Desinformação baseada em evidências
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Desinformação baseada em evidências

Mais ou menos ao longos dos, digamos, últimos 10 anos tem se acentuado a estruturação de debates públicos e, consequentemente, de políticas públicas a partir de divulgação de dados que retratam situações muito emergenciais mas, entretanto, ta...

Fernando Padovani
7 min
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Mais ou menos ao longos dos  últimos anos, digamos, dos últimos 10 anos, tem se acentuado a estruturação de debates públicos e, consequentemente, de políticas públicas, a partir de divulgação de dados que retratam situações muito emergenciais mas, entretanto, também muito abstratas, complexas, difusas e de difícil percepção direta. Emergências que são apenas perceptíveis no plano das narrativas baseadas em indicadores.

Problemas como aquecimento global, mudanças climáticas, injustiça social, de gênero, racial, violência urbana, têm dominado a pauta do debate público e das ações governamentais nos últimos anos, todos, baseados em elevado grau de abstração e também de invisibilidade. O advento da pandemia global do vírus corona em 2020 apenas extrapolou para os limites máximos (?!) a capacidade de percepção de gravidade e urgência de problemas coletivos mediados pela percepção indireta, gerenciada através de dados.

De maneira esperada, em situações assim onde a gravidade socialmente percebida não ocorre de maneira direta e palpável, mas através de maneira gerenciada, intermediada, não é de se estranhar que essa "estrutura de incentivos" conduzam agentes sociais específicos a buscar o monopólio do fornecimento de dados, da produção de informação, e da produção de conhecimento, uma vez que, como diz o velho adágio da política, "informação é poder" e, consequentemente, monopólio da informação é monopólio do poder. Como os problemas da agenda pública são neste mundo pós-moderno contemporâneo cada vez mais complexos, a mediação e o acesso a essa problemática se torna também complexa, abstrata cada vez menos palpáveis, perceptíveis através de formas da experiência direta, dependentes de dados e indicadores. O que valoriza imediatamente as agências produtoras de dados, informações e de interpretações de dados.

Esse "poder dos técnicos", os novos escribas portadores monopolistas da linguagem, no caso da linguagem científica autorizada para gerar dados e narrativas explicativas desses dados, é bem conhecida ao longo da história social, revigorada especialmente em momentos onde a tensão entre acesso monopolizado ao conhecimento e a exclusão de outros segmentos sociais desse idioma teve capacidade de gerar situações paralelas de concentração de poder e, assim, de privilégios. A já citada casta dos escribas, nas civilizações agrárias teocráticas orientais, as corporações de ofício europeias, baseadas no segredo de técnicas e na construção de barreiras de acesso para novos produtores, as ordens religiosas e seu monopólio autorizado e limitado da interpretação de textos sagrados sempre em tensão com interpretação alternativas heréticas, são exemplos recorrentes na história. Também a partir dos anos 1970, essa discussão emergiu novamente e se popularizou nas ciências sociais, diante das tensões geradas pela chamada "tecnocracia", e suas capturas em favor de interesses próprios, imediatos e corporativistas, e também interesses capturados compartilhadamente por segmentos específicos das elites locais. A imperatividade do protecionismo nacional, ou dos "ajustes econômicos" defendidas por economistas, ou as frentes de integração regional defendida por juristas, "tratoraram" as agendas sociais, elegeram vencedores setoriais, e geraram um vasto sentimento de "déficit democrático" nos anos 1990.

O que é interessante notar é que em cada um destas situações históricas de monopólio de poder baseado no conhecimento, privilégios arregimentados por "elites de especialistas" através de narrativas legimitimizantes, sempre gerou-se focos de resistência ou contestação baseados, claro, também em narrativas alternativas "heréticas", ou, pelo menos, fortemente desautorizadas, onde as "instituições legítimas" eram e precisavam ser (auto-proclamadas) claramente identificadas como os lugares autorizados de produção de conhecimento. Polarizavam-se então momentos de embates narrativos entre ortodoxias e heresias, perseguidas e punidas em tribunais de fé por antepor visões explicativas alternativas. Seitas marginais contestando a autoridade da interpretação monopolizada, contra-reformas religiosas mistificantes, milícias policiando contrabandos e piratarias, validações acadêmicas contra versões vulgares ou populares, complexibilização artificial de modelos formais, tecnicismos, barricadas contra o diálogo de ideias e tomada de decisões. Atualmente, o poder baseado no conhecimento, a tecnocracia, se defende contra questionamentos que podem esvaziar seu poder, através de uma mobilização militante de instituições do status-quo, tradicionais, contra o que se tem chamado de "negacionismo", "anti-cientificismo", e ainda contra "fake-news", e até contestações classificadas como "discursos de ódio".

Sintomas atuais em linha com os demais momentos históricos de intenso esforço generalizado de "desautorização" de versões, ou de restrição ou interdição do debate e da circulação de ideias, ou ainda momentos, quando possível politicamente, marcados pela pura, simples e direta censura. Em todos esses momentos, onde o maior é o calor gerado pela desautorização do debate, maior tende a ser o projeto de monopolização de poder baseado em narrativas, como o conhecimento autorizado, a "ciência correta", a pureza da ortodoxia.

Mais intenso são esses períodos de contestação da Verdade única em momentos de revolução tecnológica que multiplicam repentinamente os meios de comunicação e de disseminação de informação, desorganizando os monopólios de difusão de conhecimento até então instalados e descentralizando o acesso à informação. O caso histórico paradigmático foi a invenção da imprensa na Europa, que democratizou o acesso ao conhecimento no Ocidente e quebrou o existente monopólio religioso para a divulgação de narrativas que organizavam o mundo.

O papel de organização simbólica do mundo então exercido pela igreja romana por vezes é minimizado.  Mas com o desmantelamento do Império Romano a partir do anos 400, a igreja católica passa a assumir esse espaço vazio imperial e assume a tarefa de organizar as relações sociais. Para essa tarefa, o papel desempenhado pelo conhecimento, e pelo monopólio de disseminação do conhecimento através da leitura, foi fundamental. Tratava-se de uma sociedade agrária, artesanal e rural de não leitores, onde a leitura era monopolizada pela classe de sacerdotes. A escala extremamente artesanal de livros e textos, apenas copiados à mão, era uma expressão desse monopólio. O textos disponíveis eram basicamente religiosos, através dos quais se disseminavam princípios de organização social, valores, princípios, mitos, mecânicas da vida e do mundo, a ordem natural das coisas, todos esses conceitos comandados e organizados pela igreja, e que eram interpretados como uma Verdade única. O grande poder político e econômico que esse monopólio permitia à igreja tornava ainda mais importante a centralidade dos textos sagrados na sociedade medieval, especialmente a centralidade de um único livro sagrado, que foi justamente montado e editado nesses anos 400, peça fundamental numa sociedade na qual ninguém lia.

Curiosamente, uma das forças do livro sagrado era o monopólio de uma única classe social, os sacerdotes, para o acesso ao próprio conteúdo do livro, o acesso ao seu puro e simples conteúdo. As pessoas não sabiam ao certo o que estava escritos nesses textos, o que gerava uma ampla margem de interpretação e de criatividade por partes dos únicos leitores, e assim, amplos recursos de poder. Todas as versões de conhecimento que não estava no livro sagrado era considerado "fake-news", e a validação de informações era efetuada por "fact-checkers" sacerdotais e letrados.  

A invenção da imprensa por Gutemberg foi revolucionária porque quebrou o monopólio do saber e assim a autoridade da igreja. A oferta de textos passou a não depender da cópia manuscrita que até então era monopólio dos sacerdotes, passou a ser descentralizada. Lentamente, outros setores da sociedade medieval foram se tornando letrados, que passaram a consumir textos de outras naturezas, de outras procedências e com outras fontes de informações. Coincidentemente (ou não), é nesse mesmo momento em que começam a se publicar, estimulando o debate e o progresso do conhecimento, textos astronômicos, inquirindo e debatendo novas formas de entendimento do cosmos, questionando a versão bíblica que permanecera estável desde a Grécia, da mesma forma que haviam sido formulados por Ptolomeu, de que a Terra era o centro do universo.

Entretanto, as observações astronômicas dos movimentos concretos dos astros traziam mistérios insolúveis quando aceita a premissa de que a Terra estava no centro do universo. Mais fácil seria fazer coincidir as observações, cálculos e previsões com a premissa de que o Sol estaria no centro, e os demais planetas, como a Terra, girando ao seu redor. Em 1543, um pouco antes de sua morte, um padre polonês que vivera muitos anos na Itália, chamado Nicolau Copérnico, publica a coletânea de seus ensaios astronômicos, demonstrando que o Sol estava no centro do sistema de planetas. Era uma revolução, pois essa ideia era totalmente contra-intuitiva, pois o movimento do Sol e da Lua no céu era visível, constatável a olho nu, como, aliás, defendia a bíblia.