A política externa é a continuação da política doméstica por outros meios
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A política externa é a continuação da política doméstica por outros meios

as exigências e urgências de um governo na arena da política doméstica acaba por formatar as decisões da política externa de um país.

Fernando Padovani
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     após 60 dias do início da invasão russa na ucrânia, e com a retomada das ofensivas em todo sul e leste do país, uma análise que tem se tornado popular e sido repetida no ocidente é a suposta pressa de putin terminar a guerra antes do dia 9 de maio, o dia da grande comemoração patriótica russa da vitória na segunda guerra mundial, tudo na tentativa de produzir algum tipo de vitória política.

     essa perspectiva de análise, que propõe abrir uma linha de comunicação direta entre as estratégias de política externa nacionais e as necessidades imediatas da política doméstica de governos, fazendo que a política externa seja determinada pelas necessidades políticas de governos, e que a sobrevivência e sucesso desse governo seja influenciada pelos resultados retratados da política externa, já representa uma das tradições bem consolidadas na metodologia das relações internacionais, conhecida como "análise de política externa".

     independentemente dos resultados dessa análise de política externa aplicada ao 9 de maio na política doméstica russa, um outro aspecto importante que traz a popularização momentânea dessa análise é justamente lembrar sobre a importância do conflito da ucrânia para a política eleitoral dos países ocidentais, especialmente frança, reino unido e estados unidos.

     na frança, às vésperas das eleições presidenciais, o candidato à reeleição emmanuel macron tentou assumir um protagonismo como negociador no conflito e, mesmo com resultados muito negativos nessa tentativa, não tendo legitimidade reconhecida para essa intermediação, macron conseguiu algum diferencial "internacionalista" frente a seus concorrentes, excessivamente paroquiais.

     no reino unido, boris johnson conseguiu instrumentalizar uma oposição verbal e midiática à rússia de putin, conseguindo uma "lavagem" de imagem, em meio à uma grande crise de impopularidade provocada por escândalos e pela condução da pandemia.  apesar de não adotar nenhuma medida militar concreta contra a rússia, além de declarações e sanções parciais, johnson produziu uma brilhante jogada de marketing, ao se fazer filmar passeando lado a lado do presidente zelinsly pelas ruas vazias de kiev.

     nos estados unidos, o conflito produziu uma nova oportunidade para a gestão democrata de joe biden tentar minimizar os grandes desgastes eleitorais internos, extrapolando e explorando uma associação entre vladimir putin e donald trump.  com esse intuito, inflar o máximo possível o combate verbal e midiático às ações de putin significa uma oportunidade para combater indiretamente donald trump.

     joe biden e o partido democrata se encontram no início de 2022 com sérios problemas no front político doméstico, diante das eleições parlamentares de "mid-term" que se aproximam.  com uma reprovação de 70%, um  nível recorde para este momento de mandato na história política deste século, impopularidade recorde devida a questões como inflação elevada, já instalada antes do conflito ao longo de 2021, crises de imigração ilegal, indicadores econômicos preocupantes, como contração do pib e contração da renda pessoal, alta recorde da taxa de juros, tudo isso somado a uma imagem de fragilidade cognitiva do presidente, fatores que farão inevitavelmente o partido democrata perder a maioria no congresso nas próximas eleições.

     e numa situação tão desfavorável no front eleitoral, qualquer impopularidade se reverte automaticamente para o arqui-rival donald trump e o partido republicano.  e como, na política americana, quem fala em donald trump fala em vladimir putin, as ações militares russas na ucrânia têm sido utilizadas para, de alguma maneira, atingir donald trump. no mesmo sentido, as decisões do executivo americano em matéria de política externa tem sido totalmente condicionadas a esse imperativo de aproveitar a crise ucraniana como um campo de batalha simbólico de combate a trump. 

     com a a completa incapacidade americana de promover qualquer ação militar, por falta de sustentabilidade política, por falta de capacidade orçamentária, pela importante deterioração dos indicadores econômicos-sociais após dois anos de pandemia, o executivo americano tem tentado, assim, esticar o máximo possível o conflito, fornecendo armamentos para a ucrânia na ordem de 45 bilhões de dólares, o equivalente a 1 ano de ações militares americanas no afeganistão, e equivalente a dois terços do orçamento militar anual russo e, ao mesmo tempo, bloqueando qualquer iniciativa de solução negociada para o conflito, estimulando a liderança o presidente zelinsky na direção de uma guerra de atrito, uma guerra de guerrilha, baseada na concessão de armas leves, essencialmente lança-foguetes portáteis, os agora célebres "javelins".

     mais do que a defesa de interesses geopolíticos americanos, o governo americano atualmente na casa branca necessita desse conflito, precisa fomentá-lo, esticá-lo, mesmo que esteja de fato impossibilitado empreender qualquer participação militar direta, precisa mantê-lo nos noticiários e explorá-lo eleitoralmente, nutrindo ao mesmo tempo uma imaginária associação putin-trump.

     as grandes ofensivas políticas de boicote a qualquer negociação diplomática do conflito é um indicador dessa instrumentalização do conflito alheios.  após 30 dias de conflito, e após o início das negociações entre russos e ucranianos, mediadas pelo presidente da turquia, as diplomacias americana e europeia iniciaram uma ofensiva política para congelar essas negociações, procurando impedir que "a paz fosse presenteada a putin".

     uma atitude estranha, por concentrar esforços para "dar uma chance para a guerra", com todos os seus correlatos efeitos nefastos, em termos de vidas humanas e em destruição na ucrânia. uma inciativa política ocidental empreendida de maneira desproporcionalmente determinada, especialmente dentro da administração biden, que tem tratado o conflito ucraniano como uma defesa direta dos "interesses nacionais vitais", mesmo em se tratando de um distante país do leste europeu, que não pertence à otan, em conflito de fronteira com seu vizinho imediato. 

     a correlação entre trump e putin começou a ser construída e muito difundida desde a campanha eleitoral que elegeu trump, e que continuou sendo aprofundada durante todo seu mandato. o partido democrata acusou que as eleições haviam sido "hackeadas" por especialistas russos, e que isso havia decidido a derrota de hillary clinton. até mesmo uma longa "CPI" foi estabelecida para investigar a interferência russa nas eleições presidenciais, investigação que se arrastou por quase todo mandato de trump.

     para as lideranças democratas, a vitória de donald trump não teria sido fruto de uma mudança de valores, percepções, sentimentos e prioridades dentro do eleitorado americano, mas sim fruto de um fato isolado e fortuito, de um golpe eletrônico imposto desde fora por um aliado de trump, vladimir putin.

     talvez por essa associação ainda estar bastante viva no imaginário democrata, a cobertura midiática tem sido ilustrativa, com uma crítica intensa e feroz às ações militares da rússia, chegando a gerar uma histeria anti-russa, perseguições pessoais, intensa propaganda de ações ucranianas, além da já bem instalada estrutura de censura a qualquer tipo de versão alternativa sobre os desenvolvimentos no campo de batalha.  curiosamente e "sintomaticamente", a coalizão entre governos democratas, empresas tradicionais de mídia (como jornais e TVs) e grandes empresas de tecnologia, que já havia sido bem consolidada durante a pandemia de covid-19, foi atualizada para esta nova campanha, para o combate a uma nova epidemia, a virulência anti-russa.  Talvez não tenho sido apenas uma grande coincidência que a invasão russa da ucrânia tenha se iniciado no mesmo dia que boris johnson anunciava pela televisão o fim da pandemia na inglaterra.