devem fazer quando enfrentam uma bad de qualquer psicodélico: relaxar e aproveitar, já que o efeito não vai embora só porque você quer, querida.

Sempre que eu lembro desse episódio eu fico asustado com a constatação de que a mente é uma ferramenta poderosa. Naquela situação, entendi que, ao me entregar ao sofrimento, era essa a força que eu tava "invocando". Quando mudei minha perspectiva mental, minha realidade se transformou na minha frente. E isso acontece na vida também.

Não tô falando com isso que dores humanas não são reais, coisas como a fome e o sofrimento psíquico existem, o que eu quero dizer é que alguns sofrimentos acontecem "apenas" dentro da nossa cabeça. E, considerando que eles assumem a forma do nosso pensamento, nós podemos mudar o pensamento de forma.

Afinal, se podemos condicionar a nossa mente a acreditar que somos uns desgraçados, também podemos condicioná-la a acreditar que somos um sucesso.

Capítulo 4

Lá na infância, quando eu comecei a questionar a necessidade de rezar sentado, me convenci de que se Deus era onipresente, onisciente e onipotente, então ele poderia ouvir minhas preces em qualquer posição, logo, eu poderia rezar deitado. Então, comecei a rezar com a cabeça no travesseiro prontíssimo pra dormir. E é claro que, muitas vezes, eu acabava dormindo antes do amém.

Eu não tava na posição certa pra rezar. Eu não tava na posição certa pra pedir nada pra ninguém, muito menos pra Deus.

Mas a real é que pouco importava a posição que eu rezava, porque eu já não acreditava na reza. Eu orava absolutamente sem vontade esperando um resultado extraordinário. O nível de dedicação que eu colocava naquela prática dava uma pista do que eu receberia no futuro: um grande vai tomar no cu com a voz do Cid Moreira.

Ainda bem que, com o tempo, percebi que, ao contrário do que eu pensava, Deus existe, sim. Não como um cosplay de Gandalf. Mas como uma força que tá presente em uma macetada de rapé, em um riff do Metallica ou em qualquer lugar pra onde a gente direcione a nossa atenção genuína.

O fim.


Posfácio difícil

Se você chegou até aqui é porque, proavelmente, nossos caminhos se cruzaram de alguma forma. Obrigado por esse encontro.

Essa newsletter é uma versão bem editada de mim mesmo, por isso não gosto de escrevê-la correndo ou de qualquer jeito. Eu sempre tento dedicar o máximo de atenção e energia a isso aqui, porque acredito que essa é a melhor forma de mostrar pro mundo que eu não vou sucumbir.

Se deixar, a gente só trabalha pros outros, paga os boletos e vive o resto dos dias infeliz e cansado demais pra fazer qualquer coisa. Tenho me recusado a isso, mas é claro que essa posição demanda um esforço gigantesco. Seria muito mais fácil ficar deitado vendo Netflix, o que eu também adoro fazer.

Na grande maioria das vezes, eu falho: o cansaço e o capitalismo vencem. Mas eu tô sempre me vigiando pra não deixar que eles vençam demais. Not today, Satan! A conclusão de mais uma edição da PunkYoga mostra que, dessa vez, quem venceu foi eu. Por isso fico muito feliz quando consigo escrever alguma coisa que preste e clico no botão de enviar.

E isso aqui é tudo feito de forma independente, então se você curtiu, se acha que te fez refletir de alguma forma, manda pra algum amigo, e me ajude a derrotar a grande ordem mundial.

Qualquer coisa, tô lá no meu insta pessoal ou no insta da PunkYoga. Me escreve. Eu adoro trocar ideias.

Vai pela sombra e fica na paz de Bowie.

Com amor,

Nathan

Se você chegou aqui através de um link, deve tá pensando: "Como eu assino essa newsletter maneira?". Ora, é só deixar seu e-mail aqui. E dá pra ler as edições anteriores aqui também. Se não curtiu e tá aqui lendo esta última linha, admiro sua capacidade de autoflagelação.