A crise da Ucrânia como mais um fator anti-globalização
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A crise da Ucrânia como mais um fator anti-globalização

   Fragmentação, isolacionismo, desconexão, instabilidade institucional. Tendências contrárias à globalização que já estavam em curso desde a crise financeira mundial de 2008, e receberam mais um impulso negativo, mais uma aceleração, com a c...

Fernando Padovani
9 min
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   Fragmentação, isolacionismo, desconexão, instabilidade institucional. Tendências contrárias à globalização que já estavam em curso desde a crise financeira mundial de 2008, e receberam mais um impulso negativo, mais uma aceleração, com a crise militar na Ucrânia de março de 2022. Sobretudo, em função das medidas de sanção econômica impostas por EUA e União Europeia contra a Rússia.

   O ato de rebeldia desafiadora promovido pela Rússia ao invadir militarmente um país protegido pela Otan gerou uma reação estridente nas esferas governamentais e da opinião pública Ocidentais, mas pouco concretas politicamente, se restringindo a bombardeios de declarações, rajadas de “subidas de tom” e, sobretudo, a medidas de sanções econômicas contra os interesses econômicos russos.

   Por si só, a efetividade das sanções econômicas impostas são objeto de incertezas variáveis. O grau cinzento de aderência a essas sanções já se apresenta logo de início, e mesmo dentro do Ocidente, em função da dependência energética da Europa em relação à Rússia. A pressão americana no sentido de boicote às compras de gás russo, somada à quebra de contrato do gasoduto “Nord-Stream-2”, no curto prazo aparenta fazer sentido, contribuindo para a diminuição da dependência energética frente à Rússia. Mas essa situação, no longo prazo, não passa a ser animadora, pois, igualmente, mantém a Europa ainda super-dependente do gás americano, um gás mais caro.

   No circuito das economias emergentes, essas sanções parecem simplesmente ter ecoado pelas chancelarias. Nesse sentido, a China demonstrou apoio veemente e incondicional à Rússia, aproximando definitivamente as duas potências, abrindo-se então canais de negócios que podem compensar para a Rússia as perdas originadas pelas sanções ocidentais, tendência de não adesão que foi seguida por quase todas as grandes economias emergentes, tais como México, Brasil, Israel, Turquia, Àfrica do Sul, Paquistão e Índia. Quase uma versão ampliada dos BRICS, um belo tijolo jogado nas antes plácidas águas ocidentais, uma vez que a somatória das economias deste bloco não alinhado já supera a somatória das economias ocidentais de alta renda.     

   Resta também a dúvida sobre se as declarações atuais de aderência vão durar na missão, passados meses após o calor do momento da invasão. Tal questionamento tem sentido em função do tamanho das grandes economias emergentes. Já a questão da isenção do fornecimento do gás, deixado de fora das sanções, a única questão realmente relevante para os negócios internacionais da Rússia, também agrega um tom de descrédito às iniciativas. Fatores complementares como a compensação de novos canais de negócios surgidas de grandes economias não aderentes, especialmente China e Índia, bem como a “normalização” do enfrentamento de sanções por parte da Rússia ao longo da última década, agregam ainda mais questionamentos sobre a efetividade das sanções como uma resposta autêntica ao ato de insubordinação russo. Sem mencionar o fator mais significativo de todos que é a escolha das sanções como único ato de retaliação, em detrimento de qualquer outra, mínima que seja, iniciativa militar concreta. Confirmando o adágio diplomático de que declarar a adoção de sanções, significa no jargão geopolítico a uma declaração de renúncia de ações militares concretas.

   Mas, mais significativo do que o debate sobre a eficácia ou não das sanções econômicas, da renúncia do Ocidente a qualquer ato concreto de retaliação, é a análise dos efeitos autodestrutivos das ações econômicas punitivas promovidas pelo Ocidente. Ações que tem um certo tom de tragédia grega, no sentido que as ações para combater uma catástrofe anunciada acaba por acelerar ainda mais o desenrolar da trama naquela direção. Quanto mais se luta para se afastar do destino previsto, mais se contribui para a sua concretização. Situações trágicas onde uma ameaça antevista acaba sendo viabilizada na ânsia de combatê-la, como um Édipo imediatista que luta ansiosamente para evitar que a ameaça ou profecia se concretize, para escapar do seu destino, mas, nessa luta, acaba provocando ainda mais rapidamente, acaba acelerando todo o processo, encontrando a morte à espera numa encruzilhada de Samara.     

   Veja-se por exemplo, as iniciativas generalizadas nos EUA e na Europa de confiscar as reservas internacionais do banco central russo depositadas em instituições ocidentais, além do congelamento de investimentos russos em bônus do tesouro americano, num calote seletivo, além da proibição de negociação de bônus do tesouro russo nos mercados financeiros dos EUA, todas ações com a intenção imediatista de desestabilizar o rublo, asfixiar o financiamento fiscal e gerar instabilidade econômica e política dentro da Rússia, minando a sustentabilidade política doméstica de Vladimir Putin.     

   Se a efetividade dessas medidas ainda é uma questão em aberto, a possibilidade de que isso venha a minar em vez da sustentabilidade de Putin, mas sim a credibilidade do sistema financeiro Ocidental, parece bem maior. Isso porque pode estar se transmitindo mensagens claras para todos os atores da economia internacional, públicos e privados, de que esse confisco direcionado hoje realizado contra a Rússia poderá, amanhã, ser direcionado contra qualquer governo ou empresa que não se alinhe a “interesses vitais” americanos ou europeus.   

   Trata-se de uma situação nova, quase inédita, na história moderna, e uma situação de clara deterioração do clima de confiança, que é o cerne de todo o sistema financeiro e monetário internacional. No auge da guerra fria e do macarthismo anticomunista, o mercado bancário londrino, a City de Londres, inovou nos anos 1950 ao permitir que a União Soviética fizesse depósitos e operasse financeiramente em dólares americanos, oriundos dos pagamentos internacionais recebidos pelas exportações russas. Essas operações em moeda estrangeira em bancos ingleses inaugurou o conceito, apelidado de “eurodólar”, e foi expandido para outros clientes. Ao mesmo tempo, a complexa tarefa de construir uma moeda internacional, ou meios de pagamentos internacionais, seja na época em que o valor das moedas locais era referenciado por reservas em ouro físico (até 1971), seja na época em que esse valor era referenciado por depósitos internacionais efetuados pelos diversos bancos centrais nacionais em dólar americano (após 1976), a pedra de sustentação de todo sistema era a confiança dos diversos bancos centrais nacionais de que suas reservas internacionais nunca seria confiscada. Ou seja, sem confiança, sem sistema.  Ou seja, o fato significativo desse sistema é exatamente a sinalização para todos os atores da economia internacional de que, apesar das diferenças políticas e ideológicas, a boa normalidade dos negócios não seria ameaçada, permitindo até que ativos internacionais do grande rival geopolítico permanecesse sacrossantamente salvaguardado às partes das querelas políticas. Práticas muito semelhantes no âmbito privado consagraram a credibilidade dos bancos suíços junto a todo tipo de atores, uma vez que, ao longo de todos os conflitos europeus, e até mesmo durante uma radicalizada Segunda Guerra Mundial, essa praça bancária deixou os ativos de todas as partes beligerantes tranquilamente repousando lado a lado nas prateleiras dos cofres helvéticos.

   Justamente, essa mensagem de credibilidade, de confiança e de segurança talvez tenha sido o fator mais determinante para a consolidação de um “sistema”, conjunto confiável de regras e instituições, estimulando o crescimento de uma economia internacional, ampliando os negócios para o desconhecido, para fora das fronteiras domésticas, um ambiente novo naquele momento, mas ali pautado por instituições financeiras e monetárias confiáveis e estáveis.

   A radicalização anti-russa do momento atual, com tons de histeria, imediatismo cego e algum desespero, contaminada por outras radicalizações domésticas oriundas da política eleitoral, parece ter sido o fator determinante para a geração desta surpreendente situação de quebra de confiança, que pode comprometer dinâmicas mais estruturais, de longo prazo, como um sistema internacional sustentado pelo Ocidente, desconfiança que poderá eventualmente gerar, por exemplo, uma corrida para fora do dólar, e das instituições financeiras ocidentais, situações tem a capacidade de escalar abruptamente, pelo efeito de manada, podendo até gerar situações de ruptura estrutural.

   Outras medidas punitivas complementares, como a exclusão de bancos comerciais russos do sistema SWIFT, um sistema de comunicação interbancária de pagamentos internacionais, parecem repetir a mesma tendência, de punição russa no curto prazo gerando desdobramentos estruturais negativos para os sistemas institucionais capitaneados pelo próprio Ocidente. Imediatamente após o banimento da Rússia do sistema SWIFT, os bancos russos foram imediatamente absorvidos pelo sistema chinês UnionPay, agora crescente e fortalecido pela presença dos negócios russos e de seus clientes.

   Todos esses novos arranjos financeiros e monetários, desenvolvidos sob a sombra da liderança chinesa, viabilizando esquemas alternativos de reconstrução de confiança, da segurança de ativos, da liquidez de pagamentos, do recebimento de pagamentos em outras moedas além do dólar americano e do euro, seguramente representarão, em alguma medida, um impulso para a “desdolarização” da economia internacional, de “libertação da dependência do dólar” pelas economias emergentes, que assim estariam mais protegidas dos caprichos arbitrários dos governos americanos, tendência advogada explícita e repetidamente pelo chanceler Lavarov.

   O prazo para o encerramento desse ciclo imperial Ocidental, claro, ainda é um debato aberto para especulações, mas o que parece certo é que diminui o espaço para uma liderança unilateral e incontestada por parte dos EUA sobre uma economia globalizada. Esta globalização ocidental de caráter neoliberal seguramente está perdendo nesse momento importantes mecanismos institucionais e políticos para o exercício efetivo de uma liderança hegemônica, como a quebra de confiança de um sistema bancário, financeiro, monetário e comercial, podendo até dar espaço para um outro tipo de globalização. Um outro tipo de interdependência mundial marcada por circuitos mais orientados para as economias emergentes, posto que garantidos por elas, e animado por uma espécie de capitalismo industrial de Estado. O que, no plano geopolítico, poderia dar margem para uma espécie de multilateralismo eurasiático, sob a liderança de China, Rússia e Índia, mas com uma participação próxima de economias como o México, Brasil, Argentina, Irã, Indonésia, Malásia ou África do Sul, em coalizões multipolares. 

   O cancelamento unilateral de atividades por parte de empresas privadas ocidentais na Rússia, pressionadas pelo clima de histeria na opinião pública, podem ampliar a tendência já em curso desde Trump e do Brexit, de “encurtamento” das cadeias produtivas internacionais, tornando-as cada vez mais concentradas em espaços domésticos geopoliticamente confiáveis. Enquanto, elas podem continuar contando com as vantagens comparativas amplas e variadas, ao permanecer ainda estendidas nesse espaço euroasiático ampliado.

   Tal tendência de mútua desconfiança e de fechamento do Ocidente sobre si mesmo, pode paradoxalmente provocar um movimento de isolacionismo Ocidental, uma vez que, a rigor, essa tendência já existia. Não deixa de ser curioso que, se Trump havia se celebrizado por demonizar a China, e adotar políticas nessa direção, a nova gestão democrata tem se superado num projeto bastante semelhante, agora demonizando a Rússia. Um projeto de Estado de isolamento americano dentro de uma ampla unidade, mas já menor do que o poderoso bloco eurasiático em firme passo de consolidação. Processo no qual, a formalização da coalização dos BRICS já teria sido um ensaio dessa ordem emergente. A desafiadora invasão russa na Ucrânia, nesse sentido, poderia ser entendida como uma caminhada na direção de um BRICS com contornos militares. De fato, uma transformação estrutural.