Na memória
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Na memória

11 de junho de 2006, Aparecida-SP.

Ricardo Biazotto
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11 de junho de 2006, Aparecida-SP.

Era o terceiro dia da Copa do Mundo e o que eu mais queria era passar o tempo todo no hall de entrada do hotel assistindo aos jogos. Estava morrendo de saudade da empolgação e da alegria que senti ao comemorar o título da Copa da minha vida, quatro anos antes, e não queria perder nenhum lance de cada partida.

Obviamente que isso não seria possível sendo apenas um menino acompanhado da avó e da tia-avó em uma viagem que deveria ser dedicada às orações, mas na manhã daquele domingo uma situação se tornaria uma lembrança muito maior do que alguns dos gols que vi ao vivo ao lado de ilustres desconhecidos que também ficavam parados em frente da pequena TV em cada nova oportunidade.

Tudo aconteceu no corredor de um dos andares do hotel. Estávamos os três voltando para o quarto, depois de fazer alguma coisa qualquer, quando um jovem casal passou do nosso lado e tia Adélia disse com um sorriso amável:

— Olá, tenham um ótimo dia!

Um silêncio reinou no corredor vazio e escuro daquele hotel. Ao não receber nenhuma resposta do casal, tia Adélia se virou e os observou se afastando até o elevador, enquanto mantinha uma expressão indignada no rosto.

Ela não conseguia compreender a falta de simpatia de responder um simples ‘bom dia’.

Ainda me lembro que corri até a janela logo que entramos no quarto, para observar encantado a Basílica de Aparecida distante e ao mesmo tempo quase me tocando devido a grandiosidade de sua construção, enquanto ela demonstrava para a minha avó a sua indignação com a atitude daquele casal.

E a cena nunca mais saiu da minha memória.

A partir daquele dia, eu juro que tentei ser mais sociável e dizer um simples ‘bom dia’ para todas as pessoas com quem encontro na rua. Na maioria das vezes eu falhei, outras tantas as próprias pessoas pareciam não querer o ‘bom dia’, mas o que me importa é que essa cena tão simples ensinou e muito ao pequeno Ricardo, permanecendo todos esses anos na minha cabeça e no meu coração, ainda que eu esteja muito distante de ter a amabilidade da minha tia.

Também guardo na lembrança as tardes que na minha infância passei em sua casa. Foram muitas tardes assim e o que mais me chamava a atenção era um quadro pendurado na parede da sala, ostentando com orgulho o que seu marido fez pela nossa pátria ao representar o Brasil na Segunda Guerra Mundial. Talvez por timidez eu não tinha coragem de fazer as 1001 perguntas que fervilhavam na minha cabeça, questionamentos sobre o quadro, sobre o meu falecido tio que eu não conheci ou sobre as histórias da guerra, mas no dia seguinte sempre abordava o meu avô para fazer perguntas que pudessem calar a minha curiosidade.

E a cada resposta que ele dava me enchia de orgulho saber quem foi o meu tio Zerneri.

Em uma das últimas vezes que visitei tia Adélia, ainda antes da pandemia que nos privou de tantos novos últimos encontros, perdi o receio e fiz as perguntas que a minha versão criança era incapaz de fazer. A emoção tomou conta dela ao revelar que quando os soldados pinhalenses retornaram da guerra houve uma grande recepção para homenageá-los e ela estava presente no festejo que culminou no primeiro encontro de seus olhos e no início de uma grande história de amor.

Foi amor à primeira vista; um amor de cinema; um amor que talvez nem exista mais…

Nesse último encontro ela também revelou quem a influenciou em sua devoção inabalável a Deus e se recordou que na infância cresceu acompanhando a vó Domenica, a minha trisavó italiana, em suas orações e nas missas dominicais; também se lembrou que seus pais, os meus bisavôs, tinham o costume de se ajoelharem ao pé da cama no fim do dia para rezar o terço e fazer seus pedidos a Deus, principalmente pela saúde de seus filhos, os irmãos que ela tanto amou.

Os irmãos que tenho certeza de que ela tanto sentiu falta nesses últimos anos.

Algumas semanas atrás, quando atendi o seu telefonema e conversamos por breves instantes, me despedi dizendo “fica bem, tia Adélia” e agora tia Adélia foi embora; junto com ela todos aqueles que estão na minha foto favorita da família: os meus bisavôs que nunca conheci, mas ainda assim tenho um enorme amor e orgulho de carregar seus sangues; as minhas tias de quem recebi tanto carinho; os meus tios que foram grandes inspirações para o personagem principal das minhas histórias literárias; e o meu avô, meu maior exemplo de ser humano e o verdadeiro significado da expressão “herói sem capa”.

Agora todos eles se encontraram e creio que numa grande festa italiana. Uma festa em que todos os irmãos nesta foto estarão certamente felizes, compartilhando suas lembranças e sorrindo das peripécias dos demais irmãos que morreram ainda crianças e que por isso não estão na foto, afinal todos eles com certeza estão felizes ao receber a irmã.

O encontro na eternidade entre eles acabou de acontecer e com certeza um dia acontecerá também entre todos nós que ficamos.