#23 - licença poética
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#23 - licença poética

Quando viver de licença poética se torna um vício.

Fred Fagundes
6 min
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#23 - licença poética 

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Transcrição do episódio:

A licença poética, numa definição literária, é “liberdade do escritor para utilizar construções não conforme às regras, ou uso habitual, para atingir seus objetivos de expressão”. Algo bastante presente na literatura, música, propagandas. 

É um jeito bonito de florear uma história. De dar uma forçadinha de barra. Deixar a situação mais interessante, mais chamativa. Não é mentir. Por isso da ‘licença’ do termo. Né, a gente tá falando de um acréscimo, não uma invenção. 

Ao mesmo tempo, é preciso ter muito equilíbrio pra não valorizar demais um fato. As vezes a história é contada de um modo porque era aquilo que você queria que realmente fosse verdade. E aí quem tá ouvindo e gosta simplesmente retransmite.

Existem algumas pessoas que fazem isso sem precisar. Por puro capricho, ou talvez carência. Quem sabe um excesso de confiança ou deboche. Mas o fato é que eles contam e a gente, quando respeita o histórico daquela pessoa, acredita. 

Com uma pulguinha atrás da orelha, mas acredita. 

Por exemplo. Alguém recuperou no Twitter há alguns dias uma entrevista do Chico Buarque, acho que de 2015, onde ele conta que a Radiohead só tem esse nome por causa de uma música dele. 

E ele vai além. Ele disse que contou essa história pro baterista do Radiohead num daqueles amistosos da Unicef. Amigos do Figo x Amigos do Zidane, em 2007. 

A história a seguinte. O David Byrne teria o verso "rádio cabeça" na música "O Último Blues”, da Ópera do Malandro. Ele inclusive cantou "A Volta do Malandro" no Canecão, em 2004. 

Mas enfim, segundo a teoria Buarquiana, David Byrne achou que rádio cabeça era uma expressão que se usava muito no Brasil e fez a música "Radio Head", que é faixa no disco True Stories, de 1986. E é dessa música a origem do nome do Radio Head.

Então, na prática, pelo menos pro Chico, o nome Radiohead veio de uma canção da Opera do Malandro. Pode ser verdade? Pode. Forçou? Um pouco. Até porque não há registro de algum integrante do Radiohead ter participado desse amistoso festivo.

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A segunda lembrança da nossa lista vem do Rei da Licença Poética. Paulo Santana. Pra quem não conhece, Paulo Santana foi um dos maiores comunicadores do Rio Grande do Sul. Num mesmo dia ele estava na TV comentando o julgamento de "O.J." Simpson, reclamando do preço do cigarro na Rádio Gaúcha e escrevendo uma relação do governo Sarney com comida de avião no jornal. Um homem excêntrico, bom vivant a moda antiga, que gostava de opinar sobre tudo. 

Vamos falar agora de Duda Garbi.

Duda é de uma geração bem diferente. É jovem, cresceu já na era digital, foi um consumidor de blogs, é um comediante clássico que tem no Youtube a sua grande ferramenta de divulgação. Pouco antes, em 2010, o Duda tinha um quadro na Rádio Atlântida onde funcionários do grupo RBS recebiam trotes. O Grupo RBS é o maior conglomerado de comunicação do sul do país, dono da Rádio Gaúcha, Zero Hora, Rádio Atlântida, Sport Clube Internacional e por aí vai. 

Pois bem, o Santana sempre gostou de cantar. As vezes no meio do comentário metia um Benito de Paula, um Paulinho da Viola, era o jeitão dele. E o Duda inventou de passar um trote como produtor do Zeca Pagodinho convidando Paulo Santana para uma participação especial no próximo CD do sambista. 

O resultado foi o seguinte. 

Vale lembrar sempre que Santana era uma entidade da comunicação. Mexer com ele, fazer algo que o incomodasse, era justa causa pra qualquer funcionário da RBS.

No dia seguinte ao trote, que não tinha ido ao ar ainda, o áudio passava por uma edição antes de ir pra rádio, veio a surpresa. Santana havia colocado no título de sua coluna em Zero Hora: 

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Imagine a reação de quem preparou esse trote. Como ele iria explicar para o Santana que não era bem assim. Que era só um trote. 

O Duda explica muito bem essa história. Que ele foi até o seu chefe imediato, um dos diretores da rádio, explicou a situação e perguntou: “e agora, o que a gente faz?”.

O diretor respondeu: “a gente? Eu tô fora, se vira”.

Tudo deu mais ou menos certo no final das contas. O Santana foi comunicado pela alta cúpula da emissora que era só um mal entendido. Ele por um tempo ficou chateado com o Duda, mas passou. Curiosamente, Duda é autor de uma das mais populares imitações de Paulo Santana, o Santaninha. Não é a mesma coisa que cantar com o Zeca, mas certamente é uma grande homenagem. 

Um outro caso bastante incoerente é com mais um grande nome da crônica brasileira: Chico Anysio. No início dos anos 2000, Chico deu uma entrevista à Folha de S. Paulo falando sobre seu novo projeto: cinema internacional. Pois é, ele tinha cansado de fazer roteiro em português, porque, segundo o Chico, só filmavam 8 filmes por ano no Brasil: 3 histórias do Jorge Amado, 3 do Nelson Rodrigues e outras 2 do diretor.

Quando o repórter perguntou pra quem ele mandava os roteiros, a resposta foi assim: 

Depois de amanhã, um deles, "Big Leo", chega ao Spike Lee. Em maio, vou ter um encontro com Robert De Niro, vou entregar para ele "The Analyst". Mas não é para o Robert De Niro filmar. É para dirigir. Eu quero botar na cabeça dele que ele dirija. Outro roteiro, "The Widow", está com a Sally Field. Tenho 35 roteiros.

O repórter pergunta se algum já foi filmado. Ele responde: 

Nenhum. Estou esperando o dia de me abrirem a porta. Eu tenho um filme, "The Friar", que está com o Sean Connery, pode ser que ele filme. Ele deu uma entrevista ao Larry King e disse: "Eu acho que vou fazer um filme de um brasileiro". Levei um susto. Ele começou a contar a história -de um frade que chega a uma vila de pescadores na Irlanda-, eu quase morri, era o meu!

Pois então. Quatro anos depois, no Programa do Jô, ele falou um pouco mais sobre os roteiros em inglês. E aí a história foi bem diferente. Parece que o mensageiro do roteiro morreu antes de levar a história ao Sean Connery. E que o Michael J. Fox poderia assumir outro projeto.

Dá só uma conferida. A partir do minuto 8:

É aquilo que eu disse lá no começo. Os caras são tão geniais que não dá pra saber se é verdade, se é devaneio ou se é simplesmente um deboche. 

E falando em deboche.

Chegou a hora dele.

Didi.

Ou melhor, Dr. Renato.

O Didi jura de pé junto que o rapper P Diddy tem esse nome porque a mãe dele, angolana, era fã dos Trapalhões. Olha só o relato dele, mas uma vez no Programa do Jô. 

Acontece o seguinte. P Diddy é, obvio, um nome artístico. O nome real dele é Sean Jhon. E ele nasceu em Nova York, no Harlem, filho de Janice e Melvin Combs, que não tem nada de angolanos. 

Os Trapalhões até passaram na TV de Angola, só que entre 86 e 90. E o cara nasceu em 69. Ou seja, passou longe.

O Didi só faltou fazer aquele movimento com o pé que ele fazia, lembra? De quando contava uma mentira? Faltou poesia, prosa, verso e tudo mais pra essa licença . 

Um exagerinho não faz mal a ninguém.

O problema é quando você acredita na própria mentira.

Aí não tem vacina. E muito menos tratamento precoce. 



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Sobre o autor: Fred Fagundes é jornalista, produtor de podcasts e dono das melhores vagas em estacionamentos. Em caso dúvidas ou sugestões, entre em contato via redes sociais ou pelo e-mail: qmat.podcast@gmail.com.