PunkYoga #42: Dia Fora do Tempo
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PunkYoga #42: Dia Fora do Tempo

Vou começar com um spoiler da série Loki, mas é por um bom motivo. (Se não quiser ler, pula o próximo parágrafo.)

Nathan Fernandes
11 min
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Vou começar com um spoiler da série Loki, mas é por um bom motivo. (Se não quiser ler, pula o próximo parágrafo.)

A certa altura, na história da série, os agentes que acreditam terem sido criados para controlar a linha "oficial" do tempo, descobrem que, na verdade, eles são pessoas comuns que tiveram uma vida pregressa em outras linhas de tempo, mas que foram sequestrados e tiveram suas memórias apagadas para poderem servir como agentes. Aos poucos eles vão se lembrando. Ao poucos eles vão despertando. 

É uma metáfora para a ilusão da realidade. A mesma usada em Matrix. A mesma usada no Mito da Caverna de Platão. 

Engraçado que todas essas metáforas falam de lugares, né... Você precisa sair da caverna, sair da Matrix, sair da linha do tempo para "ver a realidade como ela verdadeiramente é"... O ruim dessa metáfora é que você fica com a impressão de que algum evento exterior precisa acontecer pra você fazer essa mudança.

Mas e se, em vez de lugar, a gente pensar em um estado mental, um modo de pensar. Tipo, e se você não saísse literalmente da Matrix, mas, em vez disso, começasse a questionar a realidade e percebesse que a forma como as coisas se apresentam é uma ilusão. E aí tudo se dissolve...

Você passa a perceber uma coisa de uma forma diferente, você muda o seu estado mental. Não precisa sair do lugar. 

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Ilusão persistente

Se os gregos pensavam em metáforas de lugares, os orientais pensavam nessas metáforas-de-estados-mentais. Acho que um bom exemplo disso é o conceito do véu de Maya, do hinduísmo. 

É essa ideia que diz que a realidade está encoberta por um véu de ilusão. Tipo aqueles fantasmas de desenho animado que são cobertos por um lençol. Às vezes, o disfarce é tão bom que você realmente acredita que aquilo é um fantasma. Mas a verdade é que, como aprendemos com Scooby-Doo, sempre tem um otário embaixo tentando te dar um susto. O véu é só uma uma coisa que encobre a verdade. 

Absolutamente tudo tem uma capa de proteção, que se você questionar demais, começa a se dissolver. É assim, por exemplo, com o tempo. A gente cresce achando que o tempo é isso que aponta o relógio do celular. Horas, dias, anos, uma linha reta em direção ao futuro... Mas essa ideia de tempo é uma ilusão. 

Tem a ver com aquela famosa frase que o Einstein escreveu em uma carta para consolar a esposa de um amigo, que tinha acabado de morrer: "A diferença entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão persistente". Na física, como em diversas filosofias, a ideia de tempo linear não faz sentido. 


Outra percepção

Curto muito essa ideia de questionar o tempo, porque isso implica a forma como a gente percebe a própria realidade ao nosso redor.

Por isso, esses dias escrevi pra Elástica sobre o conceito de tempo maia (que não tem nada a ver com o véu de Maya, nem com o Tim Maia, mas com o Povo Maia). Mais especificamente escrevi sobre o Sincronário, que é tipo um calendário criado na década de 1980, mas que usa como base o Tzolkin, um dos vários calendários maias, pra mostrar que é possível nos sincronizarmos com um tempo diferente. 

Para entender um pouco melhor sobre ele, eu sugiro que você leia essa reportagem, não só porque me deu um trabalho do cão, mas também porque me fez entender melhor que eu não preciso sair do lugar de onde eu estou para pensar diferente. A realidade é a mesma, o que muda é a percepção sobre ela. 

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Anomia do tempo

Como escrevi na reportagem, pensar no tempo de uma forma diferente também é questionar o capitalismo & o pensamento ocidental. 

Isso porque esse calendário que a gente usa hoje (separado em dias, meses e anos) se chama Calendário Gregoriano. Ele foi promulgado pelo Papa Gregório 13, no dia 24 de fevereiro de 1582. É uma invenção da Igreja Católica. Então, se você já questionou a Igreja Católica, mas nunca questionou a ideia de tempo, é porque a Igreja Católica instalada na sua mente continua firme.

Apesar de não existir capitalismo no século 16, não resta dúvidas de que essa forma de contar o tempo é completamente baseada no dinheiro, já que foi inventada para organizar o pagamento de impostos. Sim, o calendário que a gente usa hoje foi inventado para o organizar a cobrança de boletos. E a nossa vida gira em torno disso. 

Com um calendário assim, não surpreende que as pessoas acordem com raiva para trabalhar na segunda-feira, porque ele não respeita o seu tempo, mas o do dinheiro. Tem que trabalhar e foda-se. No capitalismo, em que tempo é dinheiro, estamos sempre ocupados, sempre com pressa e sempre atrasados.

Durante a apuração da reportagem, eu me deparei com essa frase do sociólogo José de Souza Martins, em sua coluna no jornal Valor Econômico, que resume perfeitamente isso. Olha que preciosidade:

Se a mentalidade se ajusta a racionalidades cada vez mais vorazes do processo de trabalho, se desajusta em relação aos requisitos morais e comunitários do modo social de viver, da família, dos grupos afetivos de referência. Esse desencontro cria e difunde sofrimentos, disfunções, alienação, estranhamento, desajustes sociais. É a chamada anomia, a das regulações em que normas sociais do viver em comum tornam-se subjetivamente impróprias ao modo de vida.

Nós nos adequamos ao trabalho, em vez do trabalho se adequar à gente. Num sistema assim, o sono e a saúde mental são uma piada. Um sistema assim nos faz acreditar que somos preguiçosos quando não queremos trabalhar, enquanto extrai cada vez mais trabalho de nós.

Esse é o tempo do capitalismo, que prioriza o acúmulo para o futuro, o consumo para o presente & o arrependimento para o passado.

Beleza, mas, se o tempo do capitalismo é uma invenção, isso significa que podem existir outras formas de contar o tempo... E é aí que entram os maias. 

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Pelo amor de Hunab Ku

Resumindo porcamente: os maias acreditavam que o planeta Terra recebe fluxos de energias que influenciam os nossos dias (ou kins). E a gente pode se sincronizar com esses fluxos a fim de "nadar a favor da maré". Uma vez sincronizado, não existem mais segundas-feiras ruins, porque sequer existe segunda-feira. Você passa a organizar seus dias usando outro parâmetro (o que não quer dizer que você vai abandonar o calendário comum, só vai usá-lo de uma forma diferente).

 Falar que cada dia tem uma "energia" parece místico e subjetivo demais, mas se a gente é capaz de perceber a ~vibe~ de uma sexta-feira, que é completamente diferente da ~vibe~ de um domingo à noite, por exemplo, então a gente também pode se condicionar a perceber outros tipos de ~vibes~. 

Na reportagem, o Gust, querido amigo que tem uma consultoria sobre o tempo chamada Torus Time Lab, define bem:

Aprendemos a nos relacionar com o tempo pulando de mês em mês até o próximo teste na escola, o próximo salário na conta bancária e o próximo pagamento do cartão de crédito. Fazemos promessas para o ano novo, planos para o próximo aniversário e evitamos pensar que um dia o nosso tempo por aqui chegará ao fim. Será que esta é a única forma de se relacionar com o tempo? Que outras formas podem existir?

A natureza não respeita o tempo do dinheiro. E os maias sabiam disso. É como se gritassem: PELO AMOR DE HUNAB KU, VÉI! A VIDA É MAIS DO QUE SÓ PAGAR BOLETO! 

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Escavando mentes

A questão é que para pensar no conceito de tempo de uma forma diferente daquela com a qual fomos educados, nós precisamos aceitar que existem outras formas de pensar fora do padrão. Julgar outras civilizações como "primitivas", "estranhas" ou "exóticas" é esnobe e colonialista. É preciso lembrar que os conhecimentos da civilização ocidental, esses que a gente recebe desde criança, não são universais. Eles não valem pra todo mundo. 

É preciso tirar o véu de Maya. 

Tem uma frase boa do Jesé Argüelles, o cara que criou o Sincronário, no livro O Fator Maia, falando sobre essa mania que nós temos de querer enquadrar tudo ao nosso padrão e desconsiderar o que está fora: 

Os arqueólogos tratam a civilização Maia como uma feliz aberração da Idade das Pedras. Comecei a suspeitar que a razão pela qual eles a estudam é precisamente porque suas mentalidades presunçosas nunca conseguiriam entendê-la, em vez disso, culpariam os próprios maias por não serem compreensíveis.

E aí — em uma observação que serve para qualquer cultura antiga — ele sugere que não basta os arqueólogos escavarem objetos e catalogá-los, é preciso entender as mentes que os fabricaram. 


Prazer, Tzolkin

O Tzolkin é um registro de tempo deixado pelos maias, uma relíquia arqueológica. Ele é a base do Sincronário. Para o Gust, o Tzolkin é tipo uma tabela periódica: 

Assim como vamos dos elementos mais simples, como o hidrogênio, até os mais complexos, como o urânio, o Tzolkin também vai das frequências mais sutis até as mais complexas. A diferença é que os kins não são átomos na matéria, mas energias no tempo

Essas frequências são as que definem a ~vibe~ do dia. E, como já falei edições anteriores, é possível saber até a ~vibe~ no dia do seu nascimento, através da Calculadora KinEla mostra como essa frequência afeta sua personalidade. No meu caso, me descreveu tão perfeitamente que parece ter sido escrito pela minha mãe.

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O Dia Fora do Tempo

O ano, segundo essa contagem, tem sempre 364 dias. Ou seja, um dia a menos do que a quantidade de dias necessários para a Terra dar uma volta no Sol. Esse dia sobressalente, que forma os 365 dias, está fora da contagem. Por isso, é conhecido como Dia Fora do Tempo. E cai sempre em 25 de julho, que foi domingo passado. 

A data marca o fim e também o início de uma nova viagem da Terra na órbita do Sol. É um momento que inspira transformação. 

No dia 25 de julho, também se comemora o Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha. E eu achei excelente esse episódio do Café da Manhã, da Folha, no qual a historiadora Wania Sant'Anna explica:

É uma data que fortalece a organização política das mulheres negras latino-americanas, que inspira pensar e reivindicar um mundo diferente. No caso das mulheres negras, sem racismo e sem sexismo. 

Não sei as razões que levaram essas duas datas a se coincidirem, mas, se pensarmos que os dias têm ~vibes~, talvez a ~vibe~ do 25 de julho seja a de inspirar mudanças. 

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Tecido da vida

Em setembro, já completamente imunizado (Fora Bozo!), vou fazer um curso aprofundado sobre essa ideia do Sincronário, no Instituto Lei do Tempo, no Rio Grande do Sul. 

É óbvio que eu não vou voltar de lá sem escrever como é passar sete dias filosofando sobre a natureza do tempo dentro de uma geodésica. Então, espera que vou voltar com mais informações sobre o assunto... 

Até lá, se você nunca ouviu falar sobre nada disso, e achou tudo estranhamente fascinante, ou só estranho mesmo, sugiro que considere ler a reportagem que escrevi: Fora do Tempo. E, se tiver muito empolgado, aproveita e dá uma olhada nesta outra, que também escrevi, falando sobre o tempo da pandemia. 

A ideia é reforçar bem na mente a frase que o Antonio Candido disse, em 2006, quando foi na inauguração de uma biblioteca do MST: "Tempo não é dinheiro. Tempo é o tecido da nossa vida." 


Fiquei feliz de ver que, desde a última edição, chegou um pessoal novo aqui na newsletter. Recebam meu abraço que diz "tamo junto nessa experiência dolorosa que é ser brasileiro em 2021".  

Os mais atentos devem ter percebido que demorei um pouco para enviar uma nova edição, mas espero que gostem, porque cada linha aqui foi escrita pensando nas pessoas que estão lendo e podem se questionar "por que eu assinei essa caralha de newsletter sem noção?". Se você chegou até aqui, o esforço compensou. 

A PunkYoga é o meu depositório xamânico-anarco-queer-psicodélico e tem muito a ver com as minhas pesquisas e experiências pessoais, então, seguindo a ideia da última edição, resolvi respeitar meu tempo e não apressar nada.

 Agradeço a quem sempre aparece pra me apresentar coisas novas ou me dar um oi, seja respondendo à newsletter ou lá no insta. Um salve especial pra Miwa, pro Heitor e pra Jéssica. E pra Priti, que faz aniversário no Dia Fora do Tempo. 

Lembrem-se, segundo o Tzolkin, estamos iniciando um novo ciclo. Como diz meu professor de canoa, cada nova remada é uma oportunidade de remar certo. Então, que nesse novo ciclo a gente reme com força e firmeza, mas também com graça e leveza, se não dá dor nas costas. Desejo a todos, do fundo do meu coração, uma sequência de dias prósperos e mágicos. 

E acabou o discurso. 

Vai pela sombra e fica na paz de Bowie.

Com amor y anarquia,

Nathan

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