Perspectivas geopolíticas a partir da Ucrânia
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Perspectivas geopolíticas a partir da Ucrânia

     Toda a movimentação prévia da Otan na direção do leste europeu, se aproximando suas estruturas militares das fronteiras russas, cada vez mais parece ter sido resultado de um consenso de uma época marcado por um extremo otimismo. Otimismo...

Fernando Padovani
9 min
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     Toda a movimentação prévia da Otan na direção do leste europeu, se aproximando suas estruturas militares das fronteiras russas, cada vez mais parece ter sido resultado de um consenso de uma época marcado por um extremo otimismo. Otimismo momentâneo sobre a incapacidade russa de reagir a esta ameaça, a este avanço estratégico-militar ou, de outro modo, sobre o pleno e inquestionável poderio Ocidental de reformatar a geopolítica nesta Europa oriental. O mesmo entusiasmo que levou a Otan ao Afeganistão, Iraque e Síria, renovando a justeza das intervenções repetidamente ao longo de 20 anos, até a sua falência e desistência final.

     Este entusiasmo momentâneo seguramente foi inspirado pela situação de momento da fragilidade russa, chinesa, indiana e de todos os países emergentes, em processo de reconstrução. Entretanto, essa situação do mundo fora do G-7 mudou radicalmente ao longo dos últimos 20 anos, de maneira lenta e incremental, até o momento onde subitamente se percebeu que a correlação de forças havia mudado, se enviesado na direção das economias emergentes. A crise militar na Ucrânia em março de 2022 e, sobretudo, o colapso da ocupação militar americana no Afeganistão, em julho de 2021, nesse contexto, se revelam como algo muito mais significativo que uma guerra local.

     A tentativa Ocidental de combater o avanço dos tanques russos com sanções econômicas, por mais daninhas que elas possam ser, são um exemplo claro da incapacidade Ocidental de combater este movimento de novo equilíbrio com instrumentos de poder efetivos, um indicador do esgotamento momentâneo do Ocidente de bancar ações de manutenção da sua Ordem.

      Em primeiro lugar, pela clássica ideia de que brandir verbalmente sanções econômicas difusas significam no tabuleiro geopolítico apenas uma declaração disfarçada de renúncia de intervenção militar direta. Em segundo lugar, estas sanções, no caso atual da Rússia, significam muito mais a cessão de um espaço para China e outras grandes economias emergentes do que um banimento para lugar nenhum. Um certo etnocentrismo Ocidental entende que a decretação de sanções econômicas significa uma forma de banimento para fora do mundo, sem perceber que podem estar significando apenas um banimento para fora do cada vez mais restrito espaço econômico Ocidental, empurrando a Rússia para um outro circuito liderado pela China, e para um circuito que aliás se amplia com este movimento. Duas situações que apenas confirmariam a ineficácia de longo prazo da resposta Ocidental frente a este movimento de força da Rússia.

      O simples fato de a Rússia ter ousado esta invasão seria talvez o maior indicador deste encolhimento (e não, ainda, uma crise definitiva) do Ocidente. Talvez tenha sido o mais importante e ousado ato geopolítico de independência nos últimos 30 anos, e evidenciou a incapacidade da ordem Ocidental de conformar o sistema internacional como fazia até então. Nesse sentido, a decisão russa não pode ser pensada sem o momento na qual ela foi tomada. Como já foi dito, este momento não tem muito a ver com o recrudescimento da crise humanitária dentro do Dombass ucraniano, não tem a ver com o acúmulo de ameaças da Otan no “near abroad” russo, não tem a ver com o amadurecimento interno de um plano nostálgico russo de reconstrução da União Soviético ou do Império de Catarina a grande, mas sim teria a ver direta e intensamente com a consolidação da percepção, pela Rússia e pela plateia internacional, de fadiga imperial por parte dos EUA, a partir da retirada atabalhoada doas tropas americanas de Kabul, em julho de 2021.

     E ainda haveriam outros sinais adicionais de fragilidade da antiga ordem liberal ocidental, que têm se manifestado especialmente após a crise financeira global de 2008, elementos que apenas contribuiriam para que o Ocidente perca sua capacidade de fazer as grandes economia emergentes orbitar ao redor desta sua antiga ordem, como demonstram a baixa aderência às sanções por parte de todos os países fora do antigo G-7, ou ainda os sinais de desunião interna dentro da própria ordem ocidental, além de elementos como uma certa de fragilidade de liderança, como tem sido apontado aqui e ali a discussão sobre a baixa “qualidade das lideranças” ocidentais, o caos político no Ocidente, polarizações domésticas, como exemplificam as ferozes críticas internas sobre as ações de Joe Biden no cenário internacional, e ainda a recente crise ocidental das liberdades civis e direitos fundamentais, tais como o direito de liberdade de expressão, evidenciadas durantes a pandemia sugerem que a crise Ocidental ultrapassou as dimensões da competitividade, da sustentabilidade fiscal, e teria alcançado também o plano dos valores.

      A ânsia imediatista de promover punições contra a Rússia tem promovido uma onda de quebras de contratos em relação aos interesses e ativos externos russos. Este movimento arbitrário poderá ser o grande elemento de instabilidade de todo sistema econômico internacional liderados pelos EUA, baseados em princípios liberais, e no valor central da confiança. Uma eventual crise de confiança pode colocar em cheque as instituições regulatórias ocidentais, que foram exatamente construídas exatamente sobre o pressuposto fundamental da confiança. Curiosamente, se há um mês esperava-se no Ocidente que as sanções, como o confisco de reservas cambiais russas, fossem fazer desmoronar o rublo, a economia russa, e por extensão o governo de Putin, passados 30 dias, o rublo continua estável e as dúvidas começam a surgir sobre o futuro do dólar como meio de pagamento internacional, que em função das medidas retaliatórias, pois as instituições financeiras e monetárias começam a ser vítima de uma crise de confiança. No “front” doméstico, paradoxalmente, a opinião pública na Rússia tem aumentado consistentemente, expressando seu apoio à invasão militar e também ao próprio governo Putin.

      Até mesmo as ações unilaterais das grandes empresas ocidentais que aderiram voluntariamente às sanções russas, podem estar transmitindo um sinal para todas as economias emergentes de que elas não são apenas uma marca neutra, mas sim um instrumento de poder de Estado e de governos, e podem estimular o desenvolvimento de similares nacionais, de protecionismo, de substituição de importações.     

      Por outro lado, o debate sobre a “justiça” da invasão russa cada vez mais parece ser um debate desgastado, quase vazio. Em primeiro lugar pela presença imponente da realidade geopolítica. Nessa realidade, um Estado ameaçado e que venha a ter potência de ação, absoluta e relativa em relação aos seus rivais, deverá agir inevitavelmente com força militar. Em segundo lugar, em função dos escombros da “ordem internacional baseada em normas” deixados como legado pela dominação hegemônica e solitária dos EUA entre 2001 e 2021. Revertendo a tendência inicial dos anos 1990, onde o país aproveitou o desabamento da URSS e o erguimento da União Europeia para estimular os atores internacionais para a construção de uma ordem multilateral, partir do ensaio geral da intervenção militar no Kosovo em 1999 e alavancado pelo ataque de 11 de setembro, os EUA saiu a campo para demolir essa ordem baseada em regras a seu favor. Essa destruição, alertou potências emergentes sobre a crua falta de limites arbitrária da potência solitária, tornando todos em alvos possíveis e eventuais, mais também legou um rebaixamento significativo nos parâmetros legais capazes de moldar ações internacionais. A invasão russa na Ucrânia, uma crua e cruel invasão militar, se viabilizou justamente a partir da completa falta de parâmetros legais legados por duas décadas de ações americanas arbitrárias, uma intervenção militar que passou pela estrada da ilegalidade aberta cuidadosamente pelos EUA a partir de 2001.

      Mas seja qual for o entendimento jurídico-legal desta questão ucraniana, ela em nenhuma maneira anula o vital debate da questão através do viés geopolítico. Em primeiro lugar, na escala macro, a decisão no sentido da invasão muito provavelmente foi motivada pelo esgotamento imperial americano, tornado explícito com a total falta de disposição de reverter a retomada de Kabul pelas milícias talibã, culminando um programa de quase uma década de sistemática desengajamento dos conflitos no Oriente. Este pode ser entendido como o sinal mais significativa para a ousada operação russa. Ao mesmo tempo, as forças militares e políticas europeias já vinham emitindo sinais de críticas e desunião. A situação de recessão econômica pós-pandemia, com endividamento público elevado no Ocidente, contribui bastante para essa tendência geral de esgotamento do tal “ativismo” em matérias de política externa. Putin teria avaliado, aparentemente de forma correta, que a Otan não teria fôlego para reagir à iniciativa russa de recuperar o espaço estratégico perdido no leste europeu, especialmente no ponto crítico para a sua segurança, as planícies ucranianas.

      Em segundo lugar, no que se refere à escala micro, específica, à operação militar em si, a estratégia verificada no terreno sugere uma abordagem incremental, cuidadosa, no melhor estilo da chantagem militar racional, buscando concessões em negociações diplomáticas subsequentes. A invasão russa se procedeu com uma etapa prévia de bombardeios focados na defesa aérea da Ucrânia, seguida da entrada lenta e cuidadosa de tropas e dominação de vastas extensões de território, cercando mas evitando a invasão de grandes cidades, interrupção de canais internos de mobilidade militar, isolando tropas ucranianas, esgotamento cadeias de suprimento, promovendo ações em três “fronts” (sul, leste e norte), para evitar contra-ataques nas retaguardas, promovendo um lento abraço de gibóia. Ao mesmo tempo, procurou utilizar em solo ucraniano apenas 50 mil dos 200 mil homens mobilizados até as regiões de fronteiras, e da mesma forma não utilizando seus batalhões de elite, seus MIGs de última geração e seus tanques de última geração T-14, com baixo número de mortes de civis comparadas com os padrões de outras invasões americanas.

      Claro que a operação militar russa poderia ser melhor, mais curta e com menos perdas, mas, de modo geral, no frigir dos ovos, a operação tem se desdobrado de maneira muito efetiva para a Rússia, se considerarmos a extensão do território ocupado dentro da Ucrânia, e pela eficiência russa em zerar os efetivos defensivos ucranianos, que em linhas gerais, perdeu 75% de sua infraestrutura militar no primeiro mês de ações. As baixas ucranianas que começam a se contabilizar publicamente, parecem definitivas após 30 dias de combate, com algo em torno de 50 mil soldados mortos (25% do efetivo total), 1.600 tanques destruídos (2/3 do total), perda da metade das unidades de artilharia (750 unidades), e 75% de toda a aviação militar (120 aviões), e cerca de 80% das defesas aéreas. A tal ponto que, a esta altura, após 30 dias de operações, parece já impossível que o exército ucraniano reverta minimamente as conquistas russas já consolidadas. O “timing” para a negociação parece ter chegado.

      Entretanto, trata-se de uma guerra bem russa, ou seja, suja, pesada, destrutiva, cheia de perdas, com uso pesado de artilharia, focada na inviabilização do espaço aéreo local para inimigos, sejam locais ou eventualmente de países vizinhos, isolando assim os campos de batalha de ataques aéreos. Tal abordagem, além de russa também é coerente com uma autocracia militarizada, onde o peso da opinião pública não é um fator determinante como critério de sucesso.