Mais ou menos ao longos dos, digamos, últimos 10 anos tem se acentuado a estruturação de debates públicos e, consequentemente, de políticas públicas a partir de divulgação de dados que retratam situações muito emergenciais mas, entretanto, ta...
Mais ou menos ao longos dos últimos anos, digamos, dos últimos 10 anos, tem se acentuado a estruturação de debates públicos e, consequentemente, de políticas públicas, a partir de divulgação de dados que retratam situações muito emergenciais mas, entretanto, também muito abstratas, complexas, difusas e de difícil percepção direta. Emergências que são apenas perceptíveis no plano das narrativas baseadas em indicadores. |
Problemas como aquecimento global, mudanças climáticas, injustiça social, de gênero, racial, violência urbana, têm dominado a pauta do debate público e das ações governamentais nos últimos anos, todos, baseados em elevado grau de abstração e também de invisibilidade. O advento da pandemia global do vírus corona em 2020 apenas extrapolou para os limites máximos (?!) a capacidade de percepção de gravidade e urgência de problemas coletivos mediados pela percepção indireta, gerenciada através de dados. |
De maneira esperada, em situações assim onde a gravidade socialmente percebida não ocorre de maneira direta e palpável, mas através de maneira gerenciada, intermediada, não é de se estranhar que essa "estrutura de incentivos" conduzam agentes sociais específicos a buscar o monopólio do fornecimento de dados, da produção de informação, e da produção de conhecimento, uma vez que, como diz o velho adágio da política, "informação é poder" e, consequentemente, monopólio da informação é monopólio do poder. Como os problemas da agenda pública são neste mundo pós-moderno contemporâneo cada vez mais complexos, a mediação e o acesso a essa problemática se torna também complexa, abstrata cada vez menos palpáveis, perceptíveis através de formas da experiência direta, dependentes de dados e indicadores. O que valoriza imediatamente as agências produtoras de dados, informações e de interpretações de dados. |
Esse "poder dos técnicos", os novos escribas portadores monopolistas da linguagem, no caso da linguagem científica autorizada para gerar dados e narrativas explicativas desses dados, é bem conhecida ao longo da história social, revigorada especialmente em momentos onde a tensão entre acesso monopolizado ao conhecimento e a exclusão de outros segmentos sociais desse idioma teve capacidade de gerar situações paralelas de concentração de poder e, assim, de privilégios. A já citada casta dos escribas, nas civilizações agrárias teocráticas orientais, as corporações de ofício europeias, baseadas no segredo de técnicas e na construção de barreiras de acesso para novos produtores, as ordens religiosas e seu monopólio autorizado e limitado da interpretação de textos sagrados sempre em tensão com interpretação alternativas heréticas, são exemplos recorrentes na história. Também a partir dos anos 1970, essa discussão emergiu novamente e se popularizou nas ciências sociais, diante das tensões geradas pela chamada "tecnocracia", e suas capturas em favor de interesses próprios, imediatos e corporativistas, e também interesses capturados compartilhadamente por segmentos específicos das elites locais. A imperatividade do protecionismo nacional, ou dos "ajustes econômicos" defendidas por economistas, ou as frentes de integração regional defendida por juristas, "tratoraram" as agendas sociais, elegeram vencedores setoriais, e geraram um vasto sentimento de "déficit democrático" nos anos 1990. |
O que é interessante notar é que em cada um destas situações históricas de monopólio de poder baseado no conhecimento, privilégios arregimentados por "elites de especialistas" através de narrativas legimitimizantes, sempre gerou-se focos de resistência ou contestação baseados, claro, também em narrativas alternativas "heréticas", ou, pelo menos, fortemente desautorizadas, onde as "instituições legítimas" eram e precisavam ser (auto-proclamadas) claramente identificadas como os lugares autorizados de produção de conhecimento. Polarizavam-se então momentos de embates narrativos entre ortodoxias e heresias, perseguidas e punidas em tribunais de fé por antepor visões explicativas alternativas. Seitas marginais contestando a autoridade da interpretação monopolizada, contra-reformas religiosas mistificantes, milícias policiando contrabandos e piratarias, validações acadêmicas contra versões vulgares ou populares, complexibilização artificial de modelos formais, tecnicismos, barricadas contra o diálogo de ideias e tomada de decisões. Atualmente, o poder baseado no conhecimento, a tecnocracia, se defende contra questionamentos que podem esvaziar seu poder, através de uma mobilização militante de instituições do status-quo, tradicionais, contra o que se tem chamado de "negacionismo", "anti-cientificismo", e ainda contra "fake-news", e até contestações classificadas como "discursos de ódio". |
Sintomas atuais em linha com os demais momentos históricos de intenso esforço generalizado de "desautorização" de versões, ou de restrição ou interdição do debate e da circulação de ideias, ou ainda momentos, quando possível politicamente, marcados pela pura, simples e direta censura. Em todos esses momentos, onde o maior é o calor gerado pela desautorização do debate, maior tende a ser o projeto de monopolização de poder baseado em narrativas, como o conhecimento autorizado, a "ciência correta", a pureza da ortodoxia. |
Mais intenso são esses períodos de contestação da Verdade única em momentos de revolução tecnológica que multiplicam repentinamente os meios de comunicação e de disseminação de informação, desorganizando os monopólios de difusão de conhecimento até então instalados e descentralizando o acesso à informação. O caso histórico paradigmático foi a invenção da imprensa na Europa, que democratizou o acesso ao conhecimento no Ocidente e quebrou o existente monopólio religioso para a divulgação de narrativas que organizavam o mundo. |
O papel de organização simbólica do mundo então exercido pela igreja romana por vezes é minimizado. Mas com o desmantelamento do Império Romano a partir do anos 400, a igreja católica passa a assumir esse espaço vazio imperial e assume a tarefa de organizar as relações sociais. Para essa tarefa, o papel desempenhado pelo conhecimento, e pelo monopólio de disseminação do conhecimento através da leitura, foi fundamental. Tratava-se de uma sociedade agrária, artesanal e rural de não leitores, onde a leitura era monopolizada pela classe de sacerdotes. A escala extremamente artesanal de livros e textos, apenas copiados à mão, era uma expressão desse monopólio. O textos disponíveis eram basicamente religiosos, através dos quais se disseminavam princípios de organização social, valores, princípios, mitos, mecânicas da vida e do mundo, a ordem natural das coisas, todos esses conceitos comandados e organizados pela igreja, e que eram interpretados como uma Verdade única. O grande poder político e econômico que esse monopólio permitia à igreja tornava ainda mais importante a centralidade dos textos sagrados na sociedade medieval, especialmente a centralidade de um único livro sagrado, que foi justamente montado e editado nesses anos 400, peça fundamental numa sociedade na qual ninguém lia. |
Curiosamente, uma das forças do livro sagrado era o monopólio de uma única classe social, os sacerdotes, para o acesso ao próprio conteúdo do livro, o acesso ao seu puro e simples conteúdo. As pessoas não sabiam ao certo o que estava escritos nesses textos, o que gerava uma ampla margem de interpretação e de criatividade por partes dos únicos leitores, e assim, amplos recursos de poder. Todas as versões de conhecimento que não estava no livro sagrado era considerado "fake-news", e a validação de informações era efetuada por "fact-checkers" sacerdotais e letrados. |
A invenção da imprensa por Gutemberg foi revolucionária porque quebrou o monopólio do saber e assim a autoridade da igreja. A oferta de textos passou a não depender da cópia manuscrita que até então era monopólio dos sacerdotes, passou a ser descentralizada. Lentamente, outros setores da sociedade medieval foram se tornando letrados, que passaram a consumir textos de outras naturezas, de outras procedências e com outras fontes de informações. Coincidentemente (ou não), é nesse mesmo momento em que começam a se publicar, estimulando o debate e o progresso do conhecimento, textos astronômicos, inquirindo e debatendo novas formas de entendimento do cosmos, questionando a versão bíblica que permanecera estável desde a Grécia, da mesma forma que haviam sido formulados por Ptolomeu, de que a Terra era o centro do universo. |
Entretanto, as observações astronômicas dos movimentos concretos dos astros traziam mistérios insolúveis quando aceita a premissa de que a Terra estava no centro do universo. Mais fácil seria fazer coincidir as observações, cálculos e previsões com a premissa de que o Sol estaria no centro, e os demais planetas, como a Terra, girando ao seu redor. Em 1543, um pouco antes de sua morte, um padre polonês que vivera muitos anos na Itália, chamado Nicolau Copérnico, publica a coletânea de seus ensaios astronômicos, demonstrando que o Sol estava no centro do sistema de planetas. Era uma revolução, pois essa ideia era totalmente contra-intuitiva, pois o movimento do Sol e da Lua no céu era visível, constatável a olho nu, como, aliás, defendia a bíblia. |