Conto: O Diário (Parte V- O final)
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Conto: O Diário (Parte V- O final)

 Seria a intensidade do sentimento?

Gisele Lance
3 min
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 Seria a intensidade do sentimento?

Intenso e pleno demais, para ser um simples alívio, ainda que da cura, faltasse-lhe o caráter permanente. 

Fixei os olhos naquelas folhas de papel sobrepostas, esfolhei-as. Deixei cair uma a uma, as letras dançavam diante dos meus olhos ao som do soltar das páginas. Repeti o gesto, desta vez, sentindo o cheiro do livro.

Não havia vestígios da dor crescente de se saber existir, não havia traço da saudade que tortura, não havia resquício da incerteza que corrói, não havia rastro da certeza que dilacera.

Por alguns segundos a dor fora extinta do meu ser.  Apenas por alguns segundos.

Um recado ao universo

_ Hoje nada me fará atrasar. Nada!

 Mencionei isso em voz alta, como se a emissão dessas palavras mandasse um recado ao universo. Não deixaria o acaso me impedir de vê-la mais um dia.

 Algumas pessoas creem que pensamentos positivos exercem influência nos acontecimentos ao seu redor. Se pensamentos positivos podem influir, palavras audíveis seriam ainda mais poderosas?

Até agora era cético, mas a necessidade algumas vezes constrói a fé.

Como quando Camilo, parado por uma casualidade na Rua da Guarda Velha, repara na casa da mulher italiana "com grandes olhos sonsos e agudos". 

O homem que sobe as escadas, é aflito e descrente. Mas o homem que desce as escadas, é crente e tem olhar tranquilo.

 Só rogo aos céus que a minha nova fé, conduza-me à um desfecho bem mais feliz que o de Camilo!

 Notei, porém um problema com a frase que emiti ao universo.

"Hoje nada me fará atrasar". Mencionar 'atraso' definitivamente não é bom, na tentativa de remendar a coisa, falei ainda mais alto do que a primeira vez:

_ Hoje a verei descer cada centímetro daquela ladeira!

Assim está ótimo.

Salvador, 30 de abril de 2015

 Hoje quando olhei para o céu pude enfim enxergar 'o tom de azul quase inexistente, o azul que não há'. Também, 'o mar de Itapuã finalmente inaugurou um verde novinho em folha' diante dos meus olhos.

 Esses mesmos olhos, chegaram ao trabalho antes de mim, passaram pela catraca, adentraram na portaria, avistaram a gaveta, o Dostoiévski e este diário debaixo dele. As mãos vieram em seguida afoitas por registrar a visão colossal da tarde anterior.

 Aquela ladeirinha onde tantas vezes joguei bola de gude, onde nem tantas vezes beijei moças lépidas, onde vibrei com gols do Bahia, onde chorei a morte de Edgar, se transformava em uma suntuosa passarela toda vez que ela, por ali passava.

 Por meses contentei-me em apenas em olhar Juliana.

Mas ontem, sem que soubesse e pudesse ensaiar exaustivamente a melhor forma de fazê-lo, num impulso, numa fração de segundo, ali na laringe, cordas vocais à fora...

Simplesmente disse:

_ Boa noite, Juliana!

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