002: Homenagem a Olavo de Carvalho no primeiro ano após seu passamento
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002: Homenagem a Olavo de Carvalho no primeiro ano após seu passamento

Desde 24 de janeiro do ano passado que o nome de Olavo de Carvalho aparece quase todo dia como trending topic do Twitter. Uma parte é em fala de admirador, e a outra é na de detratores. Um símbolo interessante costuma ser publicado nos resmun...

Ricardo de Carvalho
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Desde 24 de janeiro do ano passado que o nome de Olavo de Carvalho aparece quase todo dia como trending topic do Twitter. Uma parte é em fala de admirador, e a outra é na de detratores. Um símbolo interessante costuma ser publicado nos resmungos, xingamentos e deboches (estes, exemplos do gênero que o professor definiu precisamente como "argumento de puta"): um emoji de caveira: 💀. Muito comuns são os memes em que se usam da simpática imagem para rirem do simples fato de que ele morreu.

Acho curiosa essa obsessão por lembrar seu falecimento, como se fosse um demérito morrer, uma vergonha, algo ridículo, risível. Ainda mais que ele se foi em idade avançada (5 anos depois da conta que Dante dizia ser a idade perfeita para que um homem pudesse cumprir com sucesso sua missão neste degredado vale de lágrimas).

E mais, deixou-nos após conquistar mais do que planejara para sua vida: ser um simples filósofo num país que odeia o pensamento. Olavo venceu o Brasil, sustentou-se com seu magistério (foi best-seller editorial e professor de centenas de alunos no Curso Online de Filosofia) fora do esquema de pirâmide que é o sistema universitário. Tudo isso brigando sozinho com o conjunto da classe cultural do país, inclusive vencendo-a, algo que nunca será perdoado.

E essa obsessão por Olavo se apresenta como uma imensa bobagem quando lembramos que um dos principais elementos de sua filosofia (que é desconhecida não só pelos esquerdistas, como também pela maior parte de uma direita que só existe por sua causa, para desgosto de liberais e intervencionistas de toda sorte) é a questão da morte.

Quem faz o COF recebe, na primeira aula, a tarefa de fazer o próprio necrológio: imaginar-se que morreu, tendo conseguido viver um ideal projetado na juventude para o resto da sua vida; o texto será um depoimento ficcional de um amigo em que será exposto o significado da passagem pelo aluno em nosso mundo. Seguem-se nas aulas seguintes, ao longo do primeiro ano, todo um percurso para reintegrar a alma do estudante para que ele possa desenvolver uma personalidade filosófica.

Segundo Olavo, a consciência da imortalidade da alma, sem a qual não se pode filosofar, depende de se ter constantemente a própria morte diante dos olhos. Numa das falas que mais me impactaram no belo documentário O Jardim das Aflições (2017), de Josias Teófilo, Olavo diz que a vida de uma única alma supera em muito a duração de toda a história humana - estou sempre pensando nisso, embora o assombro mal me deixe tocar a substância dessa ideia.

Poderia citar muito mais das suas meditações sobre a indesejada das gentes. A consciência de que os mortos agem sobre os vivos com mais força do que os próprios vivos. Que o maior dos poderes humanos seja o profético, por superar a continuidade das gerações no mundo. A morte individual como ponto de partida da metafísica.

É nisso aí que reside a grande ironia, que o ressentimento não deixa seus zombadores captarem o vazio do sarcasmo: hoje, um anos depois de sua morte, Olavo está mais vivo do que a gente.

Lembro de um ensaio muito bonito de Eric Voegelin, cujo nome me escapa, em que comparava um trecho do Novo Testamento com o de um dos diálogos de Platão. Em ambos, falava-se que o sacrificado em questão (Sócrates ou Jesus Cristo) iria para a vida, enquanto a sociedade continuava na morte. E era verdade: os cidadãos atenienses e a turba judia viraram pó, seus reis caíram, restam ruínas só de suas cidades, quando não soterradas. Mas a consciência de Sócrates e o sangue de Cristo não cessaram de insuflar vida nova no Ocidente. 

Que a má vontade e a murrinha não deixem ver que haja equiparação nessa lembrança. Não quero profetizar que a cultura brasileira será moldada pelas palavras de Olavo de Carvalho, como o Ocidente foi moldado pelas falas de Sócrates diante dos acusadores e discípulos e pelo Sermão da Montanha. Se invoco os dois, é porque Olavo tomou-os como figuras a serem imitadas no seu projeto filosófico. Sócrates foi o modelo do COF, e a imagem do Cristo abandonado e erguido na cruz, o excluído dos excluídos por todos os poderes humanos que sustentam uma sociedade, serviu ao professor como um símbolo para expressar uma postura privilegiada de observação do mundo.

E se digo que sua personalidade está mais viva do que as nossas, não é tendo em vista um futuro sobre o qual podemos dizer pouco. Como ele frisou em seus estudos sobre a mentalidade revolucionária, o pensador que diz como será o fim da história usurpa algo que nem esteve ao alcance de Jesus. Lembremos que, perguntado sobre a data do fim dos tempos, o filho de Maria nada disse, por ser um conhecimento que só o Pai guardava.

Digo por causa do nosso presente, pelo modo como todo o caos que nos oprime já estar descrito na sua trilogia dos anos 1990: A nova era e a revolução cultural (1994), O Jardim das Aflições (1995) e O Imbecil Coletivo (1996). Vão lá ler, ou reler, e vejam que não só os fracassos de Bolsonaro, que insistiu em não ouvi-lo (ao contrário do que faz pensar o título de guru do bolsonarismo que a união de todas as ignorâncias impingiu nele), já foram vaticinados, assim como estava escrito a forma como o novo governo PT absorveu toda a classe intelectual, os partidos e a mídia para o projeto de se colocar acima da nação que dizem representar. Eu mesmo comecei a releitura dessas obras após ouvir o episódio piloto do clássico podcast True Outspeak, em que, ao fim do episódio, Olavo enumerava o que um governo deveria fazer -- nada do que Jair fez.

Mas leiam principalmente por causa da pérolas que estão lá e que a gente não se deu conta ainda de que estão. Eu só percebi através de seu principal continuador, Ronald Robson, que escreveu Conhecimento por presença: em torno da filosofia de Olavo de Carvalho (2020). Confesso que tenho dificuldade de mentalizar algumas dessas ideias, percepções de certos extratos de realidade que somente Olavo prestava a devida atenção em nosso país.

Já perguntei diretamente a Ronald sobre esse tipo de conhecimento, embora eu possa ter intuído algumas das implicações decorrentes da possível absorção desses problemas em nossa cultura -- inclusive Ronald apresenta, como criação própria, desenvolvimentos instigantes e insuspeitados de algumas das visões do mestre.

Repito aqui o que está na orelha do livro, só para vocês sentirem, ainda que de longe, o drama:

A unidade de conhecimento e de autoconhecimento - nota profunda da Filosofia de Olavo de Carvalho - só pode existir, ainda que apenas como ideal, para uma mente que, entre ciência e ética, entre metafísica e política, não veja hiato algum. O cerne de sua filosofia está no convite a que agarramos - como quem toma, com as próprias mãos, coisa palpável - a materialidade da presença; está na proposta de que a metafísica seja violentamente materializada. Em oposição ao "materialismo espiritual", estabelece um espiritualismo material: "o 'materialismo' de um mundo feito de Espírito, transparência, inteligibilidade".

O que há é que não tem como a gente dizer que essas sementes brotarão e crescerão com o vigor com que foram lançados. E, se novo jardim nascer no deserto, é bem fácil que não seja para breve. Sempre converso com os amigos que, se Olavo chamava à nossa consciência os exemplos de Sócrates, Platão e Aristóteles, não é descabido lembrar do futuro imediato dos discípulos de cada um deles (Sócrates foi morto pelos seus, Platão teve só o Aristóteles à sua altura, e Aristóteles ajudou a desenvolver a personalidade poderosa de Alexandre Magno) para tentar um exercício de previsão do futuro próximo do olavismo. Pode-se se esperar que, de primeira, serão poucos os que levarão à frente o legado do autor da A Dialética Simbólica (2006) na mesma estatura, ou maior até. Ou que se demore uns dez, vinte anos para que os alunos de hoje (pois continuam a surgir alunos novos, e surgirão ainda) criem obras poderosas em profusão.

Ou nada disso: a lição de morte do espírito (essa sim, a verdade morte a ser temida, a ser rebaixada) em nossa terra está lá todinha em sua obra, embora caiba-nos refazer sempre a pergunta que Olavo, em O futuro do pensamento brasileiro, de 1998, diz acerca da dívida existencial do nosso país: o que fizemos com os talentos que recebemos de Deus, que obras apresentaremos diante do tribunal divino?

P.S.: Se não ficou claro, que se perceba que esta carta, além de homenagem ao querido professor, é uma tomada de consciência pessoal de quem escreve, em vez de admoestação a quem não quer ouvir o que ele disse.