001: Da verdadeira medida das coisas
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001: Da verdadeira medida das coisas

Pensamos tanto na criação artística como um embate, Apolo e as musas impondo uma forma bela à matéria caótica do mundo, focando o que há de interior nessa luta, ao nível da consciência, da vontade transfiguradora, da carne até. Nas entradas d...

Ricardo de Carvalho
4 min
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Cena de Andrei Rublev (1966), de Tarkovki.
Cena de Andrei Rublev (1966), de Tarkovki.

Pensamos tanto na criação artística como um embate, Apolo e as musas impondo uma forma bela à matéria caótica do mundo, focando o que há de interior nessa luta, ao nível da consciência, da vontade transfiguradora, da carne até. Nas entradas destes Diários (1970-1986) de Tarkovski (É Realizações, 2012) aparecem volta e meia algum relato de outra espécie de briga, do diretor de O Sacrifício (1986) pela sobrevivência pessoal, e nos damos conta de que a luta artística é também contra potências exteriores.

E, sob um regime comunista como o das URSS, essa briga se dava contra os burocratas, os homenzinhos responsáveis pela liberação da verba estatal destinada à feitura dos filmes. Eles, quase sempre figuras das mais medíocres, eram quem decidiam o que podia ser filmado e como seria filmado, além da distribuição.

Assim, sobra exasperação nas páginas dos diários (que ele chamou de martirológios com alguma ironia, ainda que o valor espiritual que ele reconhecia na arte dava a ver o fundo de verdade na brincadeira), ao contar como lidava com gente cujo nível de consciência estava muito abaixo da dele. Como, por exemplo, quando os burocratas vinham com as justificações mais estúpidas para exigir a alteração de alguma escolha estética. E ele já era um autor reconhecido pelos seus pares no resto do mundo, e premiado em festivais como o de Cannes e o de Veneza, quando iniciam os primeiros registros dessas notas.

O que só faz aumentar a admiração da gente, nós daqui do futuro pós-apocalíptico num suposto mundo livre. Acabamos por ver como ele, diante das mil limitações e dos pedidos bizarros de mudanças no roteiro (impostas por pessoas sem o mínimo de gosto ou de sentido sobre o que é arte), usou sua vontade firme para driblar as imposições e criar uma das obras cinematográficas mais fortes do século passado.

É difícil não fazer comparações com a nossa realidade cultural e política, supostamente contrária àquela da URSS. Porque, se são diferentes os meios de produção e circulação das artes, o ecossistema inteiro está tomado por gente tão estúpida quanto aquela com quem Tarkovski precisava lidar. Desde o topo da instância do governo (cuja autoridade maior agora está passando das mãos de um ex-galã de novelinha adolescente para uma cantora de axé), passando pela ausência de um sistema de crítica, até ao público que foi deseducado pela elite supostamente pensante do país.

(Aliás, preciso dizer que essa comparação entre as duas situações, a dos comunistas com a nossa, me vem mediada pela lembrança deste vídeo do Ronald Robson, em que ele compara a situação da Romênia da época do experimento pedagógico do filósofo Constantin Noica, também sob o jugo do socialismo, com a de nosso país).

Mas nem era disso o que eu queria falar.

Em meio a uma dessas reclamações justas sobre o ambiente cultural russo (“Deus! Que nível! Consumista e insignificante!”), Tarkovski cata um trecho de uma intervenção a um debate universitário sobre seu Andrei Rublev (1966). Ironicamente, a fala veio de um professor de matemática, não de alguém ligado às humanidades. Vale a pena repetir a citação inteira:

“Quase todos os oradores perguntam por que lhes fazem sofrer durante três horas quando assistem a um filme. Vou tentar responder. O fato é que, no século XX, aconteceu certa inflação emocional. Quando lemos nos jornais e sabemos que na Indonésia foram mortos à faca dois milhões de pessoas, isso nos causa o mesmo efeito que a mensagem de que a nossa equipe de hóquei venceu um jogo. Isso produz uma impressão igual! Então percebemos uma enorme diferença entre esses dois eventos! Em essência, os limiares de percepção acham-se tão alinhados que não percebemos a diferença entre os dois acontecimentos. Mas não quero moralizar sobre isso. Talvez sem isso não pudéssemos viver. Mas há artistas que criam a sensação da verdadeira medida das coisas. Eles carregam esse peso por toda a vida, e nós precisamos ser gratos por isso!

Essa percepção da mídia em sua operação de nivelar as emoções do público nem nos é estranha, já ouvimos denúncia disso mil e tantas vezes. Na verdade, falta dar o passo seguinte e atualizar essa percepção. A mídia cada vez mais passou a inflar a resposta emocional do público diante de eventos de valor pequeno ou nulo. E, quando não silencia os acontecimentos realmente importantes, trata deles como se não fossem nada. Falar disso já nem é questão de moralizar o problema, mas de nos darmos conta dos graves prejuízos para a cognição do povo que essa desordem programada causa. 

Em vez de invocar as musas para moldar essa matéria trevosa e levar ao mundo exterior uma arte ordenada aos princípios (sem negar as trevas, porque negá-las é clamar por uma neurose; o artista autêntico sabe integrá-las, pois sabem que as sombras ajudam a ressaltar a importância das luzes), lançam suas sombras à sociedade para moldá-la, rebaixando-a aos desejos mesquinhos de seus egos inflados de nada e de escórias.