Neo-tecnocracia hoje
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Neo-tecnocracia hoje

o antigo crítico agora critica a crítica...

Fernando Padovani
7 min
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  1.      para quem foi universitário nos anos 1980 não deixa de ser irônico e estranho como vemos o renascimento hoje, e em grande estilo, da tecnocracia, da ideologia tecnocrática, do poder dos tecnocratas: tempos de uma neo-tecnocracia.
  2.     tempos peculiares, novamente povoados por movimentos políticos coletivistas, de encolhimento dos direitos individuais, tempos de medidas generalizadas de censura e de interdição de debates, de desautorizações de interpretações, em meio a onipresentes acusações de "negacionismo" e de "anti-intelectualismo" no debate social sobre políticas públicas, eis que renasce o reinado soberano da velha e conhecida tecnocracia.
  3.      renasce praticamente das cinzas, uma vez que o debate crítico já havia se consolidado bastante já a partir dos anos 1980, disseminando a percepção de como na história das políticas públicas, especialmente ao longo dos anos 1970, havia se consolidado o poder dos especialistas e, consequentemente, se despolitizado as decisões  governamentais, as prioridades coletivas, promovendo a legitimação técnica de escolhas políticas específicas em detrimento de outras.
  4.      um dos exemplos clássicos da crítica tecnocrática foi a crítica das políticas econômicas, das políticas de desenvolvimento, das políticas de ajuste, do tecnicismo macroeconômico utilizado para consagrar escolhas sociais que eram de fundo político.  no mesmo sentido, mais tarde, nos anos 1990, também se consolidou a crítica tecnocrática no debate sobre integração econômica que emergia na época, especialmente na europa, consagrando-se então o conceito de "déficit democrático", que simbolizava a captura de poder por parte de agentes não eleitos (técnicos e burocratas das entidades regionais) que, em nome de imperativos técnicos da integração, padronizavam regulações, definiam prioridades sociais e conduziam a direção de políticas públicas.
  5.      esse debate sem dúvida foi muito influenciado pela caracterização pioneira elaborada por theodor adorno e max horkhaimer nos anos 1960, que poeticamente classificavam a captura tecnocrática como uma "dialética do iluminismo", demonstrando como a racionalidade instrumental poderia ser colocada a favor de muitas irracionalidades, e inclusive da barbárie.
  6.      o entendimento da ciência e das técnicas como fonte de legitimação do poder político, na verdade, pode ser já identificado desde os tempos de galileu, um dos ícones dos questionadores solitários e marginais, que se celebrizou por questionar um dos consensos científicos centrais de sua época, duvidando da centralidade da terra no sistema solar e, assim, questionando por extensão o poder de influência da própria igreja.
  7.      por essa razão, após esse longo questionamento do papel do conhecimento científico na sua relação com o poder, não deixa de ser uma ironia da história observar o resgate da tecnocracia, da sacralização dos técnicos governamentais, da tentativa de estreitamento da mesa de debate, restrita hoje apenas aos "autorizados" na segunda década do século 21, irônico talvez por envolver, via de regra, as mesmas pessoas, os mesmos indivíduos que, há três décadas, ascenderam à arena do debate público justamente por questionar o poder dos tecnocratas de então.
  8.      um procedimento intelectual e político idêntico, mas que, agora, tem sido extensivamente utilizado com sinal trocado, onde a reinvenção da tecnocracia, predominantemente governamental, e que, por isso em geral entroniza posições coletivistas  e estatizantes, voltam a militar na reivindicação da "inquestionabilidade" do diagnóstico e de suas respectivas "autoridades científicas" (se é que pode haver termo mais irônico), no sentido e no intuito de validar e legitimar escolhas e preferências particulares, ideológicas, políticas, incorporadas e embutidas em medidas de políticas públicas.
  9.      talvez, essa tendência do antigo crítico criticar agora a própria crítica, de inversão de campos, de troca de lados do balcão e de interesses, promovendo o tão cultuado "pensamento crítico" com troca de sinais, seja apenas mais um elemento dentro de uma ampla lógica contemporânea que poderia ser classificada como "a direita é a nova esquerda".
  10.      também bastante interessante notar é a aproximação atual de instituições e de forças sociais democráticas de práticas e instrumentos autoritários, da mesma maneira que a primeira onda de denúncia da captura tecnocrática das prioridades políticas, viabilizada através da exagerada afirmação da "autoridade científica", como aquela que se implementava através das políticas econômicas nos anos 1970, sempre qualificada como uma prática autoritária e anti-democrática, uma vez que quase sempre associada aos regimes ditatoriais, com no caso das políticas neoliberais na américa latina.
  11.      a associação entre tecnocracia e totalitarismo tem assim um "pedigree", uma certa tradição, e uma grande coerência em função do claro esvaziamento do debate público, da radical diminuição da base social para a tomada de decisões, reduzida nos ambientes tecnocráticos à jurisdição privilegiadíssima de um círculo de especialistas confiáveis escolhidos.
  12.      nesses ambientes, qualquer forma de questionamento científico, técnico, metodológico se torna uma forma de resistência política, numa rebelião, numa contestação muito mais ampla, contrária à implementação autoritária (pela via tecnocrática) de um modelo particular de organização social, seja ela de qualquer matiz ou orientação.
  13.      o truque da tecnocracia é transformar um processo científico aberto e investigativo, como a avaliação ou teste público de hipóteses alternativas, com todos os seus benefícios e riscos, certezas e incertezas, num processo de escolhas prévias e direcionadas de alternativas, consagradas em seguida como medidas e políticas, protegidas do questionamento pela força da autoridade de instituições e de especialistas, enfaticamente auto-declaradas como consensuais, e por fim, inquestionáveis e, assim, automatizando escolhas que são sempre e totalmente políticas: "follow the science !
  14.      nesse sentido, a tecnocracia pode ser classificada como uma espécie de "cientismo", na expressão do filósofo americano matthew crowford : quando a ciência não puder ser falseável como cerne da sua metodologia, ela acaba se tornando um dogma, objeto de fé e crença, posturas comuns no seio de seitas e religiões, e de grupos que se baseiam na autoridade.
  15.      da mesma maneira, se a ciência e, especialmente, suas instituições científicas, cheia de interesses imediatos e concretos, como todas as instituições humanas, acabam capturadas pelo jogo tecnocrático, se forem utilizadas ou cooptadas para legitimar esquemas de poder, tudo o que essas instituições científicas mais vão demandar e exigir são certezas, pois certezas geram autoridade.
  16.       talvez essa tendência de renascimento da captura tecnocrática seja coerente com movimentos históricos mais amplos, como a contemporânea onda de "re-centralização do poder", de natureza coletivista, dirigista e estatista, movimento ou sentimento que pode ter sido fortalecida e consolidada no pensamento político ocidental, e assim sendo em suas políticas públicas, em virtude da crise econômica de 2008, e pelo paralelo questionamento das políticas neoliberais e globalizadoras, inspirando uma espécie de renascimento do nacionalismo, ainda mais diante do exemplo-demonstração oferecido pelos casos de sucesso dos governos emergentes pesadamente estatistas e dirigistas, como a china, mas também em grau menor de rússia, brasil e índia, modelo social e político que de maneira surpreendente e em graus diferentes, tem sido resgatado pelo ocidente.
  17.      um movimento que se aproveita também do modelo de institucionalização da ciência no ocidente, modelo que, a partir da 2a guerra mundial, apoiou-se em pesadas organizações, com elevada dependência de financiamentos estatais, o que torna também sua sobrevivência amplamente do ambiente político, e às vezes, até eleitoral.  essa aproximação cheia de dependência, criou o ambiente para um mutualismo proveitoso entre estruturas científicas e estruturas políticas, uma fornecendo financiamentos para sua continuidade, e a outra fornecendo narrativas científicas legitimadoras.
  18.      essa aproximação entre ciência e governos, no século 21 pós-moderno, certamente deve ter contribuído para a "fadiga", ou esgotamento geral desta ciência institucionalizada, das grandes instituições científicas, em paralelo com o esgotamento pós-moderno, esvaziamento, "dessacralização" de outras grandes instituições, narrativas e esquemas de mundo oriundos da modernidade do século 20, como verifica-se igualmente com partidos políticos, sindicatos, jornais, igrejas, democracia representativa, cidadania, nacionalismo, escolas, entre tantas outras.
  19.      some-se a essa tendência uma outra, de natureza tecnológica, a disseminação e a descentralização da informação, do conhecimento, através da internet que, de maneira similar ao livro impresso gutemberguiano, desmonopolizou a produção de versões, multiplicou as fontes de explicação do mundo ou, mais precisamente, multiplicou as fontes produtoras de narrativas organizadoras do mundo.
  20.      talvez vivamos uma época de "atrevimentos", "how dare you ?!", numa frase que tem se tornado icônica, um atrevimento galileano de questionar desde a margem as narrativas das autoridade das instituições científicas centrais, um questionamento que, de maneira nada surpreendente, tem sido percebido e rotulado como "negacionismo" ou "anti-intelectualismo.