Uma aventura enlouquecedora.
- Perdi R$ 300,00. |
- Quê!? Por quê!? |
- Porque um louco, doido-de-pedra, quebrou, com duas pedras, o vidro de um carro. |
- Por que ele quebrou o vidro do seu carro? |
- Do meu carro, não; do de um tal de Josemir, Josir, Jolmir, Jotemir, Jolemir... |
- Joelmir?! |
- Sei lá. Talvez seja; talvez não. Não sei. Quem sabe? É um tal que começa com "Jo", sendo o jota maiúsculo, e termina com "ir". |
- E por que o louco quebrou o vidro do carro dele? |
- Porque é louco. |
- Se o louco quebrou o vidro do carro do cara, por que você pagou R$ 300,00 pelo conserto, e não o louco, ou alguém da família dele? O louco é parente seu? |
- Os loucos da minha parentela não são de quebrar vidro de carro; são de acreditar que o socialismo produz riqueza, e que há mais de dois sexos; e de usar uns pronomes estrambóticos, e de outras maluquices. |
- E os da sua família? |
- Os da minha família sâo lúcidos. |
- Ora, se o louco não é parente seu, e nem da sua família, por que você pagou pelo conserto do vidro do carro do Joelmir? |
- Eu não disse que o nome do dono do carro é Joelmir, disse?! Eu disse que o nome dele começa com "Jo" e termina com "ir". |
- Certo. Mas, responda-me, ô, jagunço: Por que você desembolsou R$ 300,00 pelo conserto do carro? |
- A história é longa, e a contarei para você, e desde o início do começo, nos mínimos e nos máximos detalhes. Estava eu, depois de passar pela sorveteria do Garotão... |
- A mulher dele 'tava lá?! |
- Mulher de amigo meu para mim é homem. |
- Ela 'tava lá?! |
- 'tava. Não desrespeite o Garotão. |
- Ela é muita areia para o caminhãozinho dele. |
- Você está faltando com o mandamento. |
- Qual? |
- O nono, que ensina a não cobiçar a mulher do próximo. |
- Em primeiro lugar: Que nono mandamento!? Pode haver nono mandamento, se os mandamentos são sete?! Em segundo lugar: Que mulher do próximo!? Eu moro no bairro dos Crisântemos; o Garotão, no Montanha Rasa. A minha casa da dele está a sete quilômetros de distância, e a casa dele da minha a sete quilômetros de lonjura. Somando-se a distância da minha casa até a dele e a lonjura da dele até a minha, dá quatorze quilômetros. Nenhum centímetro a mais, e nenhum centímetro a menos. Meu próximo, o Garotão!? Não. Ele é meu distante. |
- Deixe de besteiras! Vá ser ignorante no inferno! Em primeiro lugar: Os mandamentos não são sete; sâo doze. Em segundo lugar: Não se soma a distância da sua casa até a do Garotão e a lonjura da casa dele até a sua; divide-se por dois porque a distância da sua casa até a dele e a lonjura da dele até a sua têm o mesmo valor: o que dá três quilômetros e quinhentos metros. |
- Que seja! Mesmo assim, ele é meu distante, e não meu próximo. Três quilômetros e meio não são um tirinho de espingarda. |
- De qual espingarda? |
- Continue a contar-me a história dos trezentos loucos de Esparta. Você foi à sorveteria, chupou um sorvete... |
- Não chupei um sorvete, nem dois, nem três; e não fui à sorveteria. |
- Você disse... |
- Eu disse que passei pela sorveteria. |
- 'tá. Continue. |
- Passei pela sorveteria do Garotão. Mandei um oi para a Bianca, a filha do Zécarlo, e dobrei a esquina; e fui até a... a... a... Marechal Osório!? |
- Duque de Caxias. |
- A rua da casa do João Cruz?! |
- Deodoro da Fonseca. |
- Deodoro da Fonseca é a do Zé Cruz. |
- Não é, não. A do Zé Cruz é a General Castelo Branco. |
- General Castelo Branco não é a do Renatinho do Tempero? |
- Não. A da casa dele é a Almirante Tamandaré. |
- Você tem certeza? |
- Certeza, e cerveja. |
- A dele não é a do Barão de Itararé?! |
- O Barão nunca existiu. É um personagem do Stanislau Ponte Preta. |
- 'tá. Mãos à palmatória. Entrei na... na... na... |
- Deodoro da Fonseca. |
- Deodoro da Fonseca?! |
- É! Deodoro da Fonseca. |
- Na Deodoro da Fonseca entrei, e fui até a padaria da dona Imperatriz... |
- Na padaria da dona Imperatriz!? |
- Sim! Foi o que eu disse, não foi?! |
- Foi. Mas, então, você estava na Marechal Mascarenhas de Moraes, e não na Deodoro da Fonseca. |
- Eu sempre erro as patentes. |
- Os dois eram marechais. |
- Então... |
- Você passou pela sorveteria do Garotão, e virou a segunda esquina, e nâo a primeira. E andou pela Mascarenhas de Moraes, onde mora o Joaquim Cruz, pai do Joâo e do Zé. |
- Mas que diabos! Tudo bem. Continuemos: Na padaria da dona Imperatriz, comprei seis pães, seis latinhas de cerveja, meio quilo de presunto e quinhentos gramas de queijo-prato... Antes de continuar, uma nota: eu jamais peço quinhentos gramas de presunto e meio quilo de queijo-prato: dá azar. Sigamos: comprados a cerveja, e o presunto e o queijo, presunto e queijo fatiados em fatias bem finas, subi pela das Caravelas. É das Caravelas, mesmo, né?! |
- É. |
- Pois bem, eu escalava a íngreme rua quando um doido, daqueles de pedra, maluco beleza, igual o Raul, abordou-me,falou-me qualquer coisa, e não entendi que coisa era. Que idioma o louco usou para falar comigo... Idioma!? Grunhidos. Rosnados. Relinchos. Zurros. Não entendi o que ele me disse, se é que ele tenha me dito alguma coisa. E apontava-me o filhote de não-sei-o-que um carro prateado estacionado no outro lado da rua. Eu, que não estava com paciência para aturar maluquice de nenhum louco, disse-lhe para pegar as duas pedras, ambas de bom tamanho, que estavam, lá, caídas, perdidas, ao meio-fio, e que as atirasse contra o carro, e segui meu rumo; e mal havia eu dado vinte passos, ouvi um crash, de vidro se quebrando, voltei-me para trás a tempo de ver o doido-de-pedra a arremessar contra o carro a segunda pedra e nas canelas passar sebo. Parecia um condenado a correr para fugir da forca. Dei de ombros. O caso não era comigo. O louco não era eu, e nem parente meu. Acelerei os passos, e, esbaforido, cheguei à esquina, e entrei pela João Carlos de Oliveira; e dez minutos depois estava eu em meu lar, humilde lar, a degustar do pão com queijo e presunto, à companhia da loira gelada. Assisti a um filme do Stallone. E dormi com os anjos. E sonhei com as sereias. E hoje, assim que cheguei do trabalho, dei de cara, à porta da minha casa, com um brutamontes daqueles de três metros de altura, dois de largura e um de espessura, enfezado. "O senhor é o Roberto Luis, da revendedora de carros?", perguntou-me o dito cujo, com cara de poucos amigos; melhor, de nenhum amigo. "Sim. Sou eu.", mal eu havia lhe respondido à pergunta, ele me entregou uma ordem de serviço, expedido por uma oficina, de conserto de vidros de um carro prateado,vidro quebrado a pedradas. Era da oficina... Não me lembro. Valor do serviço: R$ 300,00. |
- O tal brutamontes é o Joelmir? |
- Joelmir, Jocemir, Jodir, Jodemir, Jotalomir, Joilmir... Sei lá. Mas é ele. Cobrou-me, o diabo, os trezentos. |
- Você pagou-lhe? |
- Você queria que eu fizesse o quê?! O grandalhão tinha... tinha, não; tem... Ele está vivo, então... Ele tem três metros de altura. A pele dele é de uma tonalidade esverdeada, assim me pareceu à retina de meus olhos. |
- Precisa falar "retina de meus olhos"? Só os olhos têm retinas. |
- Podiam ser as retinas dos olhos do brutamontes, ou as dos olhos de qualquer outra pessoa que porventura passasse, inadvertidamente, por lá, naquele momento, e não as dos meus. |
- Mas vocé disse "assim me pareceu" antes de dizer "à retina de meus olhos". |
- Eu podia ter dito "assim me pareceu à retina dos olhos dele". |
- Certo. Mas... Mas, como o Hércules soube do louco, e de você? |
- Não sei. |
- Ele não disse o... |
- Não. Ele nada me disse. |
- Você lhe perguntou o que... |
- Nada lhe perguntei. Ele me entregou a ordem de serviço, cobrou-me os trezentos, e eu, educadamente, e de muito boa-vontade, para não lhe ferir os sentimentos, lhos entreguei, e ele me falou, assim, sem mais nem menos, com certo ar que às minhas pupilas gustativas cheirou-me à ameaça: "Proteja-se dos loucos." Assim que me tirou das mãos, educado, e cuidadoso, carinhosamente, para não me machucar, o dinheiro, rosnou qualquer coisa, guardou o dinheiro no bolso da camisa, virou-me as costas, entrou no carro, e foi-se embora, sem me desejar um bom-dia o malriado. Sou sincero: ele é um cara legal, civilizado. Deve ser daqui, mesmo, da civilização, e não da Ciméria. É um cristão, e não um devoto de Crom. |
- Que apuros! Eu não queria estar na sua pele. |
- Minha cabeça está colada ao meu pescoço? |
- Está. Mas você... Que asneira! Mandar um louco atirar pedras contra um carro! |
- Não me passou pela cabeça que ele iria entender o que eu lhe disse. Juro! Tal não pensei. |