O dia em que QualquerHum reencontar a Prudência
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O dia em que QualquerHum reencontar a Prudência

Ana Beatriz
3 min
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O ano é 2023 - embora pareça 1984 - e QualquerHum tem uma das ocupações mais cobiçadas do momento: palpiteiro de rede social. E tem todos os atributos necessários para desenvolvê-la: muita coragem atrás das telas, rigidez com o comportamento alheio - e nenhuma com o seu - pouca preocupação com os fatos e zero culhão no mundo real.

QualquerHum não faz por mal, pois busca a tal da justiça social - até rima. Então mune-se de opiniões vazias e cheias de ingredientes indispensáveis para uma luta virtual: achismos colocados como verdades, frases prontas que desconhece a fonte, especialistas cuidadosamente selecionados para corroborar sua tese e claro, o orgulho de ser quem tem opinião sobre tudo.

QualquerHum vai seguindo a vida palpitando ferozmente e julgando tudo aquilo que lhe vem ao alcance do celular. Fala até do que não leu, não viu, mas melhor que tudo isso, ouviu falar. Parece verídico e alinhado com o que penso? Então deve ser. É sobre alguém que nem conheço, mas não gosto? Que se lasque. Afinal, que mal faz mais um comentário de QualquerHum dentre milhares? Para a harmonia do mundo digital nada melhor que acabar sumariamente com a vida real de alguém que ousou livremente falar sobre algo que não se pode falar, nem pensar, e pior, que contraria o que QualquerHum pensa. QualquerHum é imparável.

Mas o destino, traiçoeiro como pode ser, prega uma peça em QualquerHum, que é flagrado ele mesmo no tal do crime sem lei, aprimoramento recente do sistema persecutório vigente. Em violação à lei e à sua privacidade - que é o menos importante, claro - desnudam sua vida, sem pudores, como um rolo compressor. QualquerHum vira o espantalho da vez, e, embora tente argumentar, Ninguém quer escutar - olha aí, rimou de novo. 

QualquerHum não tem vez contra uma hipnotizada matilha raivosa e sedenta por um deslize, um mal entendido, ou pior ainda, por uma mera opinião dissidente. Mesmo desconsiderando detalhes, pormenores e contextos, exterminar o diferente, sem chance de defesa, é o ato democrático pelo qual vinha lutando e, por ele foi, rigorosamente julgado no plenário dos ungidos. Foi o pior dia da vida de QualquerHum. 

Avaliando seu previsível final infeliz, QualquerHum percebe que ao ignorar os Outros, alimentou o mesmo monstro que o consumiu sem cerimônias. Ah! se não fosse o duro golpe da realidade para se reencontrar com a sua esquecida, menosprezada, ignorada e tão preterida amiga Prudência. Não precisava ser assim.

De qualquer forma, QualquerHum será bem-vindo de volta ao mundo real, pois, dia mais dia menos, os histéricos virtuais serão reconvertidos em meros mortais - a última rima dessa tragicômica história atual.