Crise no ocidente neoliberal
0
0

Crise no ocidente neoliberal

A ordem ocidental neoliberal que se consolida após 1991 está impregnada pelo otimismo das relações de mercado sem fronteiras, um otimismo planetário, e foi pesadamente influenciada pela experiência da queda do muro de Berlin, ou do fim das ex...

Fernando Padovani
7 min
0
0

A ordem ocidental neoliberal que se consolida após 1991 está impregnada pelo otimismo das relações de mercado sem fronteiras, um otimismo planetário, e foi pesadamente influenciada pela experiência da queda do muro de Berlin, ou do fim das experiências de socialismo de Estado. Coincidentemente (ou não) ampliada pela introdução da internet na vida cotidiana em 1992, o sentimento de queda de fronteiras de limites, vivenciadas pela abertura de mercados, pela multiplicação dos fluxos de mercadorias, de capitais, de pessoas, mas, sobretudo, de informação, o que fundamenta essa experiência.

No plano cultural, essa ordem neoliberal, agora de traço ou aspirações muito internacionalista, muito transnacionalista ou, “globalista”, passa a ser marcada por tendências semelhantes, marcadas também por essa repentina ampliação de horizontes. Os traços culturais dessa época passam a cultuar um sentimento cosmopolitana, uma arquitetura de fusões pós-modernas, de “não-lugares”, de expressões culturais como música ou “fashion” marcadas pelos fusão de estilos multiculturais, de desconstrução de identidades livres de localismos, de instituições, de tradições, de heranças, de definições rígidas. De certa maneira, aprofundam as tendências “pós-modernas” já ensaiadas e identificadas na década anterior, que caracterizam uma ampla e longa reelaboração da Modernidade.

A expressão política desse sentimento de desconstrução das identidades modernas a partir dos anos 1990 foram movimentos igualitários e pluralísticos, novos movimentos de liberação com novas reivindicações, que foram incluídas da agenda da chamada “nova esquerda”, tais como, especialmente, os movimentos de desconstrução de gênero, e também, subsidiariamente, novos movimentos de resgate das questões de igualdade de gênero, de raça e de minorias culturais. Os movimentos de combate à identidade de gênero tradicional lideraram esta rebelião pós-moderna por ter sido a principal área de “normatividade” herdada do mundo da Modernidade, enquanto as outras reivindicações igualitárias, já abordadas nos anos 1960, como feminismo e movimento negro, foram revisitadas e revitalizadas, em função do sentimento de incômodo gerado pela factual fragmentação pós-moderna neoliberal, fragmentação econômica e sociológica. Estruturas tradicionais ainda resistentes da Modernidade, ou até anteriores, parecem ter se tornado disfuncionais, obstrutivas, não mais palatáveis nessa nova era, como o patriarcado, hierarquias, tradições, dominâncias, supremacias e privilégios. Em algum lugar desse espectro também se encaixam a já longa emergência de movimentos similares ao da “velha esquerda”, de contestação do sistema capitalista, mas, na virada de século “ajour-nados” como defesa do meio-ambiente.  

 Como NÃO era de se esperar, esses novos movimentos de desconstrução, parecem ser a fonte das reações culturais, de “guerras culturais” entre as novas militâncias e os de novos tradicionalismos, neoconservadorismo. Uma guerra cultural marcada pela intolerância, pois as posições emergem num momento de elevado contraste, do contato de valores muito diferentes, e de difícil negociação e assimilação. A inclusão de políticas de governo nessa variável, agregando ações concretas redistributivas em favor de qualquer uma das visões de mundo, bem como a descentralização das mídias de comunicação, com a multiplicação da comunicação e da formação da opinião pública através de plataformas sociais, que amplificam e otimizam a mobilização, sem dúvida tem tido o efeito de multiplicar a polarização e a radicalização destas guerras identitárias de uma pós-modernidade globalizada marcada essencialmente pela desconstrução social e econômica das identidades da Modernidade.

O curioso é que essa ordem neoliberal cosmopolita, chamada por alguns agora de “globalismo”, como um avesso do nacionalismo, parece ter entrado em questionamento após a crise financeira mundial de 2008, mas também pela perda de sustentabilidade da política externa imperial dos EUA, política esta que de alguma maneira emprestava sustentabilidade política para a ordem político e institucional no senso estrito. O atual esgotamento do intervencionismo americano, que fora iniciado a partir do final dos anos 1990, e amplificado a partir do 11 de setembro de 2001, começaria a se manifestar a partir das recessões de 2008/11, quando se evidenciaram as disfuncionalidades domésticas já instaladas, como atraso das infraestruturas, perda de competitividade, problemas de coesão social, bem no estilo da hipótese do “imperial over-strecht”. Estes temas, que tem sido pontos centrais recorrentes nas campanhas eleitorais tanto de candidatos democratas como republicanos, podem estra na base das decisões do movimento contemporâneo de “encolhimento” americano na cena internacional, como demonstram as retiradas de tropas do Iraque, do abandono apressado do Afeganistão, da terceirização da condução do conflito na Síria para a Rússia e, finalmente, para o imobilismo frente à invasão russa na Ucrânia.      

A crise sanitária gerada pela pandemia do vírus corona em 2020, e o tipo das políticas públicas adotas nas tradicionais economias ocidentais, podem ser um sintoma dessa mudança de percepção sobre a realidade política no Ocidente. Como uma ressaca de duas décadas de políticas neoliberais no Ocidente, com uma percepção de fracasso disseminada a partir de 2008. Uma percepção de fracasso expressa pelas agendas políticas tanto dos movimentos de esquerda como dos movimentos conservadores, ambos a partir de então defendendo pautas nacionalistas e protecionistas. Complementarmente, evidenciou-se o contraste do sucesso relativo das grandes economias emergentes, que passaram a ser coletiva mais ricas que o Ocidente, e mais promissoras, em função das taxas de crescimento, as democracias ocidentais parecem ter adotado a receita de sucesso destas novas economias emergentes, especialmente a China, mas também os BRICS, com suas histórias de sucesso apoiadas sobre uma espécie de “capitalismo de Estado”, economias de mercado conduzidas por “centralismo democrático”, com políticas públicas fortemente presentes na condução das decisões coletivas. O centralismo democrático acabou por colonizar as democracias liberais, a partir de efeito demonstração do sucesso de vigorosas políticas estatais na condução de sociedades em estado de profundo questionamento, e de medo diante das novas incertezas vindas de horizontes distantes, demasiadamente abertos, desprotegidos.

Nesse contexto que a eclosão da pandemia em 2020 oferece uma oportunidade para que um novo consenso fosse expressado no Ocidente. Uma redescoberta de políticas estatais mais pesadas, mais intervencionistas, de mecanismos de controle, da dimensão policialesca do Estado, de redução das liberdades fundamentais, entre outras.

Toda uma evolução que deixa a sociedade Ocidental numa encruzilhada, num final de ciclo onde os caminhos à frente não são nada claros. Em primeiro lugar a aceleração neoliberal dos anos 1990 deixou como um dos legados uma crise cultural, uma crise no plano das identidades. Crise das tradicionais identidades pessoais, identidades comunitárias, identidades coletivas, identidades nacionais. Foi um período de grande crescimento econômico, de ampliação das relações de mercado nas relações locais, e uma ampliação do mercado por coma das fronteiras, tão comumente chamada de “globalização”. Essa aceleração da disseminação de relações de mercado e esse sentimento de cancelamento de fronteiras criou, em uma mão, uma disfuncionalidade de várias estruturas sociais do século 20 e, em outra mão, esvaziou o sentido das próprias fronteiras, das delimitações, não apenas entre países, mas entre instituições. Em segundo lugar, as crises identitárias geram crises políticas, criando sérios obstáculos para a construção de consensos coletivos, dificultando sobremaneira a mobilização de amplas maiorias na direção de prioridades, na direção da ação, para a construção de políticas públicas minimamente sustentáveis, sejam elas quais forem. Em terceiro lugar, as políticas entre 1991/2008 deixaram como legado uma crise econômica, marcada por baixo crescimento, baixa competitividade e alto endividamento. E, por fim, um quarto elemento, esse final de ciclo culminou com um esgotamento da liderança mundial, o que tem deixado espaços vazios para a ocupação e para a construção de novos circuitos de liderança, bastante fortes e independentes dos interesses americanos e europeus, o que em nada contribui para a defesa dos interesses ocidentais. A ousada e desafiadora invasão russa na Ucrânia seria uma expressão desse encolhimento ocidental e, paradoxalmente, a reação limitada baseada em sanções, tem apenas contribuído para reafirmar mecanismos e circuitos econômico-financeiros alternativos para aqueles construídos e liderados pelo Ocidente desde o pós-guerra.