PunkYoga #31: Sônia Guajajara pela luta dos encantados
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PunkYoga #31: Sônia Guajajara pela luta dos encantados

Sempre imaginei que termos como "Mãe Terra" ou "Mãe Natureza" fossem uma forma carinhosa de demonstrar dedicação ao meio ambiente. Foi com a Sônia Guajajara que eu entendi que, para algumas pessoas, o conceito de "Mãe Terra" é literal. Para o...

Nathan Fernandes
8 min
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"Minha mente ninguém vai colonizar"

Sempre imaginei que termos como "Mãe Terra" ou "Mãe Natureza" fossem uma forma carinhosa de demonstrar dedicação ao meio ambiente. Foi com a Sônia Guajajara que eu entendi que, para algumas pessoas, o conceito de "Mãe Terra" é literal. Para os guajajara e muitas outras etnias indígenas, por exemplo, a terra realmente é uma mãe. 

Não é um conceito separado e abstrato. A natureza é parte da família. 

Eu só entendi isso em um seminário a que fui ano passado, no qual a Sônia disse: "Muita gente compra um terreno como investimento e vende pra sair do aperto. Não tem relação nenhuma com a terra. Nós não. Pra gente, a nossa terra é a nossa casa, a nossa mãe. E mãe não se negocia."

Não tem como discutir com o argumento "mãe não se negocia". 

Me lembra também a relação dos krenak com o rio Doce, que eles conhecem como Wutu, e consideram um avô. 

“Ele [o rio] é uma pessoa, não um recurso, como dizem os economistas”, escreveu Ailton Krenak, em Ideias Para Adiar o Fim do Mundo. “Quando nós falamos que o nosso rio é sagrado, as pessoas dizem: ‘Isso é algum tipo de folclore deles’. Quando dizemos que a montanha está mostrando que vai chover e que o dia vai ser próspero, eles dizem: ‘Não, uma montanha não fala nada’. Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial extrativista.”

Eu usei essa citação numa reportagem que fiz para o Yahoo!, que reflete sobre o que os povos indígenas podem ensinar ao mundo pós-coronavírus. Nessa reportagem, eu também falei com a Sônia. 

Retrato feito pela magnânima Julia Rodrigues para a Marie Claire
Retrato feito pela magnânima Julia Rodrigues para a Marie Claire

A Sônia é a primeira mulher indígena do Brasil a concorrer à vice-presidência da República, na chapa de Guilherme Boulos, do PSOL, em 2018. Inevitavelmente, nosso papo acabou se estendendo pela política. 

Ela basicamente achincalhou o Bolsonaro e lamentou pelas mortes inspiradas no descaso e na ignorância dele. Você pode ler a conversa aqui

Além disso, ela topou responder algumas perguntas pra PunkYoga, explicando a relação com a terra e um pouco da filosofia guajajara: 

Nós nos consideramos conectados com todas as riquezas, a água, os animais, as florestas, os encantados, a ancestralidade... Percebemos que muitas comunidades não-indígenas perderam essa conexão. Acredito que lá trás todo mundo tinha essa compreensão de que a Terra é uma mãe, mas isso vai se perdendo. E, ao se perder, passam a tratar a terra como mercadoria.  

Ela diz que os indígenas são um contraponto ao desejo de destruição das pessoas que não conseguem enxergar relação entre a floresta e sua própria vida. É por isso que ela faz um trabalho incessante de sensibilização, mostrando como os modos de vida indígenas ajudam a melhorar o planeta não só pra eles, mas pro madeireiro que invade as suas terras e os mata também.

O trabalho de conscientização nem sempre é fácil:

A gente tenta explicar, mas muitas vezes parece que estamos falando com a pré-escola. Acho que as pessoas se acostumaram tanto com o modo de vida capitalista que acham que o dinheiro fabrica tudo. Elas acham que a água vem da garrafa, sem imaginar que para poder beber essa água ela precisa de uma nascente protegida. E essas nascentes geralmente ficam em reservas indígenas, nós as protegemos. Diferente dos rios das grandes cidades, que não têm condições de vida. Por isso, a gente percebe uma necessidade grande de sensibilizar as pessoas em relação aos cuidados com a Mãe Natureza. 

Os modos de vida indígenas são muitos. Na entrevista, ela achou importante destacar pelo menos quatro:

Têm as tribos indígenas com os 500 anos de contato; temos ainda os indígenas que têm entre 30 e 100 anos de contato, é o que chamamos de “recente contato”; temos o indígena que está em contexto urbano, mas nem por isso deixou de ser indígena, que vive em cidades como São Paulo, por exemplo, mas mantém vivas suas raízes; e têm ainda os indígenas isolados, que chamamos de “povos autônomos.

Garantir que o governo respeite toda essa diversidade é uma e não trate a terra como uma tutora mal amada, em vez de mãe, é uma tarefa que ela leva bem a sério. 

Hoje, o governo Bolsonaro fala claramente contra a demarcação dos territórios indígenas e que se deve integrar os povos indígenas à sociedade. Esse integracionismo que ele fala não é só uma ameaça à nossa diversidade étnica e cultural, é uma ameaça real para todas as pessoas.

Tento sair da densidade da política e voltar para os assuntos mais sutis da mente, mas ela já foi pega pela efervescência raivosa que o nome Bolsonaro causa. 

Os guajajara não usam muito o termo "mitos de formação". Para nós são histórias, que orientam o nosso comportamento desde sempre em relação ao respeito e à ancestralidade. Mas acho que hoje é muito mais urgente que os não-indígenas conheçam a realidade atual das comunidades. Na escola ensinam sobre o nosso passado, como se vivêssemos ainda em 1500.

Já faz tempo que a Sônia percebeu que ninguém vai resolver as tretas dos indígenas, a não ser eles mesmos. Por isso, ela me contou que só vai se candidatar de novo nas próximas eleições se for para presidente. Isso me fez pensar que ter pela primeira vez um governo que não seja pautado pela supremacia do ser humano em relação à natureza só pode ser bom. 

Mas isso é o futuro. Porque, no presente, os povos nativos ainda precisam encontrar forças para lidar com abusos que já acontecem há mais de 500 anos — seja o desrespeito em relação à terra que habitam, ou à nomeação de um evangélico para um cargo de chefia da Funai. 

No caso dos guajajara, a força vem do passado. "Para nós, os encantados são toda essa força espiritual que a gente recebe, são todos os nossos ancestrais. Eles não se foram, são seres de luz que alimentam a nossa luta, as nossas relações. Eles nos orientam neste momento", explica ela. "Se não fosse essa orientação trazendo a força da ancestralidade a gente não resistiria a tanta interferência."


O que eu tô ouvindo:

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Esse disco Rastilho do Kiko Dinucci é inteiro uma pérola. Mas, pra mim, a música Venenoque ele fez com o Ogi brilha forte demais. Quando ouço os versos: "O rapaz é Belzebu/ E o seu sangue vai beber/ Feito vinho e fumando um/ E o chicote te lamber", eu fico metade com medo do capeta e metade querendo saber como eles conseguem criar um clima desses na nossa mente usando "apenas" palavras. Respeito demais essa habilidade. 

O que eu tô lendo:


Desde que comecei a ver Adventure Time, eu sonho em escrever um guia dos episódios, detalhando as referências, falando dos bastidores, fazendo as ligações... O problema é que o desenho tem 279 episódios. Esse é o argumento. 

Por isso, desde que vi o primeiro episódio de The Midnight Gospel, que é do mesmo criador, com todas aquelas discussões sobre morte, meditação e transcendência, essa ideia de fazer um guia me bateu de novo. Era uma desculpa perfeita pra rever tudo e caçar mais informações sobre a série, que tem só 8 episódios. E foi isso que eu fiz.

Você pode ler o guia de episódios de The Midnight Gospel no e-zine do PunkYoga. Tem um texto pra cada episódio, e dá pra ler conforme for assistindo cada um.

Fiquei particularmente feliz porque foi um trabalho monstruoso e completamente desnecessário que eu só fiz por satisfação própria — o próprio PunkYoga (como newsletter, como instagram e como e-zine) é isso. Mas quem disse que dedicar tempo e energia pra mim mesmo não é uma coisa útil, né?

Dentro de mim tem esses dois gigantes que brigam: um quer fazer coisas pra ganhar reconhecimento e pagar boletos, e o outro só quer se dedicar a coisas cada vez mais específicas que eu sei lá se as pessoas se interessam, mas me interessam muito, e que, de certa forma, sempre acabam tocando alguém.

Então eu equilibro minha vida entre esses dois gigantes. O guia com certeza é a vitória do segundo. E isso faz um afago enorme no meu coração.

Até porque, em última analise, tudo é inútil, inclusive a vida, né. Mas ela também pode ser bonita, como mostram os episódios da série. E, se eu posso escolher entre essas duas lentes, por que eu escolheria a pior. 

Se você me acompanha aqui, é porque entende esse conflito. Obrigado pela companhia. 

Como sempre, se quiser trocar uma ideia é só responder esse e-mail, ou me achar nas ondas da web. Vou embora com a despedida que aprendi com a Yvy, que me escreveu um e-mail bonito essa semana: 

Abraços de luz y anarquia.

Com amor,

Nathan

Se você chegou aqui através de um link, deve tá pensando: "Como eu assino essa newsletter maneira?". Ora, é só deixar seu e-mail aqui. E dá pra ler as edições anteriores aqui também. Se não curtiu e tá aqui lendo esta última linha, admiro sua capacidade de autoflagelação.