Nosso Rei
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Nosso Rei

Conto imaginando como seria o futebol brasileiro se o Pelé não existisse.

Ricardo Biazotto
9 min
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1958

Com as mãos unidas em um gesto de oração, Arthur se ajoelhou na área técnica da seleção brasileira, enquanto acompanhava a trajetória de Garrincha até a linha de fundo, avançando para dentro da área. O marcador francês tentou pará-lo, mas o Anjo das Pernas Tortas conseguiu se livrar a tempo de cruzar para o dez da seleção. No entanto, antes que ele chutasse ao gol, o beque central rifou a bola, armando um contra-ataque para o time francês.

Insatisfeito pela maneira infantil como o atacante perdeu uma chance clara de gol, ele se aproximou de Vicente Feola e disse ao treinador:

— Professor, se estivesse em seu lugar, tiraria esse camarada. — O treinador sabia a quem ele se referia. — De que adianta Garrincha e Didi armarem as jogadas, se não temos um atacante para balançar a rede?

— Você tem razão, meu filho. Chame o Pepe e diga que ele tem a obrigação de ampliar o placar.

O preparador físico da seleção obedeceu e chamou o craque santista, porém era tarde demais. Pepe entrou em campo faltando pouco mais de vinte minutos e pegou na bola em poucas ocasiões. Isso não foi suficiente para evitar o segundo gol francês, que levou a partida para os pênaltis.

Quando o goleiro defendeu a última cobrança brasileira, e o estádio sueco explodiu em emoção pela classificação francesa, Feola olhou para Arthur e o consolou, enquanto o preparador físico tentava esconder as lágrimas que expressavam a dor da derrota:

— Jovem, com a minha experiência posso dizer que a derrota de 1950 ainda dói em nossos corações.

— Temos jogadores que estariam em qualquer time do mundo. Não entendo essas derrotas.

— O Brasil só será campeão do mundo quando tiver o Rei do Futebol. Caso contrário, continuará com a fama de um cavalo paraguaio...

1962

Mané Garrincha chegou para a Copa de 1962 com o mesmo entusiasmo da competição realizada quatro anos antes. A seu favor, a experiência conquistada por longos anos comandando o time do Botafogo. Sua qualidade técnica era tanta, que se tornou o maior ídolo botafoguense, entrando também para a história do futebol mundial.

Apesar disso, Garrincha era como qualquer outro jogador e não teria condições de carregar um time nas costas. Ele precisava do apoio de todos os jogadores para conquistar o tão sonhado título mundial.

No primeiro jogo, contra o México, Zagallo chegou a abrir o placar e deu esperanças ao povo brasileiro, mas a seleção mexicana pressionou até o último minuto, conseguindo fazer dois gols e sair com a vitória. Mesmo com o empate com a Tchecoslováquia e a vitória frente à Espanha, o Brasil acabou sendo eliminado na primeira fase.

Mais tarde, enquanto os jogadores se preparavam para a última noite no Chile, o técnico Aymoré Moreira disse ao preparador físico:

— O que nós estamos fazendo de errado, Arthur? O time se encaixou perfeitamente, jogou bem em todas as partidas e acabou sendo eliminado dessa forma!

— Na última Copa, o professor Feola disse que só seríamos campeões quando encontrássemos o Rei do Futebol — Arthur respondeu, sem sentir a pressão da derrota. — Acho que ele estava certo.

— Infelizmente ele estava errado — contrariou. — Todos consideram o Mané como o Rei dos Reis e tenho certeza de que ele deu o melhor que podia.

— Talvez seja preciso mais alguém.

— Como vamos encontrar alguém em um país tão grande? O futebol ainda não se profissionalizou. Será impossível encontrar o que procuramos enquanto jogadores precisarem trabalhar durante o dia e treinar à noite.

— Você pode estar certo, Moreira — Arthur disse, com convicção. — Quer saber? Vou me tornar um treinador e ainda vou encontrar o Rei!

1970

Antes de ir ao México para comandar a seleção, Arthur trabalhava para o governo militar e tinha como objetivo buscar novos esportistas dentro das escolas. Os militares queriam criar um ideal nacionalista e sabiam que o caminho mais fácil seria incentivar o esporte. Como líder do time que poderia fazer a população esquecer a crise política, ele foi escolhido para exercer essa função.

Era apenas o garoto-propaganda ideal.

Quando a seleção foi derrotada pela Itália na final, Arthur percebeu que seria eternamente culpado. Não por seu time não lidar bem após tomar o gol da derrota, mas por ela destruir os planos dos militares.

Algumas horas após o jogo, ele estava na sala de imprensa do estádio respondendo às perguntas de jornalistas do mundo todo, que insistiam em falar sobre a crise política.

— Você acha que o seu futuro no esporte está comprometido por destruir a esperança do governo? — perguntou um deles.

Arthur olhou para o lado, onde um representante do governo anotava tudo o que dizia, e preferiu ignorar a pergunta.

— Dá para dizer que o seu programa de incentivo ao esporte é um grande fracasso?

Mais uma vez, ele ignorou. Seus problemas já seriam grandes mesmo sem uma resposta.

1994

— Uma coisa eu posso garantir, hoje o mundo se esquece do argentino. É tudo nosso! — o senhor de quase sessenta anos gritou a plenos pulmões, enquanto colocava uma garrafa de cerveja sobre a mesa do bar.

— Somos a zebra do campeonato e isso por sua culpa, Arthur! — respondeu um homem que não suportava a presença do ex-técnico. — Você é o culpado de o futebol não ser valorizado.

Arthur estava acostumado a ser olhado com desconfiança e visto como culpado, por isso preferiu não cair na provocação.

— Quero que o mundo entenda que o verdadeiro Rei não é um argentino flagrado no antidoping. Maradona não pode ser chamado de Rei.

— Preste atenção ao grito da arquibancada — um dos seus poucos amigos o repreendeu. — Ninguém tirou essa ideia da cabeça.

Apesar da voz do narrador da partida, Arthur entendeu as palavras da torcida:

— Hei, o Maradona é nosso Rei!

O grito esteve presente em todos os jogos da Copa. Mesmo sem a presença dos argentinos, na final não poderia ser diferente. Os americanos não tinham tradição no futebol e consideravam Maradona o melhor do mundo, por isso era ideal provocar o Brasil enquanto ele se preparava para as cobranças de pênaltis depois de uma partida sem gols. Porém, o que para eles era uma provocação, para os brasileiros era um incentivo a mais para conquistar o sonhado título.

A provocação vinda das arquibancadas mostrava aos brasileiros que os próximos minutos testariam seus corações.

Quando os pênaltis se iniciaram, os jogadores dos dois times erraram as primeiras cobranças. Albertini acertou um forte chute para a Itália, não dando chances para Taffarel. Quando Romário apareceu no vídeo, Arthur esbravejou:

— Esse é o dono da Copa e o grande responsável pelo título. Esse sim é o verdadeiro Rei!

No bar, as dezenas de pessoas prestaram atenção na concentração de Romário e na voz de Galvão Bueno:

— Romário vai para cobrança para o Brasil! Lentamente ele vai caminhando. Beija também a bola, a exemplo do que fez Albertini. Ele e Pagliuca. Momento de angústia. Partiu Romário, pé direito, bateu... É gol! Gol do Brasil, de Romário!

O grito de quem assistia ao jogo pela televisão foi instantâneo, assim como o alívio pelo gol. O sonho continuava vivo e Arthur aproveitou para expressar sua satisfação:

— Não disse? Ele é o cara! O melhor jogador da Copa!

— Ainda faltam duas cobranças. Mantenha a calma ou você vai ter um ataque cardíaco. Lembre-se que a derrota faz parte da nossa história.

— Esse é um grande erro! Precisamos confiar em nossos atletas e não levar em consideração o passado. O título chega hoje!

Arthur tinha razão. O título era questão de minutos e, pela primeira vez desde que assistiu ao jogo final em 1950, ele pressentiu que o grito de É Campeão estava prestes a ecoar pelos quatro cantos do país.

Novos jogadores fizeram suas cobranças. Um italiano acertou; dois brasileiros fizeram o mesmo, até que chegou a vez de Roberto Baggio. Ele tinha obrigação de acertar, por isso ajeitou a bola com carinho na marca da cal e olhou para Taffarel.

Arthur sabia o que aconteceria:

— Se o Taffarel não pegar, ele vai mandar a bola nas nuvens. — Ele se levantou e, com os braços abertos, concluiu: — Podem comemorar! Essa é a última bola do campeonato!

Irritados pela insistência de Arthur, que estava visivelmente alterado após tantas cervejas, as pessoas pediram silêncio. Ele queria comemorar, mas acabou respeitando o pedido e voltou a ouvir o narrador:

— Todos no gol com Taffarel. Baggio e Taffarel. Vai partir... Vai que é sua, Taffarel! Partiu, bateu... Acabou! Acabou! — Galvão pulava sozinho em frente à câmera, em uma imagem que ficaria marcada eternamente na história. — É campeão! O Brasil é campeão do mundo de futebol!

Com a confirmação do título, o grito das ruas se tornou ensurdecedor. Todos comemoravam o fim do sentimento de derrota, enquanto Arthur iniciou o coro que se tornaria símbolo da conquista:

— Hei, o Romário é nosso Rei!

Com o incentivo da mídia, o país inteiro passou a reverenciar o craque responsável por cinco gols no mundial.

Enrolado em uma bandeira brasileira, Arthur se lembrou do jogo contra a França em 1958 e das palavras de Vicente Feola. Com os olhos brilhando pelas lágrimas de emoção, disse para si mesmo:

— Meu grande mestre Feola tinha razão. O título chegou quando encontramos o Rei do Futebol. — Para não perder o costume, zombou dos argentinos, que não teriam mais motivos para dizer que o Brasil não era campeão do mundo. — Aqui é Brasil, Maradona! Aqui é Brasil!

***

Ao acordar no dia seguinte, já sem os efeitos do álcool, Arthur se olhou no espelho e por mais um dia se lembrou de quando voltou ao Brasil, em 1970, e foi torturado por um militar que não aceitou a derrota da seleção. As cicatrizes em seu corpo ainda lhe causavam dor, assim como quando era acusado de ser o culpado pela derrota daquele ano. Além disso, o ex-treinador percebeu o quanto estava equivocado ao coroar Romário:

A felicidade me impediu de ser racional! Ele pode ser um ótimo jogador, mas precisamos de alguém excepcional. Pensando bem, o futebol precisa ser priorizado pela mídia, público e governo, assim como o automobilismo, que nos deu tantas alegrias com o eterno Senna. Só assim será possível encontrar o Nosso Rei. — Não evitou a emoção. — Só assim será possível limpar a mancha deixada em nossa história durante aqueles anos.