PunkYoga #43: Lo-fi é mantra
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PunkYoga #43: Lo-fi é mantra

Esses dias o Jeferson me chamou pra falar sobre jornalismo de direitos humanos na Rede de Jornalistas Internacionais. E eu disse uma coisa que é o seguinte: 

Nathan Fernandes
8 min
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Esses dias o Jeferson me chamou pra falar sobre jornalismo de direitos humanos na Rede de Jornalistas Internacionais. E eu disse uma coisa que é o seguinte: 

Não importa a especialização do jornalista dentro da área dos direitos humanos, ele pode cobrir só o movimento preto, ou só questões LGBTQIA+, mas, conforme avança no tema, percebe que todas as causas estão interligadas. Não que eu seja nenhum gênio por formular isso, mas quem não acompanha esses assuntos pode não perceber que é meio difícil cobrir só um tema específico de direitos humanos, sendo que todos eles se esbarram entre si e acabam se fundindo no final. 

Me desculpem a autocitação, mas é que alguns dias depois eu me deparei com essa foto que o João Gordo postou de um manifestante indígena, no Acampamento Luta Pela Vida, com uma camiseta que trazia a capa do álbum Crucificados pelo Sistema, do Ratos de Porão.  

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Essa imagem é a representação perfeita do que eu quis dizer lá em cima.

Um manifestante indígena preocupado com seu direito à terra usando a camiseta de um álbum punk que é um grito anticapitalista faz total sentido quando a gente percebe que a causa indígena e o anticapitalismo são, basicamente, a mesma luta. Pra mim, aliás, Sônia Guajajara é mais subversiva do que os Sex Pistols. 


O militante quebrado

Ainda falando da militância. Achei foda esse vídeo da Sabrina Fernandes, no qual ela problematiza o uso do termo "esquerda cirandeira", pra se referir a uma esquerda de performances artísticas vazias. Existe um preconceito zoado embutido aí, porque as cirandas são manifestações não só artísticas, mas políticas, que criam laços na comunidade. Além disso, zombar de performances artísticas é menosprezar o valor que a arte tem de mobilizar, conscientizar, atrair pessoas e gerar cuidado. 

A Sabrina reforça que até o militante mais revolucionário pode quebrar se não for cuidado. Ou seja, ficar bitolado na causa pode gerar um nível de estresse profundo, e, sei lá, na minha opinião, nenhuma causa é mais importante do que a nossa saúde. Até porque ainda não se tem notícia de alguém que tenha conseguido reivindicar alguma coisa estando morto. 

Achei bonito ela levantar esse ponto, porque o cuidado tá numa dimensão subjetiva que é muito desvalorizada numa sociedade governada por homens, seja o cuidado com o outro, seja consigo mesmo. 

No vídeo, a Sabrina ainda cita a Lia de Itamaracá, como uma das principais cirandeiras do Brasil. E eu deixo aqui a Ciranda Sem Fim, porque ouvi-lo é um cuidado bonito que você pode ter com a sua mente cansada. 

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Em terra de streaming...

Uma das coisas que tem me ajudado a não quebrar nessa pandemia é colocar uma musiquinha lo-fi no fone e fazer igual o meme do cachorro de chapeuzinho tomando café tranquilamente, enquanto a casa desaba em chamas. Eu nem sabia que essas músicas com ritmo lento, e batidas balançantes, que misturam jazz, hip-hop e música eletrônica, faziam parte de um movimento maior. 

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Descobri isso lendo essa ótima reportagem do Rafael Bataglia, da Super. O legal do texto é que ele não só explicou o que é o lo-fi, como por que a batida faz nosso cérebro derreter e é perfeita pra nos deixar em modo concentração, seja pra trabalhar, estudar, ou escrever essa newsletter. 

Milhões de anos de evolução transformaram o cérebro em uma máquina de reconhecer padrões.[...] quanto mais previsível é a sequência de sons em um ambiente, mais relaxados ficamos. [...] Esse é o segredo do lo-fi. O ritmo lento (entre 70 e 90 batidas por minuto), a ausência de letra e o excesso de repetição mantêm nossa audição estimulada em um ambiente sonoro previsível; uma bolha confortável. Elementos nostálgicos, como um sample do barulho de chuva, o ruído do vinil ou de uma fita cassete contribuem com o aconchego. 

E o Rafa cita uns lugares legais pra ouvir, como a rádio 24h de YouTube Lofi Girl; a playlist Lofi beats, no Spotify; e o álbum brasileiro Chill Brazilian Storm, que mistura músicas do gênero com samba e bossa nova. 


... Lo-fi é mantra

No texto, o Rafa cita muito bem citado o Brian Eno como precursor da "música ambiente", mas essa ideia de amortecer o cérebro em uma frequência de relaxamento já tá presente nos mantras. Ok, a proposta é outra, mas a ideia é parecida, vai. 

Quem já mantrou um japamala sabe, são 108 vezes repetindo a mesma frase em sânscrito, tipo Om Namah Shivaya(o mantra de Shiva).Começa de boa, mas depois de repetir umas trinta vezes você já não aguenta mais e seu cérebro começa a te levar pra lugares tipo "o que que eu tô fazendo aqui?", "será que já tá acabando?", "será que se eu desistir agora fica muito feio?". Até que em um momento você percebe que vai mesmo ter que repetir 108 vezes e só aceita, e depois que aceita consegue relaxar e dissolver.

E aí acaba, mas não totalmente. Porque, quando acaba o mantra, tem o silêncio. E o silêncio que procedo o mantra é um dos silêncios mais agradáveis que tem. Afinal, depois de repetir a mesma frase tantas vezes, o silêncio parece uma recompensa, um tesouro tão precioso que você quer se agarrar a ele como se fossem aqueles travesseiros de corpo. 

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Constância Huni Kuin 

Mas não é só na Índia que as pessoas usam repetições sonoras pra influenciar o nosso estado de consciência. Isso é comum em várias culturas indígenas. Uma vez, eu tava numa cerimônia Huni Kuin com ayahuasca e uma moça começou a berrar. Ela não tava passando mal, só gargalhando e gritando muito alto como se não tivesse atrapalhando a concentração de todo mundo no salão. 

O lugar era realmente minúsculo, então não tinha como não ser invadido por aqueles berros. Tudo bem, às vezes, acontece. Mas é ruim, porque, na força da ayahuasca, você fica com os sentidos muitos sensíveis, um estalo de dedos vira um trovão. Por isso, o ambiente precisa ser cuidado. Quando acontece um contratempo desse tipo, cada casa costuma reagir de um jeito. Pra minha surpresa, naquele lugar que eu tava, a reação foi nula. A mulher ficou lá berrando, sem que ninguém da equipe fizesse nada. 

Os Huni Kuin, que estavam tocando e cantando, se mantiveram firmes na condução do ritual. A mesma batida no violão, a mesma repetição de palavras. Uma seguida da outra. Uma seguida da outra. Um mantra indígena, que não foi interrompido em nenhum momento.

No começo, eu fiquei bem incomodado. Mas reparei que, com a constância, eu ganhava firmeza. Era como se as repetições sonoras me transformassem em uma muralha. Isso me lembrou na hora da Barbara Ehrenreich, citando Ralph Ellison, no livro Dançando na Rua: "Mantenham o ritmo e assim manterão a vida. Mantenham o ritmo e não ficarão esgotados. Mantenham o ritmo e não se perderão.

"Você está mantendo o ritmo?

Uma coisa que ajuda é ouvir esse som aqui do Mapu. 

A arte é da Kerexu e da Edi, duas das artistas Huni Kuin que estavam na cerimônia.
A arte é da Kerexu e da Edi, duas das artistas Huni Kuin que estavam na cerimônia.

 Essa ideia de ondas que viajam pelo espaço e ganham forma através do aparelho auditivo é fascinante. Por isso, fiquei encantado com esse podcast sobre o som, do UOL, que eu comecei a ouvir agora. 

Na verdade, eu piro tanto nisso que não resisti e paguei um absurdo de caro na edição gringa daquele livro do David Byrne, Como Funciona a Música. Essa seria a hora que eu pegaria ele na minha estante e buscaria uma citação ótima pra encerrar o tema. O problema é que eu comprei, mas nunca li o livro, e também, como nômade, eu nem tenho mais estante. Então, não vai dar pra encerrar a newsletter com uma frase maravilhosa.

Nem sempre o final que queremos é aquele que precisamos. 


Só essa semana entrevistei a criadora de uma mostra de cinema, a diretora da maior faculdade de engenharia do Brasil, o criador de uma tecnologia de monitoramento ambiental, um professor de história da Amazônia, um educador que leva água pra caatinga, um especialista em energia renovável, escrevi dois perfis pra um livro, uma entrevista pra Veja, um levantamento sobre a situação indígena pra Conectas e fiz a abertura de uma live sobre psicodélicos. Cacete!

Sabe o que isso significa? Sim, que eu deixei um monte de trabalho acumular e agora meu eu do presente tá pagando pela preguiça do meu eu do passado. Mas fiz um acordo comigo mesmo de que não iria reclamar. E não tô reclamando, tá supergostoso. 

Tô só o pó da rabiola. Ou, como a Anna Martino escreveu na ótima newsletter dela, quando perguntam como ela está, ela responde: "Espremendo entusiasmo como quem espreme resto de pasta de dente do tubo, eis como eu estou". Eis como eu estou também. 

Apesar de estar me sentindo sugado, tô muito satisfeito por não deixar que o capitalismo roube toda minha energia e me impeça de fazer umas das coisas que eu mais gosto: escrever essa newsletter. 

Então, se você chegou até aqui, saiba que está contribuindo para um movimento de resistência revolucionária que acontece dentro de mim neste momento. E eu te honro por isso. Obrigado! Se curtiu o que leu, encaminha pro amigue. 

Um beijo especial pro Basq, que tá preparando uma collab destruidora pro PunkYoga (vem aí...), e pra Júlia Rodrigues, fotógrafa magnânima que me inspira. 

Se quiser trocar uma ideia, me encontra lá no insta, ou só responde esse e-mail. 

Vai pela sombra e fica na paz de Bowie.

Com amor y anarquia,

Nathan

Se você chegou aqui através de um link, deve tá pensando: "Como eu assino essa newsletter maneira?". Ora, é só deixar seu e-mail aqui. Se não curtiu e tá aqui lendo esta última linha, admiro sua capacidade de autoflagelação.