Admiro a capacidade que o Bolsonaro tem de desalinhar os chakras dos brasileiros. Tento me blindar das declarações doentes do presidente, e, na medida do possível, busco fazer desta newsletter um lugar livre das bad vibes que ele emana — acho...
"Tudo o que nós vemos é uma sombra projetada por aquilo que não podemos ver" | ||
Admiro a capacidade que o Bolsonaro tem de desalinhar os chakras dos brasileiros. Tento me blindar das declarações doentes do presidente, e, na medida do possível, busco fazer desta newsletter um lugar livre das bad vibes que ele emana — acho que nunca escrevi sobre ele aqui — mas o chorume que sai daquela boca frouxa sempre encontra uma fresta nas rachaduras da nossa alma e, quando a gente vê, já tá contaminado. | ||
Queria ser evoluído o suficiente pra não me abalar, mas essa é uma tarefa praticamente impossível quando a gente se depara com declarações como essa que ele deu em uma live, sobre o tal Conselho da Amazônia: | ||
"Com toda a certeza, o índio mudou. Está evoluindo. Cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós. Então, fazer com que o índio cada vez mais se integre à sociedade e seja realmente dono da sua terra indígena. É isso que nós queremos aqui." | ||
Se fosse só merda verbal, tava tudo bem, mas ele age diretamente pra acabar com a autonomia dos povos nativos, tipo querendo insistir na regulamentação da agricultura e da pecuária em terras demarcadas, como se os indígenas fossem se beneficiar disso (e não ele). | ||
O pior é que isso abre espaço pra outros energúmenos se acharem no direito de tratar os indígenas como bichos. Segundo a Pastoral da Terra, o ano de 2019 bateu recorde de morte de lideranças indígenas. Foram 7 mortes em 2019, contra 2 em 2018. É o maior número em 11 anos. | ||
Esse tipo de declaração do "líder da nação" mostra claramente que a gente tá sendo governado por uma pessoa que tem o pensamento atrasado em, pelo menos, 500 anos. | ||
Se ele não fosse tão obcecado pelo poder, poderia tirar uns minutos pra aprender com essas várias culturas que dispõe de cosmovisões e tecnologias que andam em harmonia com a natureza. Mas, pra ele, a natureza é só um negócio. | ||
Eu poderia falar, por exemplo, da importância da ayahuasca para a evolução dos estudos de transtornos mentais, área que o Brasil é referência, com pesquisas de ponta. Mas esse é um tema recorrente aqui (dá uma lida nas outras edições), e saúde mental visivelmente não é um tema de interesse de um governo que abriga nazistas e fanáticos religiosos. | ||
Então queria falar da diferença de percepção sobre o que é a terra para pessoas bem instruídas e para pessoas como o Bolsonaro, já que essa parece ser a fixação dele. | ||
Numa das suas colunas para o jornal Valor Econômico, o sociólogo José de Souza Martins, professor da USP, escreveu uma coisa bem interessante: | ||
"A concepção de utilidade perfilhada pelo presidente e por seu governo é a da posse meramente lucrativa. Uma concepção antropologicamente equivocada. A terra dos índios é para usar. A terra da concepção do presidente e de quem pensa como ele é para consumir. A pátria que sobrar dessa orientação política, para todos nós, será uma pátria gasta." | ||
Ele continua: | ||
Para os índios, seus territórios são revestidos de sacralidade, são plurifuncionais, terra de devoção, de indústria extrativa, de agricultura, farmácia, tudo ao mesmo tempo, mediação de seres humanos integrais. | ||
É óbvio que se a gente não mudar o rumo, o pensamento bolsonarista ainda vai conduzir todo mundo a um abismo mais fundo do que o buraco que ele tem na alma. | ||
Essa fala do professor me lembrou do que a Sônia Guajajara disse no seminários de cosmologias que eu fui no ano passado. | ||
"Muita gente compra um terreno como investimento e vende pra sair do aperto. Não tem relação nenhuma com a terra. Nós não. Pra gente, a nossa terra é a nossa casa, a nossa mãe. E mãe não se negocia." | ||
Mostra por que os indígenas não desistem de lutar pelas suas terras tão facilmente, e por que nós também não deveríamos. | ||
O professor José de Souza termina a coluna com uma citação que me marcou bastante: | ||
A antropóloga Aracy Lopes da Silva, estudiosa da nação xavante, em cuja aldeia viveu e cuja língua falava, constatou que os índios tiveram dificuldade para classificar brancos que disseminaram entre eles doenças contagiosas e mortais. Deram-lhes roupas propositalmente contaminadas com varíola, desencadeando numerosas mortes. Eram gente ou eram bichos? Acabaram concluindo que os brancos não são humanos e os situaram entre as onças, o animal que mata por matar. | ||
Às vezes, me sinto injustiçado por ter sido privado a minha vida inteira dos conhecimentos ancestrais dos povos nativos (assim como os dos africanos e dos orientais). É como se a nossa vida inteira a gente tivesse sofrido uma lavagem cerebral pra considerar o padrão ocidental como o mais evoluído, o mais digno, o mais bonito... | ||
Não que não tenha o seu valor, óbvio que tem!, mas a gente sabe muito bem onde toda essa valorização desequilibrada dos conhecimentos brancos ocidentais nos levou. E agora a gente tá ameaçado por gente que nem conhecimento tem; e cujo único interesse é engordar o bolso. | ||
Toda vez que morre uma liderança indígena, morre também uma oportunidade que temos de aprender a nos conectar com a gente mesmo. Enquanto existirem bichos no poder, nossas vidas e nossa capacidade de transcendência não estão seguras. | ||
Não costumo falar muito de política aqui, porque eu já faço isso em outros lugares, como nesses textos que eu faço pro Yahoo. | ||
Mas política e espiritualidade me parecem temas cada vez mais indissociáveis. Como disse a Mel Bevacqua, a @sagradatravesti, nessa matéria linda sobre bruxaria que eu fiz pro UOL com minha amiga Julinha: "Política e espiritualidade caminham juntas desde sempre, ignorar isso é deixar o poder nas mãos de quem sempre o deteve. Tudo que é humano é político." | ||
É isso! | ||
Um abraço do tamanho da Via Láctea pras pessoas que assinaram a news nessas últimas semanas, é bonito ver esse pequeno universo que eu tô criando em expansão. | ||
Como vocês sabem, o papo continua lá pelo Instagram ou pelo Twitter. Se quiser também, é só me responder esse e-mail. Adoro conversar e juro que não mordo. | ||
Vai pela sombra e fica na paz de Bowie. | ||
Com amor, | ||
Nathan | ||
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