PunkYoga #26: A mente como campo de guerra
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PunkYoga #26: A mente como campo de guerra

Uma vez, durante um trabalho com ayahuasca, um amigo leu o capítulo nove do livro Viagem a Ixtlan, do Castañeda, chamado "A grande batalha", que fala sobre essa nossa busca eterna por equilíbrio.

Nathan Fernandes
9 min
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"Os homens precisam da ilusão do amor da mesma forma como precisam da ilusão de Deus. Da ilusão do amor, para não afundarem no posso horrível da solidão absoluta; da ilusão de Deus, para não se perderem no caos da desordem sem nexo"

Uma vez, durante um trabalho com ayahuasca, um amigo leu o capítulo nove do livro Viagem a Ixtlan, do Castañeda, chamado "A grande batalha", que fala sobre essa nossa busca eterna por equilíbrio.

Nasceu ali o argumento de um conto, que eu desenvolvi e compartilho agora com vocês.


Kali, a comandante do exército vermelho sangue, beijava os lábios da cabeça decepada, que ela segurava pelos cabelos. Passando a língua na parte que ia do queixo até a ponta do nariz, a militar de pele azul ergueu o crânio a sua direita e bradou ao exército de dez mil mulheres que a acompanhava:

— É por ali. — forçando todas a rumar para leste, e jogando a cabeça do camponês desavisado no chão.

Os cavalos, que vagavam por duas luas consecutivas, já apresentavam sinais de cansaço. Mas Kali tinha um objetivo. Aquela era sua missão final. E ela não seria derrubada por animais preguiçosos. As soldadas que guiavam os cavalos já não conseguiam manter a mesma postura ereta do início da jornada, mas também não queriam demonstrar fraqueza em frente à comandante.

— Senhora comandante, o exército pede descanso. — Informou sua conselheira ofegante. —  Não podemos continuar sem água, comida e algumas horas de sono.

— Não seja imbecil. Pelos meus cálculos, devemos encontrar as soldadas do exército azul-bebê logo depois de cruzarmos aquele morro. Não podemos desistir agora.

—  Mas senhora…

A auxiliar nem pôde continuar, porque Kali já puxava as rédeas de seu cavalo, o qual, assim como sua dona, não parecia querer desistir antes de atingir seu objetivo final. Era Bucéfalo, um dos animais mais fortes que já tinham pisado naquelas terras. Era ele quem guiava Kali sempre por caminhos retos. Seu couro preto e lustroso, como fofocavam os cuidadores da cavalaria, só podia ser de aço, porque era duro como rocha, e nunca tinha sido atravessados por nenhuma arma de guerra — e várias foram as tentativas, já que Kali não conquistou seus continentes na base da conversa.

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— Senhora, por favor. — Gritou uma dos soldadas, que se aproximava. — Nos ajude!

Com uma mulher desfalecida nos braços, a soldada explicou que a companheira estava grávida de sete meses. Ela havia ocultado sua condição com a ajuda da armadura cor de sangue para honrar a missão final da comandante. Mas o período sem descanso e comida a fizera sucumbir. Agora, ela estava à beira da morte.

Kali valorizava quem era fiel a ela. Descendo de Bucéfalo, ela entregou as rédeas do seu cavalo à soldada:

— Leve sua companheira a um lugar seguro, fiquem a salvo, estamos muito próximas do exército azul-bebê.

— Mas, senhora, nós não podemos deixá-la sem Bucéfalo…

—  Isso não está aberto à discussão.

Quando as mulheres conseguiram montar no cavalo e virar as costas para a comandante, rumo a um lugar seguro, Kali viu um mesmo laser azul flamejante atingindo as cabeças de ambas as soldadas de uma vez. Elas explodiram como uma melancia recheada com TNT. Bucéfalo disparou sozinho rumo a um horizonte vazio.

— Maldita, Durga! — bradou Kali com a fúria de um vulcão em erupção. O exército vermelho-sangue havia encontrado o azul-bebê. A guerra havia começado.


Quando Durga sentiu que o exército vermelho-sangue de Kali se aproximava, ela sabia que precisava agir. A conselheira de seu exército, uma anciã que trazia nos cabelos brancos o peso dedicado aos anos de guerra, sugeriu que o ataque deveria ser feito imediatamente, a fim de minimizar o desgaste.

— Senhora, não podemos esperar mais, o exército de Kali se aproxima rapidamente.

— Minha intuição diz para esperar. — Respondeu Durga, penteando as penas de sua águia.

— É que, senhora… — Pigarreou a anciã. — Sua intuição pode estar errada.

— Mas ela nunca erra… — Retrucou Durga, revestindo suas palavras com tranquilidade e piscando o olho do meio de sua testa para a anciã.

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Ela sabia que o exército azul-bebê estava mais descansado do que o vermelho-sangue, o qual cavalgava dias sem comida. Além disso, ela estava em seu território, o Território do Inconsciente, a única fronteira que Kali precisava ultrapassar para ter domínio total sobre aquele mundo sutil que ambas habitavam.

Foi só quando ela viu uma soldada grávida subindo no cavalo de Kali que ela resolveu agir. Kali não deixaria Bucéfalo se já não estivesse certa da vitória. A comandante de armadura azul-bebê disparou sua lança flamejante que atingiu a cabeça da grávida com a precisão cirúrgica de um laser antes de se dissolver. “Não posso deixar que as soldadas de Kali procriem”, pensou. "Preciso fazer com que ela dependa da minha tropa para a proposta final."

Junto com a lança em fúria, Durga deu o sinal para que seu exército saísse do esconderijo que o abrigava e atacasse a horda de mulheres cansadas que se aproximava. Vista do alto do monte, onde estava a comandante, a batalha que misturava os dois exércitos coloridos ganhava uma tonalidade roxa jamais vista.

As flechas das soldadas surgiam no ar como revoadas de gaivotas, e acertavam as oponentes por todos os lados. As mais fortes da cavalaria de Kali conseguiam se desvencilhar, e, com seus escudos de bronze, abatiam as guerreiras de Durga de seus cavalos, travando lutas no solo, onde tinham mais habilidade. O barulho das espadas só era abafado pelos gritos de ódio que reverberavam por todo o vale.

Apesar das asas, Durga preferiu deixar a águia e descer a pé para não se tornar um alvo fácil das flechas, e poder demonstrar sua força. Conforme descia do monte, o trajeto ia ganhando obstáculos na forma de corpos rasgados e cabeças sem corpos. Mesmo de longe, Durga conseguia ver Kali e sua pele azul brilhante, porque a luz do Sol que refletia na comandante do exército vermelho-sangue a transformava em um farol vivo.

Durga não contou quantas cabeças precisou explodir até se aproximar de Kali. Mas quando as duas estavam próximas, já não existia nenhuma soldada inimiga para lhe incomodar. A tropa de Kali estava toda morta. Nenhuma de suas soldadas sobrevivera ao massacre. A única coisa que protegia a comandante vermelho-sangue era sua própria ira.

Ao ver a rival, Kali lançou sua espada à frente com força e disparou rumo à batalha final. A lâmina acertou as vestes de Durga, prendendo-a numa rocha que se erguia solitária no vale. Mesmo presa, Durga continuava atirando lanças flamejantes em Kali, que se protegia com seu escudo de bronze.

— Meu exército pode ter sido abatido, mas você nunca vai me derrubar. — Bradou Kali, pronta para amassar o crânio de Durga com a ponta fina do escudo.

Ao se ver ameaçada, o terceiro olho de Durga se abriu, emitindo uma luz tão ofuscante que Kali tombou para trás. Durga se livrou da espada que a prendia à pedra e se dirigiu à rival.

— Você está acabada, Kali, escute a minha oferta ou morrerá…

O que restou do exército azul-bebê já se organizava atrás de Durga quando as soldadas viram a comandando oferecendo a mão gentilmente a sua inimiga. Era uma proposta.

— Eu te ofereço parte do meu exército, você abandona essa ideia de dominar meu território e se reconstrói longe daqui. — Sugeriu Durga, ainda com as mãos estendidas.

— Eu não descanso até te ver morta, sua maldita. — Disse Kali, ainda no chão, cuspindo nos pés da adversária.

Como um lampejo vindo de lugar nenhum, Bucéfalo surgiu no meio do vale e empurrou Durga ao chão. Antes que pudesse se recuperar da queda, Durga assistiu Kali sumindo no horizonte em cima do cavalo e levando consigo qualquer chance de reconciliação. Mas a batalha estava longe do fim.

A paisagem no entorno da comandante azul-bebê começou a dissolver. Como um ralo sugando toda água ao seu redor, em poucos segundos a própria Durga era absorvida para dentro de um único ponto.

O centro da testa de Adilson.

Era a primeira vez que o porteiro meditava, depois que sua esposa chegou em casa um dia com o papo de que ele era muito bruto e precisava equilibrar razão e emoção, lógica e intuição pra encontrar alguma paz. “Aquela monja falou na TV que o coração e o cérebro precisam estar em harmonia. Eles não podem ser oponentes, precisam trabalhar juntos”, lembrou-se Adilson, no dia em que resolveu sentar em posição de lótus no quarto.

Agora, em quarentena, trancado em casa por conta de um vírus que já levara seu emprego e milhares de vidas desconhecidas, ele havia resolvido colocar em prática os ensinamentos da esposa. Adilson teria muito tempo para conciliar os exércitos de Durga e Kali.

A batalha estava longe do fim.


Ouvi no excelente podcast da Laurinha Lero que toda a arte produzida durante o período de quarentena vai ser uma bosta. Porque arte não é só tempo livre. Ela é influenciada pelo ambiente também. E é difícil produzir alguma coisa decente quando você tá trancado, tendo que lidar com pensamentos obscuros contra o presidente. 

Concordo. 

Por isso, decidi postar esse conto primeiro aqui pra que os amigos letradíssimos que acompanham essa newsletter possam me dizer se a Laurinha Lero tem razão. 

Eu curti. Espero que vocês curtam também. Como sempre, meu principal desafio é saber se as pessoas entendem a tradução que eu tento fazer das ideias caóticas que aparecem na minha cabeça para o papel. Coerência é uma virtude.

Então, antes que eu poste isso para o mundo e ache que tô abafando. Me diz aí o que você achou do conto. 

É só responder esse e-mail, ou me achar lá no insta ou no twitter

Lembrando que agora a PunkYoga tem uma conta no instagram podre de chique que tem até arte exclusiva feita pelo Will, meu amigo que me presenteou com esse banner escândalo do topo da news. 

Se cuidem. Fiquem em casa. E desobedeçam o governo. 

Com amor, 

Nathan

Se você chegou aqui através de um link, deve tá pensando: "Como eu assino essa newsletter maneira?". Ora, é só deixar seu e-mail aqui. E dá pra ler as edições anteriores aqui também. Se não curtiu e tá aqui lendo esta última linha, admiro sua capacidade de autoflagelação.