Conto imaginando como seria o futebol brasileiro se o Pelé não existisse.
1958 | ||
Com as mãos unidas em um gesto de oração, Arthur se ajoelhou na área técnica da seleção brasileira, enquanto acompanhava a trajetória de Garrincha até a linha de fundo, avançando para dentro da área. O marcador francês tentou pará-lo, mas o Anjo das Pernas Tortas conseguiu se livrar a tempo de cruzar para o dez da seleção. No entanto, antes que ele chutasse ao gol, o beque central rifou a bola, armando um contra-ataque para o time francês. | ||
Insatisfeito pela maneira infantil como o atacante perdeu uma chance clara de gol, ele se aproximou de Vicente Feola e disse ao treinador: | ||
— Professor, se estivesse em seu lugar, tiraria esse camarada. — O treinador sabia a quem ele se referia. — De que adianta Garrincha e Didi armarem as jogadas, se não temos um atacante para balançar a rede? | ||
— Você tem razão, meu filho. Chame o Pepe e diga que ele tem a obrigação de ampliar o placar. | ||
O preparador físico da seleção obedeceu e chamou o craque santista, porém era tarde demais. Pepe entrou em campo faltando pouco mais de vinte minutos e pegou na bola em poucas ocasiões. Isso não foi suficiente para evitar o segundo gol francês, que levou a partida para os pênaltis. | ||
Quando o goleiro defendeu a última cobrança brasileira, e o estádio sueco explodiu em emoção pela classificação francesa, Feola olhou para Arthur e o consolou, enquanto o preparador físico tentava esconder as lágrimas que expressavam a dor da derrota: | ||
— Jovem, com a minha experiência posso dizer que a derrota de 1950 ainda dói em nossos corações. | ||
— Temos jogadores que estariam em qualquer time do mundo. Não entendo essas derrotas. | ||
— O Brasil só será campeão do mundo quando tiver o Rei do Futebol. Caso contrário, continuará com a fama de um cavalo paraguaio... | ||
1962 | ||
Mané Garrincha chegou para a Copa de 1962 com o mesmo entusiasmo da competição realizada quatro anos antes. A seu favor, a experiência conquistada por longos anos comandando o time do Botafogo. Sua qualidade técnica era tanta, que se tornou o maior ídolo botafoguense, entrando também para a história do futebol mundial. | ||
Apesar disso, Garrincha era como qualquer outro jogador e não teria condições de carregar um time nas costas. Ele precisava do apoio de todos os jogadores para conquistar o tão sonhado título mundial. | ||
No primeiro jogo, contra o México, Zagallo chegou a abrir o placar e deu esperanças ao povo brasileiro, mas a seleção mexicana pressionou até o último minuto, conseguindo fazer dois gols e sair com a vitória. Mesmo com o empate com a Tchecoslováquia e a vitória frente à Espanha, o Brasil acabou sendo eliminado na primeira fase. | ||
Mais tarde, enquanto os jogadores se preparavam para a última noite no Chile, o técnico Aymoré Moreira disse ao preparador físico: | ||
— O que nós estamos fazendo de errado, Arthur? O time se encaixou perfeitamente, jogou bem em todas as partidas e acabou sendo eliminado dessa forma! | ||
— Na última Copa, o professor Feola disse que só seríamos campeões quando encontrássemos o Rei do Futebol — Arthur respondeu, sem sentir a pressão da derrota. — Acho que ele estava certo. | ||
— Infelizmente ele estava errado — contrariou. — Todos consideram o Mané como o Rei dos Reis e tenho certeza de que ele deu o melhor que podia. | ||
— Talvez seja preciso mais alguém. | ||
— Como vamos encontrar alguém em um país tão grande? O futebol ainda não se profissionalizou. Será impossível encontrar o que procuramos enquanto jogadores precisarem trabalhar durante o dia e treinar à noite. | ||
— Você pode estar certo, Moreira — Arthur disse, com convicção. — Quer saber? Vou me tornar um treinador e ainda vou encontrar o Rei! | ||
1970 | ||
Antes de ir ao México para comandar a seleção, Arthur trabalhava para o governo militar e tinha como objetivo buscar novos esportistas dentro das escolas. Os militares queriam criar um ideal nacionalista e sabiam que o caminho mais fácil seria incentivar o esporte. Como líder do time que poderia fazer a população esquecer a crise política, ele foi escolhido para exercer essa função. | ||
Era apenas o garoto-propaganda ideal. | ||
Quando a seleção foi derrotada pela Itália na final, Arthur percebeu que seria eternamente culpado. Não por seu time não lidar bem após tomar o gol da derrota, mas por ela destruir os planos dos militares. | ||
Algumas horas após o jogo, ele estava na sala de imprensa do estádio respondendo às perguntas de jornalistas do mundo todo, que insistiam em falar sobre a crise política. | ||
— Você acha que o seu futuro no esporte está comprometido por destruir a esperança do governo? — perguntou um deles. | ||
Arthur olhou para o lado, onde um representante do governo anotava tudo o que dizia, e preferiu ignorar a pergunta. | ||
— Dá para dizer que o seu programa de incentivo ao esporte é um grande fracasso? | ||
Mais uma vez, ele ignorou. Seus problemas já seriam grandes mesmo sem uma resposta. | ||
1994 | ||
— Uma coisa eu posso garantir, hoje o mundo se esquece do argentino. É tudo nosso! — o senhor de quase sessenta anos gritou a plenos pulmões, enquanto colocava uma garrafa de cerveja sobre a mesa do bar. | ||
— Somos a zebra do campeonato e isso por sua culpa, Arthur! — respondeu um homem que não suportava a presença do ex-técnico. — Você é o culpado de o futebol não ser valorizado. | ||
Arthur estava acostumado a ser olhado com desconfiança e visto como culpado, por isso preferiu não cair na provocação. | ||
— Quero que o mundo entenda que o verdadeiro Rei não é um argentino flagrado no antidoping. Maradona não pode ser chamado de Rei. | ||
— Preste atenção ao grito da arquibancada — um dos seus poucos amigos o repreendeu. — Ninguém tirou essa ideia da cabeça. | ||
Apesar da voz do narrador da partida, Arthur entendeu as palavras da torcida: | ||
— Hei, o Maradona é nosso Rei! | ||
O grito esteve presente em todos os jogos da Copa. Mesmo sem a presença dos argentinos, na final não poderia ser diferente. Os americanos não tinham tradição no futebol e consideravam Maradona o melhor do mundo, por isso era ideal provocar o Brasil enquanto ele se preparava para as cobranças de pênaltis depois de uma partida sem gols. Porém, o que para eles era uma provocação, para os brasileiros era um incentivo a mais para conquistar o sonhado título. | ||
A provocação vinda das arquibancadas mostrava aos brasileiros que os próximos minutos testariam seus corações. | ||
Quando os pênaltis se iniciaram, os jogadores dos dois times erraram as primeiras cobranças. Albertini acertou um forte chute para a Itália, não dando chances para Taffarel. Quando Romário apareceu no vídeo, Arthur esbravejou: | ||
— Esse é o dono da Copa e o grande responsável pelo título. Esse sim é o verdadeiro Rei! | ||
No bar, as dezenas de pessoas prestaram atenção na concentração de Romário e na voz de Galvão Bueno: | ||
— Romário vai para cobrança para o Brasil! Lentamente ele vai caminhando. Beija também a bola, a exemplo do que fez Albertini. Ele e Pagliuca. Momento de angústia. Partiu Romário, pé direito, bateu... É gol! Gol do Brasil, de Romário! | ||
O grito de quem assistia ao jogo pela televisão foi instantâneo, assim como o alívio pelo gol. O sonho continuava vivo e Arthur aproveitou para expressar sua satisfação: | ||
— Não disse? Ele é o cara! O melhor jogador da Copa! | ||
— Ainda faltam duas cobranças. Mantenha a calma ou você vai ter um ataque cardíaco. Lembre-se que a derrota faz parte da nossa história. | ||
— Esse é um grande erro! Precisamos confiar em nossos atletas e não levar em consideração o passado. O título chega hoje! | ||
Arthur tinha razão. O título era questão de minutos e, pela primeira vez desde que assistiu ao jogo final em 1950, ele pressentiu que o grito de É Campeão estava prestes a ecoar pelos quatro cantos do país. | ||
Novos jogadores fizeram suas cobranças. Um italiano acertou; dois brasileiros fizeram o mesmo, até que chegou a vez de Roberto Baggio. Ele tinha obrigação de acertar, por isso ajeitou a bola com carinho na marca da cal e olhou para Taffarel. | ||
Arthur sabia o que aconteceria: | ||
— Se o Taffarel não pegar, ele vai mandar a bola nas nuvens. — Ele se levantou e, com os braços abertos, concluiu: — Podem comemorar! Essa é a última bola do campeonato! | ||
Irritados pela insistência de Arthur, que estava visivelmente alterado após tantas cervejas, as pessoas pediram silêncio. Ele queria comemorar, mas acabou respeitando o pedido e voltou a ouvir o narrador: | ||
— Todos no gol com Taffarel. Baggio e Taffarel. Vai partir... Vai que é sua, Taffarel! Partiu, bateu... Acabou! Acabou! — Galvão pulava sozinho em frente à câmera, em uma imagem que ficaria marcada eternamente na história. — É campeão! O Brasil é campeão do mundo de futebol! | ||
Com a confirmação do título, o grito das ruas se tornou ensurdecedor. Todos comemoravam o fim do sentimento de derrota, enquanto Arthur iniciou o coro que se tornaria símbolo da conquista: | ||
— Hei, o Romário é nosso Rei! | ||
Com o incentivo da mídia, o país inteiro passou a reverenciar o craque responsável por cinco gols no mundial. | ||
Enrolado em uma bandeira brasileira, Arthur se lembrou do jogo contra a França em 1958 e das palavras de Vicente Feola. Com os olhos brilhando pelas lágrimas de emoção, disse para si mesmo: | ||
— Meu grande mestre Feola tinha razão. O título chegou quando encontramos o Rei do Futebol. — Para não perder o costume, zombou dos argentinos, que não teriam mais motivos para dizer que o Brasil não era campeão do mundo. — Aqui é Brasil, Maradona! Aqui é Brasil! | ||
*** | ||
Ao acordar no dia seguinte, já sem os efeitos do álcool, Arthur se olhou no espelho e por mais um dia se lembrou de quando voltou ao Brasil, em 1970, e foi torturado por um militar que não aceitou a derrota da seleção. As cicatrizes em seu corpo ainda lhe causavam dor, assim como quando era acusado de ser o culpado pela derrota daquele ano. Além disso, o ex-treinador percebeu o quanto estava equivocado ao coroar Romário: | ||
A felicidade me impediu de ser racional! Ele pode ser um ótimo jogador, mas precisamos de alguém excepcional. Pensando bem, o futebol precisa ser priorizado pela mídia, público e governo, assim como o automobilismo, que nos deu tantas alegrias com o eterno Senna. Só assim será possível encontrar o Nosso Rei. — Não evitou a emoção. — Só assim será possível limpar a mancha deixada em nossa história durante aqueles anos. |