PunkYoga #52: Martinho da Vila Revolutions
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PunkYoga #52: Martinho da Vila Revolutions

Eu sou meio cagão pra filme de terror com espírito, essascoisas. É isso que me faz pensar duas vezes quando vou fechar a portinha espelhada do gabinete do banheiro. É óbvio que vai aparecer um condenado no reflexo atrás de mim assim que eu fe...

Nathan Fernandes
11 min
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Eu sou meio cagão pra filme de terror com espírito, essas coisas. É por causa desses filmes que eu penso duas vezes quando vou fechar a portinha espelhada do gabinete do banheiro. Porque é óbvio que vai aparecer um morto no reflexo atrás de mim assim que eu fechar.

Apesar do cagaço, gosto desses filmes. Eles mexem numa parte ali do cérebro que beira o limite da realidade e faz a gente se curvar à inegável constatação de que não sabemos absolutamente nada sobre os mistérios da vida

Mas o filme de terror que verdadeiramente tranca o meu cy não tem espírito. Em português, ele tem o terível título de Corrente do Mal. Odeio ser essa pessoa que prefere o título original das coisas... ain, porque o título em inglês é muito melhor... Mas, nesse caso, o título em inglês é muito melhor mesmo: It Follows. Passa a ideia de uma-coisa-que-te-persegue. Tem a vantagem de não fazer o filme parecer um terror ruim, e já mete medo logo no título. Agora, Corrente do Mal é foda... Parece qualquer filme de terror genérico. 

A história pode ser interpretada como uma metáfora horrorosa sobre as infecções sexualmente transmissíveis, porque, na trama, uma garota descobre que recebeu um "encosto" depois de transar com um boy. Esse "encosto" é uma força maligna que fica de longe, seguindo a menina por onde quer que ela vá, e pode matá-la se chegar muito perto. Ela só consegue se livrar dessa coisa se transar com outro infeliz e repassar a maldição. E assim por diante... 

O que mais me encantou nessa história é que o "encosto" não se movimenta de forma rápida. Ele assume uma forma humana (qualquer uma) e anda a passos de formiga e sem vontade. Bem devagar. Lentamente. Sempre impassível. Sempre constante. Às vezes, a pessoa que ele segue até esquece da sua existência. Mas um dia ela tá lá se divertindo com os amigos e vê o filhote de cruz credo chegando perto. 

É uma das coisas mais ANGUSTIANTES do Universo. Primeiro, porque não importa o que você faça, ele sempre vai tá lá. Com seus micro passos. Só esperando você dormir ou se distrair para te pagar. Segundo, porque, se você não quiser ter que lidar com isso, você precisa repassar pra alguém. Na maldade. É um dilema ético. O que você faria? 

Não importa, não quero saber...

O que eu quero destacar aqui é como uma coisa tão lenta, tão morosa, tão discreta, pode causar tanto terror. O filme constroi o medo baseado na angústia que é não saber se a coisa vai te pegar ou não. O medo é a dúvida. Ou melhor, o medo é a ansiedade. Aquela que chega devagar, devagar, devagarinho...

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Humano demais pra ser humano

Lembrei desse filme porque assisti recentente a The Humans, na Mubi. Que não é um filme de terror. É baseado em uma peça de teatro que ganhou o Tony e foi adaptada pro cinema pelo próprio autor, Stephen Karam. 

Segundo o crítico Peter Debruge, da Variety, é a obra que "melhor captura os aspectos macro e micro do pós 11 de setembro". Na história, uma família passa o dia de ação de graças no apartamento vazio e caquético da filha mais nova que acabou de se mudar pra Manhattan. A trama é quase banal. Aliás, é bem banal: é uma família branca comum, com conflitos comuns e angústias comuns. Mas a beleza do filme vai se desenvolvendo nas brechas dos diálogos. Ou seja, é bem uma peça de teatro adaptada pro cinema mesmo. E é lindo.

Em uma entrevista, vi o autor comentando que as cenas se desenvolvem de forma muito lenta — sim, o filme é devagar, não veja com sono —, quase como se não tivesse acontecendo nada ali. Mas, de repente, sem alarde, sem pressa, o drama tá posto sobre a mesa, que nem o encosto do It Follows

Em uma cena bonita, perto do fim, o pai tem um possível insight sobre o significado de um sonho estranho que ele teve, no qual uma mulher sem boca e sem olhos tenta levá-lo para dentro de um túnel. E o diretor é hábil demais porque ele faz com que a gente consiga testemunhar esse insight se materializando na cara do ator (o Richard Jenkins), quase como se estivéssemos assistindo a explosão de uma estrela acontecendo dentro da mente de uma pessoa em câmera lenta. 

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A lentidão pode ser fatal

Uma vez, assisti a uma mostra virtual da artista sul-coreana Ayoung Kim. Eram vídeos bem doidos de ficção científica e distopias nos quais ela trazia reflexões interessantes. Uma delas era tipo...

A nossa ideia de apocalipse é sempre associada a catástrofes, né. Se as pessoas tivessem que apostar, a maioria diria que o mundo ia acabar com um meteoro, como aquele que detonou os dinossauros, ou com uma bomba nuclear, ou com um tsunami. Algo assim, rápido, que impacta a Terra toda de uma vez mata todo mundo logo. 

Mas por que o fim do mundo precisa ser rápido? E se ele for lento?

É isso que a Ayoung Kim questiona. Ela traz essa ideia de um apocalipse em câmera lenta. Um evento fatal que vai se desenrolando vagarosamente ao longo do tempo e que vai matando a humanidade aos poucos. Tipo... tipo o aquecimento global?

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É mais ou menos a mesma ideia do "relógio do fim do mundo", que conta as horas, bom... para o fim do mundo:

Não se trata de um objeto em si, mas de uma ilustração simbólica. Os ponteiros do relógio não se movem por meio de uma medida científica, mas de acordo com o parecer dos integrantes do conselho de ciência e segurança do Boletim dos Cientistas Atômicos (BPA), que se reúne duas vezes por ano para determinar o quanto falta para meia-noite [a última badalada].

Mesmo que outros projetos sejam parecidos, eu gosto da forma sutil como a Ayoung Kim anuncia a morte lenta. 


Cosmologia do rap

Esses dias ouvi uma entrevista da Tasha e da Tracie no podcast Podpah. Fiquei fascinado com a parte em que a Tasha diz que se inspirou em um conceito da astrofísica pra compor um rap

... Aí ele [o produtor MU540 (Musão)] me explicou que, tipo assim, se você passar muito rápido com o seu som tocando, ele vai tocar pras pessoas que tão ouvindo em slow motion. Ele falou que é o efeito de Dopler. Eu fiquei com isso na cabeça, e falei: 'Mano, vou fazer uma rima'.

E fez. A rima entrou em Salve, que é uma das músicas que eu mais escutei nos últimos meses — ao lado de Avohai, do Zé Ramalho, e Vermelho, da Gloria Groove. Ficou assim: "Conta nos placo que hoje eu vou dе pião/ Passei na nave a milhão /Meu som slow motion /É que a vida mudou, hein/ Você não botou fé/ Ainda bem que eu corri, né/ Ainda bem que eu não te ouvi, né."

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Fiquei fascinado porque acho que é exatamente isso o que faz uma obra de arte ser foda: a capacidade de mastigar uma referência, e cuspir ela de volta na cara das pessoas, mas digerida e transformada em outra coisa. Esse bolo amorfo e irreconhecível é o que eu reconheço como criatividade. Ela pode assumir qualquer forma. É o que eu busco fazer no meu trabalho de escrita. 

E o resultado fica ainda mais foda quando se juntam referências de áreas tão distantes quanto o rap e a astrofísica, mostrando que, na verdade, elas não são tão distantes assim.

No caso, a referência que a Tasha usou foi apenas "uma das janelas para um entendimento bastante profundo do Universo", como explica esse vídeo. O Efeito Dopler causa essa sensação de slow motion porque ele muda a frequência do som, deixando ele mais grave. 

A gente percebe isso quando uma ambulância passa com a sirene ligada. O som da sirene vai ficando mais grave conforme se afasta porque as frequências de ondas vão ficando cada vez mais espaçadas, até que o barulho se dissipa. É isso o que o Efeito Dopler provoca nas ondas do som. 

E ele também a atua nas ondas de luz, só que de outro jeito...

Nós não podemos escutar a luz. Mas, mesmo assim, a frequência dela muda. E é possível ver isso com os olhos. Enquanto, no som, uma frequência menor corresponde a um som grave, na luz esse tipo de frequência corresponde à cor vermelha. Já enquanto, no som, uma frequência maior corresponde a um tom agudo, na luz, essa frequência é azul. 

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"Tá, mas que caralhas isso quer dizer?", você deve estar se perguntando. 

Então, os cientistas descobriram isso porque, quando as primeiras imagens de telescópios começaram a surgir, eles perceberam que a cor da maior parte das galáxias puxava pro vermelho.

Uma explicação possível para isso é a de que elas estariam se afastando, como o som de uma sirene que vai sumindo no ar.

Mas por que as galáxias estariam fugindo de nós?

Ora, porque o Universo estaria se expandindo. Ou seja, a teoria do Big Bang — aquela que diz que o nosso Universo começou com uma explosão gigante há 13 bilhões de anos que continua até hoje — pode estar mesmo certa.

Toda a cosmologia moderna é fundada nessa ideia que brota no refrão de Salve. Logo, se a nave que passa a milhão da Tasha fosse uma nave espacial, muito provavelmente, ela seria vermelha... da cor da lanterna traseira da nave que toca o som da Gloria Groove. 


Final metalinguístico

Olha como as coisas são... Eu escrevo essas edições da PunkYoga aos poucos, conforme as ideias vão surgindo ao longo do mês, e conforme eu vejo as coisas se encaixando. Vai meio que no fluxo, uma coisa que eu não planejei, mas que, estranhamente, tem dado certo. 

Por exemplo, a princípio, eu tinha pensado em arrematar essa edição, que é sobre processos lentos, fazendo uma ligação com a ideia de que, se até o Universo tá se expandindo de forma lenta (na nossa percepção, né), por que a gente tem que ter pressa pra realizar coisas nada urgentes? 

Quando li isso que eu mesmo escrevi, achei que não ficou legal, não ornou, e resolvi apagar. Aí, em outro dia, lembrei desse trecho da entrevista da Tasha & Tracie, que coube como uma luva para o que eu queria dizer. 

Quando dei por mim, tinha voltado a escrever sobre a expansão do Universo — como você pôde perceber no último tópico.

Então, como o assunto tá me perseguindo, e como eu tô escrevendo essa edição no flow, vou ser obrigado a terminar dizendo que a pressa é uma ilusão. Eu não queria, mas fui obrigado. 

Se o que é devagar pode nos aterrorizar, como no filme Corrente do Mal; nos encantar, como nas cenas de The Humans; nos eliminar da face da Terra, como no aquecimento global; ou nos expandir, como no Universo; então não existe razão nenhuma para correr com nada, a não ser que seja por sobrevivência, né... Seja como for, coisas extraordinárias acontecem quando as coisas parecem paradas.

Não faz sentido nenhum acelerar processos, só porque nossa mente não suporta a monotonia. Ou melhor, não suporta e não consegue compreender que existem outras formas de perceber o tempo, e que, onde parece haver monotonia, na verdade, existe uma complexa trama de fluxos da vida se desenrolando. 


Essa é uma newsletter quinzenal, que sai às sextas-feiras, sempre por volta do dia 15 e do dia 30. Se você for uma pessoa atenta, vai perceber que falhei miseravelmente em novembro. Mas não vou ficar me lamentando, não. É muito difícil conciliar a Copa com a preparação pras festas de fim de ano, que horas a gente fica sóbrio?

Sei que ninguém vai bater na minha porta exigindo uma explicação sobre o atraso com um mandato de justiça. E acho isso ótimo. Mas também gostaria de oferecer um pouco de regularidade a quem se dedica a abrir esta humilde cartinha para ler as palavras sem sentido que eu digito aqui. 

Tem gente que me escreve sempre (meus amigos queridos, amo vocês). E tem gente que me lê no sigilo, como a Maria Cláudia, que resolveu deixar de ser sigilosa e me escreveu uma mensagem tão bonita que deu vontade de enquadrar. Acabamos conversando por uma hora sobre psicodélicos no telefone...

Apesar de parecer um objeto estático, a newsletter circula. E me leva a conhecer pessoas que eu jamais conheceria se não sentasse minha bunda na cadeira e escrevesse sobre as barbaridades que surgem na minha mente. É mais uma prova dos fluxos de vida que se desenrolam sem a gente perceber. 

Se você curte o que lê aqui, me ajude a continuar seguindo esse fluxo. Considere indicar a newsletter pros amigos alucicracy, e assim a gente vai driblando os algoritmos do mal. 

Eu adoro trocar ideias. Se alguma coisa aqui te inqueitou, sinta-se à vontade pra me responder esse e-mail, ou me acha lá nos instagram da vida @nathanef e @punkyoga_

Na sexta que vem eu volto com a Microdose de PunkYoga, e os links mais desbaratinados que passaram na minha frente. 

Vai pela sombra e fica na paz de Bowie.

Com amor y anarquia,

Nathan

Se você chegou aqui através de um link, deve tá pensando: "Como eu assino essa newsletter maneira?". Ora, é só deixar seu e-mail aqui. E dá pra ler as edições anteriores aqui também. Se não curtiu e tá aqui lendo esta última linha, admiro sua capacidade de autoflagelação.