Reencontro (Parte 4): A Colheita
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Reencontro (Parte 4): A Colheita

Não era por acaso, afinal, o apreço que sempre tivera por aquela árvore há tanto tempo.

 A realidade se impunha. O trabalho precisava ser feito.E Ele, relutante e resoluto, o fez.


Carlos de São Bernardo
4 min
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Foto de ginosphotos1, em Depositphotos
Foto de ginosphotos1, em Depositphotos

(...)

Cresce aquele ou aquilo em que lhe haja vida. Linda, por exemplo, é a rosa... Inesquecível!  — mas fora colhida.

Desde a mais tenra idade, Jesus tinha pelo pai a maior das admirações. Por ele nutria o mais alto respeito, uma devotada lealdade e dele aprendera com louvor a arte da carpintaria.

Era disciplinado, detalhista e persistente.

Quando tinha algo em mente, ia até o fim.

Ao mesmo tempo em que parecia, às vezes, obcecado pela perfeição naquilo que fazia, demonstrava distinta indulgência com quem jamais o seria.

Embora pequena fosse a oficina, trabalho ali sempre houvera.

Deus jamais lhes deixara faltar o pão.

Mas fáceis mesmos os tempos não eram.

Certa feita, porém, chegara de Jerusalém uma encomenda realmente grande.

Havia desde mesas, talhas, pratos, copos e utensílios domésticos em geral até portas, ferramentas, escadas, vigas e placas de madeira talhadas.

E um pouco do que pareciam ser… armas?

Mas...

“Do fruto do teu trabalho comerás, feliz serás e tudo te irá bem”, é o que lhes ensinava um cântico dos antigos hebreus.

Toda a família se regozijara afinal diante de tão grande bênção da parte de Deus, que mais uma vez lhes demonstrava cuidado, amor e compromisso com sua fidelidade.

No dia seguinte, José, o chefe da casa, reuniu todos os filhos e os convidou para juntos irem ao bosque buscar a matéria-prima necessária para iniciarem a preparação dos objetos solicitados pelo pretório romano.

Todos estavam jubilosos em seu coração e o fizeram com disposição ainda mais notável que habitualmente. 

Mas, enquanto voltavam, já de posse de tudo o que julgavam ser suficiente para aquele primeiro momento, José notou também que alguma coisa não ia bem com seu filho, Jesus.

Ele trazia consigo um semblante grave e José se lembrou de que, de fato, Ele não lhe pareceu realmente tão feliz como os demais em momento algum daquele dia.

Faltava-lhe o humor característico.

Seus olhos, excepcionalmente, tinham um tom acizentado.

Lembrou-se de que, sim, Ele hesitara um pouco quando lhe foi requerido que cortasse daquela sua árvore favorita alguns galhos. Mas ela era tão forte e isso já acontecera tantas vezes antes, que… não haveria de ser esse o motivo.

Era?

Bom, pelo menos, não foi isso que Jesus respondeu quando José lho perguntou.

Bem, Ele sequer respondera qualquer coisa.

Apenas baixou a cabeça, calou e seguiu.

Os dias após foram de muito, muito trabalho e, durante eles, Jesus ainda mantinha aquela estranha melancolia; bem diferente do garoto alegre e vivaz que todos estavam acostumados a ver.

Ele era responsável, por exemplo, pelo acabamento dado às peças que seu pai preparava previamente.

Ninguém melhor que Ele, aliás, poderia desempenhar aquele trabalho, mas, mesmo que ainda se pudesse ver em sua obra qualquer coisa que beirasse a perfeição, seu rendimento não era igual a antes.

Mas nada que se comparasse ao dia em que Ele viu sobre a mesa da oficina de seu pai uma das vigas de madeira que esperava pelo arremate final de suas habilidosas mãos.

À porta, de longe, permaneceu de pé por um tempo, reticente em entrar.

Trazia numa das mãos a plaina que manejava tão bem.

Com os olhos fitos na madeira bruta, Ele estendeu à frente, quase involuntariamente, a destra suada e suja do carpinteiro de Nazaré…

Abriu-a e fechou-a.

Repetiu o gesto duas ou três vezes, como se isso lhe lembrasse de algo…

De que, de fato, se lembrou.

Não era por acaso então que Ele tivera por aquela árvore tal apreço há tanto tempo!

A realidade, porém, se impunha.

O trabalho precisava ser feito.

E Ele, relutante e resoluto, o fez.

Ao final, deslizou as mãos suavemente pelo madeiro ainda quente preso ao torno, à procura (ou não) de arestas que pudessem ferir alguém.

Tolo,

Ele logo saberia

Que aquele zelo bobo seria

Inútil.

Pois a trave que acabara,

Ela mesma acabaria

Por ferir de qualquer maneira

Alguém.

Uma lágrima fortuita lhe rolou pela face cansada.

Tentou falar.

A voz embargou.

E ouviu-se no céu um trovão.

(...)