Tem uma música do Black Alien que diz "não tem como saber sem ir". Acho que era isso que eu tinha na cabeça quando decidi viajar pela Argentina durante meses com o Felipe, meu amor. Ambos temos trabalho remoto, e o dinheiro que a gente gasta ...
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Tem uma música do Black Alien que diz "não tem como saber sem ir". Acho que era isso que eu tinha na cabeça quando decidi viajar pela Argentina durante meses com o Felipe, meu amor. Ambos temos trabalho remoto, e o dinheiro que a gente gasta com aluguel, dá pra gastar viajando. Além disso, eu queria ir para saber como era. Não saber como era a Argentina em si. Mas como era resumir sua vida a uma mala e sair saracoteando por aí. | ||
Ao se desapegar das coisas que a gente tem, é inevitável não pensar que a gente, na verdade, nunca teve nada. E talvez isso tenha sido o mais difícil. Não o fato de desapegar dos mais de demais de 300 livros que eu não li, ou da jaqueta de couro que eu nunca usei, mas desapegar da ideia de que tudo aquilo que eu achei que me definia, na verdade, nunca foi meu. | ||
Talvez, se eu nunca tivesse feito isso, eu nunca teria sabido como era. Não tem como saber sem ir. | ||
Falo que se eu não tivesse conhecido o Felipe, talvez, eu já tivesse ido morar numa caverna inóspita com um tapete felpudo e internet de fibra. Só preciso disso. Tenho tendência de me enraizar em um lugar que eu acho confortável e ficar por lá, que nem aquele personagem do Tarcísio Meira, em Saramandaia, que literalmente tem raízes nos pés. | ||
Na novela, o Tarcício só arranca suas raízes pra ir atrás do amor da sua vida, que é interpretada pela Fernanda Montenegro. No meu caso, também foi por causa do amor da minha vida, o Felipe. Mas ninguém precisou ir atrás de ninguém, nós nos acompanhamos. Um casal mais curioso do que medroso. | ||
Na cena de quando o Tarcício arranca as raízes, a primeira coisa que ele fala é: "Eu estou livre". Achei engraçado porque ele nunca esteve preso, tanto que, quando quis, saiu de lá. Podia ser difícil, mas era completamente possível. Acho que foi também o que eu senti indo visitar um lugar distante, tendo o privilégio de trabalhar de forma remota, sem saber quando ia voltar, só com meia dúzia de roupas e uns três livros. Cabe bastante liberdade nisso. Uma liberdade que eu não sabia que tinha até ter. | ||
Mas, na novela, quando o Tarcício arranca suas raízes, também é como se ele tivesse arrancando pedaços de si próprio. É meio sofrido, não é totalmente de boa. E eu sabia que, a partir do momento que eu pegasse minha mala e zarpasse para a Argentina, eu também teria que lidar com um monte de coisas que não eram de boa pra mim. | ||
Tanto que quando eu tirei as três cartas de tarô antes de viajar, perguntando sobre os desafios de fazer esse tipo de escolha, eu já tinha uma ideia das cartas que viriam. | ||
Eu já sabia porque eram questões que estavam buzinando na minha cabeça há um tempo, como aquele ruído que no começo parece inofensivo, mas de repente domina tudo e você não consegue pensar em outra coisa. | ||
4 de Paus | ||
A primeira preocupação era em relação à minha convivência com o Felipe. Estamos juntos desde quando nos conhecemos, em 2016. Passamos dois anos trancados juntos na pandemia. E a convivência pode ser muito ingrata, às vezes. Eu odiava o fato do Felipe não lavar louça, e de não arrumar as coisas na mesa do jeito exato que eu queria. Eu odiava aquele bando de fio solto que ele deixava desenrolado pela casa. Odiava também as roupas largadas pelos cantos, e os equipamentos de foto entulhando nos armários. É claro que na minha cabeça as coisas ganhavam uma dimenssão muito maior. Eram coisas idiotas. Mas eram várias microcoisas que, na minha mente, se transformaram num Megazort. | ||
Por isso, quando o Felipe sugeriu se desfazer de tudo e ir passar meses na Argentina, eu aceitei. Mas não sabia muito bem se aquela viagem iria nos unir ou nos afastar de vez. | ||
A primeira carta do tarô que eu tirei naquele jogo foi o 4 de Paus. Eu uso o deck do Starman Tarot, criado pelo Davide De Angelis, um artista que fez várias capas de disco do David Bowie. Nesse deck, o 4 de Paus mostra duas pessoas caminhando juntas, lado a lado, de mãos dadas. O quatro traz essa ideia de harmonia, é um número par. Nada sobra, nada falta. Mas, apesar dele ser completo em si, ele também pode ser dividido em duas partes exatamente iguais. | ||
O que chama a atenção no desenho é que, apesar das duas pessoas estarem andando juntas (um casal heterossexual, ao que parece), existe uma fenda entre os pés deles, uma rachadura, como se um abismo estivesse se criando sob os dois. | ||
A ideia é que, apesar da companhia, nós sempre vamos precisar do nosso próprio espaço, porque o amor por outra pessoa não pressupõe que você deva deixar de existir sozinho. Achei bonito essa ideia ser representada por uma rachadura, porque me lembrou daquela frase do Leonard Cohen que diz que é pela rachadura das coisas que a luz entra. | ||
Com a carta em mente, durante a viagem, fui expondo ao Felipe minhas vontades de uma forma que eu nunca tinha feito antes. Isso fez com que ele se sentisse confortável pra fazer o mesmo. Conversamos sobre o que nos deixava desconfortáveis, o que nos irritava, o que nos causava nóias. Por um lado, delimitamos nossos espaço em uma das bordas do abismo, por outro, demos as maõs e caminhamos juntos. Igual ao 4 de Paus do Starman Tarot. | ||
A ideia era ter passado pelo menos uns nove meses na Argentina. E quase conseguimos. Rodamos aquilo tudo. Passamos pela Patagônia, por Córdoba, pelo litoral, pela capital. O Felipe registrou tudo incansávelmente no Instagram e no canal dele. Tem lá a gente conhecendo uma lagoa esmeralda no meio de uma montanha, e a gente chegando perto de uma parede de gelo de trocentos km de altura. Mas decidimos voltar no quinto mês. Ainda vou explicar o porquê. | ||
A questão é que se antes de ir pra viagem eu tinha dúvidas sobre a nossa relação, depois de cinco meses tendo apenas ele ao meu lado, eu já sei que uma pessoa que me suporta dando chilique por causa de fio solto em cima da mesa é uma pessoa especial. | ||
Princesa de espadas | ||
A segunda carta veio como um golpe. A Princesa de Espadas. Acertou em cheio a minha ansiedade. | ||
Continua... | ||
Mais uma vez, a edição ficou tão grande que ficou parecendo aquelas cartas de metro que os fãs mandavam pros seus ídolos nos finados anos 90. Para não assustar o pessoal novo que andou chegando aqui (sejam bem-vindos, pessoal), resolvi dividir o relato em dois, e assim eu deixo um mistério no ar... | ||
Na sexta que vem, você vai saber como a Princesa de Espadas me ajudou a não surtar, e também vai conhecer a terceira carta. | ||
Só dando um spoiler: a viagem pela Argentina foi incrível, mas voltar a viver em Ubatuba é uma dádiva. Eu e o Felipe ainda estamos ajeitando as coisas, resolvendo o apartamento novo, trazendo tralhas da casa dos meus pais em São Paulo... Estamos na casa da Lari por alguns dias, mas só de sentir esse cheiro de mato molhado já me sinto em casa. | ||
Enfim, lá no início do texto, sugeri que você ouça o set do Mose, um DJ meio místico que ajudou muito a acalmar minha ansiedade nesses dias. Considere ouvir também. Tenho certeza que vai ajudar se você precisa ficar mais de boa. Dá pra ouvir aqui. | ||
E, se você chegou até aqui, gostaria de agradecer pela companhia. Sei que tirar o foco do instagram é bem difícil, então obrigado pela preferência, mesmo que somente por alguns minutos. | ||
Se quiser trocar uma ideia, me responde esse e-mail, ou me acha lá no instagram @nathanef. Até sexta que vem. | ||
Vai pela sombra e fica na paz de Bowie. | ||
Com amor y anarquia, | ||
Nathan | ||
Se você chegou aqui através de um link, deve tá pensando: "Como eu assino essa newsletter maneira?". Ora, é só deixar seu e-mail aqui(e fazer a confirmação). E dá pra ler as edições anteriores aqui também. Se não curtiu e tá aqui lendo esta última linha, admiro sua capacidade de autoflagelação. |