#15 - a internet socialista chilena
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#15 - a internet socialista chilena

Em 1972, o Chile de Salvador Allende colocou pra rodar um dos primeiros sistemas a utilizar computadores on-line para aplicação civil. Como seria o mundo ser o regime militar de Pinochet não tivesse destruído o programa?

Fred Fagundes
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#14 - a internet socialista chilena

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Transcrição do episódio:

Eu estava ouvindo o Braincast 416, sobre como o computador pessoal entrou em nossas vidas (inclusive é um episódio que ficou muito bom e faz total sentido pra quem viveu a febre da Internet doméstica nos anos 90, os discadores gratuitos, o os 486, os Pentium 100, 166, aqueles CPU com botão turbo, enfim). Tempos mais complexos, especialmente para ter acesso a informação. E durante o programa eu fui recordando uma presepada que eu mais dois amigos fizemos em 1998 para conseguir reunir 27 arquivos de 2 megas cada num só dispositivo. 

Duas perguntas que talvez você esteja se fazendo: primeiro, por que era tão difícil? Bom, os gravadores de CD não eram tão acessíveis no final dos anos 90. USB? Pen drive? Nem pensar. E um disquete, aquele que é o ícone de salvar até hoje, tinha capacidade pra só 1.44mb. Ou seja, mesmo com 50 disquetes, a gente não ia conseguir. 

A outra pergunta eu acredito que seja: o que era tão importante assim que merecia esse esforço todo? Não só merecia como valeu muito a pena, viu? Era GTA completo. Depois de 6 meses jogando a demonstração que veio na Revista CD ROM número 31, da Editora Europa, eu encontrei um site que tinha GTA grátis e completo. Um site chamado Acid Nuts. O problema era esse: o jogo completo estava dividido em 27 arquivos de 2 megas. Isso era normal porque era praticamente impossível alguém copiar um arquivo de 54 megas de uma vez em 1998. Além da queda de internet ser normal, o que obrigaria você a recomeçar o download, 54 megas demoraria umas 20 horas se você tivesse sorte. 

Pois bem, o que nós fizemos: dividimos o download do jogo em 3. Cada um ficou responsável por 9 arquivos. Duas madrugadas depois, com os 27 arquivos divididos em 3 computadores, nos reunimos com o CPUs. Fizemos uma rede com aquele cabo azul clássico, que até hoje é utilizado pra ligar o modem no roteador, e fomos dividindo os arquivos. Após tudo isso, enfim, tínhamos GTA completo. Jogamos e fomos felizes demais. E ainda bem que deu tempo. Ao contrário do que aconteceu no Chile, em 1972. Quando o governo socialista de Salvador Allende embarcava numa das primeiras experiências com a Internet na América do Sul. E quase deu certo.

Estamos em Santiago, Chile. Novembro de 72. A greve dos caminhoneiros, que já durava semanas começava a provocar efeitos na economia. A população demonstrava frustração com o aumento dos preços. Consequentemente, a oposição do presidente Allende inflamava manifestações contra o governo.

Para Allende, aquele se tornou o momento certo para experimentar a criação do britânico Anthony Stafford Beer, um cientista que se dividia entre Londres, Santiago e Moscou. Ele trabalhava no desenvolvimento de novas tecnologias de controle de informação. No Chile, ele teve o aval do governo para criar aquela que seria a sua maior invenção: o Cybersyn, um sistema de informação integrado projetado para monitorar a atividade econômica das empresas ligadas ao Estado chileno.

Antes mesmo da chegada do britânico, a equipe do Projeto Cybersyn no Chile colocou o sistema pra rodar. Em diferentes pontos da Grande Santiago, começaram a ser enviados dados por telefone para o centro de operações, que rapidamente fazia levantamentos do conteúdo de grandes armazéns de mantimentos. Com essa informação, o governo implantou um esquema de abastecimento da capital com os poucos caminhoneiros que não haviam aderido à greve.

E como funcionava isso: à medida que a quantidade de produtos diminuía, o governo sabia onde buscar mais recursos. A ferramenta indicava onde o governo deveria alocar mais ou menos recursos, de acordo com as circunstâncias, analisadas em pouco tempo.

A ação foi um sucesso e entusiasmou o presidente Allende, que apostava também em resultados a longo prazo. O cientista Anthony Beer aceitou o convite para integrar a Corporação de Fomento da Produção e o projeto cibernético socialista. A ferramenta ganhou acabamento técnico, novos computadores e, claro, maior verba orçamentária. Dessa forma, foi criado o SYNCO – Sistema de Informação e Controle.

Pra se ter uma ideia de como eles estavam avançados, naquele mesmo ano, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos desenvolvia a ARPANET, percursora da Internet que conhecemos hoje, mas ainda sem nenhuma aplicação civil. Ao contrário do Chile, com a bem sucedida campanha online durante a greve dos caminhoneiros. 

A meta de lançamento da SYNCO era agosto de 1973. Ela ligaria todas as empresas estatais do país através de uma rede de computadores que gerasse informação quase em tempo real.

Mais do que um instrumento dedicado somente ao monitoramento, o projeto, na cabeça do Stafford Beer, deveria se dedicar também a sociedade. Ele pensava numa rede de computadores que pudesse ser acessada pelas pessoas em suas casas, que cada lar chileno pudesse ter um terminal do SYNCO, onde se poderia transmitir informação sobre necessidades econômicas pessoais ou comunitárias, além pesquisar dados sobre o desempenho da economia e outras informações a respeito do que acontecia no país.

Loucura, né. Mas em 1973 as coisas complicaram. 

Quando as notícias do projeto começaram a vazar, um jornal inglês colocou na manchete: “O Chile é governado por um computador”. Pegou mal. Pra piorar, o Chile vivia a angústia de um possível golpe militar. À medida que a situação política e de segurança do país se deteriorava, Beer e a sua equipe chilena perceberam que o tempo estava se esgotando para o projeto.

Allende permaneceu fiel ao SYNCO até o final. Em 8 de setembro de 1973, ele deu ordens para que a sala de operações fosse transferida para o palácio presidencial. Mas três dias depois, os militares liderados por Augusto Pinochet tomaram o poder e Allende morreu naquela tarde.

Os militares, claro, jamais entenderam o SYNCO e a sala de operações foi destruida. Vários membros da equipe foram para o exílio. Já Stafford Beer foi expulso do país e obrigado a voltar para a Inglaterra, onde morreu em 2002.  

Já parou pra pensar como seria se o Allende tivesse impedido o golpe do Pinochet e o projeto SYNCO aplicado no Chile? Uma gestão baseada em Big Data, decisões tomadas a partir de algoritmos, tecnologias de cidade inteligentes já nos anos 70? 

Acho que teríamos demorado menos para usufruir de alguns confortos da tecnologias. E os disquetes certamente teriam mais espaço de armazenamento em 1998. 


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Fonte: Opera Mundi.


Sobre o autor: Fred Fagundes é jornalista, produtor de podcasts e dono das melhores vagas em estacionamentos. Em caso dúvidas ou sugestões, entre em contato via redes sociais ou pelo e-mail: qmat.podcast@gmail.com.