Uma leitura geopolítica do conflito na Ucrânia
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Uma leitura geopolítica do conflito na Ucrânia

Futuro geopolítico após o conflito na Ucrânia

Fernando Padovani
12 min
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1.        geopolítica é uma maneira de organizar e entender os fatos da realidade social e histórica, uma metodologia, um mapa do pensamento, que por vezes revela e por outras esconde particularidades da realidade complexa e múltipla, não sendo a verdade, mas sendo sempre inspiradora: boa pedida para um passeio pelos seus pressupostos, e de maneira aplicada ao caso presente da Ucrânia...

2.     dentro seus propostas analíticas, está a racionalidade dos atores, as unidades políticas, que hoje são os Estados nacionais, uma racionalidade que se move sempre em função do desejo último e imperativo de sobrevivência enquanto tal, enquanto unidade política independente; unidades que se movem num jogo estratégico sobre um tabuleiro geográfico, que conta com acidentes geográficos, cordilheiras, planícies, mares, recursos, mas sempre nesse propósito racional de sobrevivência, fazendo coalizões, influenciando vizinhos e, se for o caso, atuando com violência, mediante exércitos e armamentos; sendo assim, as considerações de natureza jurídica ou institucional, ou seja, o "deve-ser", não contam como variável em última instância...

3.     a partir dos pressupostos clássicos da geopolítica, podem se entender alguns de seus adágios básicos, como por exemplo a noção de que, um Estado, tendo percebido uma ameaça à sua existência vital, e tendo poder para agir, agirá por quaisquer e todos os meios, inclusive através da ação militar; no mesmo sentido, deve ser entendida a noção de que a guerra não é um ato de irracionalidade selvagem, mas apenas a calculada continuação da negociação diplomática por outros meios...

4.     alguns desses princípios analíticos podem ajudar para revelar e organizar melhor os fatos soltos da crise política na ucrânia, que culminou com a invasão de tropas russas; começando pelo dimensão "macro" da  geopolítica, pelos movimentos geopolíticos de longo prazo, estruturais, os eventos da ucrânia parecem confirmar a hipótese de "vazio de poder", ou, no caso, da tendência de "fraqueza" do ocidente, e em especial dos eua, como fator determinante das decisões e dos acontecimentos; mais do que qualquer outro fator, a decisão russa pela invasão se deve à percepção de que não haveria a menor chance de reação ocidental, da Otan, para qualquer solução de força empreendida...

5.        a percepção de tal tendência já havia mostrado seus sinais ao longo da última década, mas ficou clara com a "jogada da toalha" dos eua em kabul, em julho de 21; a retirada atabalhoada das tropas americanas de kabul, retomada pelo taliban, conclui um longuíssimo e caríssimo processo de intervenção americana no oriente distante (afeganistão, iraque, síria, líbia), intervenções entusiasticamente apoiadas nos momentos de patriotismo, mas que trouxeram lastros pesados para o crescimento e a competitividade da economia americana no longo prazo; o completo esgotamento desse modelo intervencionista (no melhor estilo “imperial over-strecht”) ficou mais agudo, insustentável, nos dois anos da pandemia, com desemprego, crise social, endividamento, baixo crescimento, etc.; a "provocação" do taliban de retomar kabul (em julho de 21), sem “esperar” a cerimônia de saída americana, sem que isso provocasse a menor tentativa de manter as aparências por parte dos americanos, trazendo de volta milhares de soldados, emitiu sinais claros desse esgotamento, e assim, sinais de fragilidade geopolítica, percebido pelas potências médias rivais...

6.        essa sinalização de retração americana teria sido a "janela de oportunidade" que motivou a rússia de putin a recuperar o terreno perdido para a otan no “front” da europa oriental, a partir dos pressupostos geopolíticos da racionalidade, do imperativo de sobrevivência, e do vazio de poder; anos de descontentamento, queixas, tensões russas em relação ao avanço da otan na região, e especialmente na ucrânia, já vinham se acumulando desde 2007, mas havia, então, pouco espaço para movimentações concretas por parte da rússia, para além do plano jurídico, das organizações e dos discursos; a partir de 2015, a rússia já vinha fazendo testes, como no caso da criméia, empreendendo ações de força sem, entretanto, provocar grandes reações ocidentais, além das sanções protocolares; ao mesmo tempo, o ocidente buscava incomodar o espaço russo, através da militarização da ucrânia e dos países do leste europeu, além de não cumprir os acordos de minski, provocando uma situação de tensão latente na região do leste ucraniano, o dombass, com o conflito aberto...

7.        a "jogada da toalha" americana em kabul em 2021, além do acúmulo de problemas sociais e econômicos provocado pelas políticas públicas adotadas no ocidente, provocando uma crise auto-inflingida, acendeu um grande sinal verde para a rússia agir de maneira violenta, segura que estava da incapacidade de resposta do ocidente, seja pelo endividamento americano, pela crise econômico-social, pela polarização política, pela liderança enfraquecida, pela dependência energética, pelo esgotamento do modelo "hawk" de intervenções em países distantes, pela desunião dentro da otan, pela acrescida dependência energética, especialmente na europa... 

8.      uma avaliação aparentemente acertada por parte da rússia, pois em nenhum momento europa e eua ousaram ensaiar qualquer ação militar concreta para inibir a rússia, como ficou evidente pelo caso dos migs poloneses e pelas declarações enfáticas de biden de "no boots on the ground"...

9.        nesse contexto, menção especial merecem as "sanções econômicas";  independentemente do debate abstrato de sua efetividade, mesmo com a recusa de muitas economias emergentes importantes em aderir às sanções contra a rússia, com destaque para o apoio incondicional da china, e mesmo da recusa dos próprios países europeus em estender tais sanções para a única dimensão relevante, ou seja, o corte das importações de gás russo, uma questão central para o entendimento do alcance (geopolítico) das sanções é que elas significam outra coisa quando pronunciadas: "infelizmente, não vamos enviar tropas, lamento !"; a cada vez que alguma liderança política pronuncia a frase "estamos implementando sanções econômicas pesadíssimas", o que deve ser ouvido como tradução mais significativa é a frase "infelizmente, não vamos enviar tropas, lamento !"

10.        diante desse cenário de estrutural imobilismo ocidental, as lideranças políticas optaram pelas trilhas restantes disponíveis, ou seja, de minimização do custo político, eleitoral, de curto prazo, no sentido de contrabalançar a percepção generalizada de debilidade; ao mesmo tempo em que se iniciou um contrabando de armas para dentro da ucrânia, como uma tentativa de última hora de gerar dificuldades para a campanha russa, de aumentar o custo da intervenção, também se iniciou um tiroteio de frases de repúdio, um bombardeio de declarações, de "subidas de tom", gestos de teatro reproduzidas por uma mídia camarada, uma coalizão já forjada recentemente durante a pandemia; no contexto americano, a batalha de narrativas contra putin ganha tons de segurança nacional, de emergência social, a ponto das redes sociais censurarem abertamente posições críticas em relação à guerra; a associação antiga entre putin e trump no contexto político eleitoral americano, os índices de impopularidade do governo biden, a aproximação de novas eleições ("mid-term"), e a possibilidade de retorno eleitoral de trump, transformaram a campanha russa na ucrânia numa nova pandemia, contaminando e enviesando definitivamente a cobertura do conflito, com desdobramentos de demonização histérica de tudo o que se relaciona à cultura russa...

11.        no plano "micro" da geopolítica, na análise específica da ação militar russa no território ucraniano, as ações podem ser entendidas a partir daquele já mencionado princípio clássico da análise geopolítica: "a guerra é a continuação da negociação por outros meios"...

12.        ciente da incapacidade de resposta militar da otan, além de do tradicional bombardeio de frases de efeito ou de campanhas publicitárias nos telejornais, e ciente da complexidade de uma operação sobre uma território extenso e povoado, o comando militar russo parece ter optado por uma estratégia de ocupação gradual, visando a desarticulação de toda a infraestrutura militar ucraniana, aeroportos, bases militares, armamento, asfixiando lentamente a circulação de tropas, ocupando amplas faixas de território, do litoral, cercando sem entrar as grandes cidades, tornando irreversível o panorama militar, tornando a perda de autonomia da ucrânia num fato consumado; serão essas novas realidades militares vindas do terreno que deverão ser levadas para a mesa de negociações: uma irreversibilidade da ocupação militar no terreno aliada à negativa de apoio direto da otan, mesmo diante dos desesperados clamores do presidente zielinski...

13.     as alternativas, tanto para o governo da ucrânia e, indiretamente, também de interesse de alguns países ocidentais, como eua, frança e inglaterra, que vivem o semestre em meio a campanhas eleitorais, seriam, por um lado, esticar o máximo possível o conflito, numa lógica de guerra de guerrilha, ou de guerra de desgaste, como moeda de compensação diante de uma cenário composto por vastos espaços territoriais dominados e ocupados militarmente pelos russos, pela falta completa de perspectivas de apoio militar externo, além do contrabando de armas leves para o conflito, e ainda pela impossibilidade de se reverter militarmente a ocupação russa, ou, por outro lado, negociar a paz, atender as concessões impostas pelos russos e aí, então, poder começar a reconstruir o país e a vida normal com autonomia; uma segunda alternativa que, cada vez, parece se tornar "mais barata", diante do "fato consumado" no plano militar e das perdas humanas e econômicas que se avolumam; já ao final da segunda semana da operação russa, zielinsky havia sinalizado que estaria disposto a abrir mão do projeto da otan, e expressou publicamente críticas às lideranças europeias...

14.     diante daquele clássico princípio geopolítico do papel negocial da guerra, cabe aqui um lembrete sobre as prováveis intenções e motivações russas na ucrânia : (a) marcar uma posição (duradoura) diante do ocidente, transformando os estados tampões da bielorússia e ucrânia numa questão "sagrada" ou "tabu" para o futuro da política europeia;  (b) não promover em nenhuma hipótese uma "ocupação" da ucrânia, como já amplamente ficou demonstrado pelas ocupações impossíveis no iraque, no afeganistão, síria, vietnam e etc.; (c) não promover nenhum tipo de "expansionismo" ou "imperialismo" russo, nostálgico, mas sim uma "sacralização" das suas prioridades geopolíticas defensivas...

15.     nessa perspectiva, possuindo a proposta de análise da geopolítica algum traço de coerência, o diagnóstico bastante recorrente nas mídias ocidentais sobre a "loucura de putin", ou de seu estado de desconexão com a realidade, pode sugerir uma declaração velada de desnorteamento por parte dos analistas públicos...

16.      no que se refere à lista de exigências russas para a paz, com a evolução das operações, começam a parecer “leves”, em comparação com o peso do sofrimento e da destruição causadas pela invasão militar; tal lista inclui :  (a)  retirada formal da constituição do projeto de adesão à otan;  (b)  desarmamento-desnuclearização da ucrânia;  (c)  proteção da língua russa;  (d)  combate ao ultra-nacionalismo;  (e)  aceitação formal da anexação da criméia à federação russa e (f) concessão de um estatuto de autonomia para as províncias do dombass...

17.     a análise geopolítica do tabuleiro ucraniano sugere alguns desenvolvimentos possíveis para a situação :  (a) muito provavelmente não haverá anexação nem ocupação na ucrânia; (b) não deverá haver no leste europeu uma escalada expansionista russa, de estilo neo-imperial; (c) coerente com essa ausência de um neo-expansionismo russo, não deverá haver uma escalada de estilo "guerra-fria" no leste europeu, com a retomada da polarização na região e com escalada da militarização tanto da otan como da rússia, uma vez que as tensões atuais tendem a ser apenas pontuais e momentâneas, tendendo assim a se esvaziarem no médio prazo;  (d) o que muito mais a ação russa parece inaugurar seria uma nova época de tensões entre potências médias, o desdobramento de uma espécie de "brics militar", dando continuidade à confrontação que já vinha sendo promovida pelo bloco frente ao G-7 no plano econômico e que, agora, parece empurrar os enfrentamentos na direção de outros espaços vazios, permitindo a rebeldia também no campo militar; essas novas tensões tendem a ser um movimento sem volta no médio prazo, pois o ocidente (G-7  e otan), ainda que muito poderoso e rico, tende a continuar sua caminhada na vertente de encolhimento; (f) esta ação russa de 2022, fora de "uma ordem internacional baseada em regras", pode ser entendida como um dos legados americanos para a sociedade internacional, uma vez que foi o principal responsável pela destruição do edifício do ordenamento jurídico e institucional internacional ao longo do seu reinado como potência hegemônica, pautando sua ação de "polícia do mundo" através da exceção e da violência unilateral, como demonstram as invasões de alto impacto humanitário, ao arrepio das normas, princípios e organizações internacionais, promovendo ações desse tipo no kosovo, afeganistão, iraque, líbia e síria, e que abririam a avenida pela qual as tropas russas desceram agora até a ucrânia, e pela qual outras potências médias se sentirão tentadas a utilizar, por capricho ou por necessidade; não seria exagerado dizer que o legado americano na política internacional contemporânea são os escombros da ordem internacional regida por regras, como brevemente vigorou no começo dos anos 1990, a primavera dos blocos regionais e das organizações internacionais; (g)  além disso, a crise política na ucrânia, somadas às tentativas de retaliação ocidentais, parece empurrar de vez a rússia para a sua aventura asiática, na direção do pacífico, e de costas para a europa, num projeto "eurasiano"; no longo prazo, essa nova situação poderá  vir a ser um problema estratégico para a rússia, em termos de uma dependência da china, mas hoje, parece representar um importante desvio na encruzilhada geopolítica, reaproximando essas duas potências históricas, e revertendo assim uma política "kissingeriana", cuidadosamente implementada pelos americanos desde os anos 1970, de separação do urso do dragão, em favorecimento de ambos e em detrimento da liderança ocidental...

18.   dentro desse amplo movimento, outras questões derivadas mas muito importantes podem se tornar mais intensas, posto que sintomas, como especialmente as questões do dollar como moeda internacional e de londres como centro financeiro global; as sanções contra a rússia, ao se pretenderem as mais drásticas possíveis, e paradoxalmente, podem reforçar e não amenizar o movimento de "des-centramento" do ocidente, ao estimular a criação e a consagração de alternativas financeiras e monetárias para as transações internacionais, fora do sistema existente controlado pelas potências ocidentais; tanto nos planos da geopolítica como da economia política, chamam a atenção a manifestação explícita de várias potências médias no sentido de recusar o alinhamento automático às sanções ocidentais contra a rússia, tais como índia, méxico, brasil, arábia saudita, irã, israel, áfrica do sul, paquistão ou turquia, mais ainda um número significativo de governos asiáticos e africanos, além, claro, do ostensivo apoio chinês às aventuras militares russas, podem ser indicadores de rachaduras permanentes no bloco da globalização ocidental liderado pelos eua;  ao querer ansiosamente punir a rússia, jogando-a para fora do mundo, o que as lideranças ocidentais podem estar fazendo desapercebidamente é apenas jogar a rússia para fora do sistema ocidental, um espaço cada vez menor...