Em outras épocas, era comum associar 'zebras' à sorte. Nos tempos modernos essa visão diminuiu, pois está havendo uma evolução cada vez mais perceptível no nível dos competidores.
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Em outras épocas, era comum associar 'zebras' à sorte e dizer que o time ou o atleta derrotado subestimava o outro por obter superioridade técnica ou física. Nos tempos modernos essa visão diminuiu, ainda que exista em alguns casos. | ||
Entrando na seara do futebol, a Copa do Mundo disputada no Qatar nos presenteou com resultados surpreendentes sob a ótica comparativa de tradição dos países. O aumento do número de equipes menos badaladas derrotando as clássicas, para mim, é um sinal claro de que há uma evolução cada vez mais perceptível em outros continentes. | ||
As principais seleções contam com maior abundância de talentos individuais, o que é natural devido à cultura de décadas (ou centenárias em alguns países) de sua prática enraizada. Neste Mundial, especialmente, seleções “médias” e “pequenas” supriram a diferença técnica nas aplicações físicas e táticas. Ambos os fatores têm adquirido cada vez mais importância no cenário atual. | ||
Obviamente, é quase impossível manter a intensidade nos mais de 90 minutos. Os jogadores, no entanto, precisam estar atentos para que nestes momentos de oscilações não haja descuidos fatais ou até mesmo um relaxamento devido ao pensamento de superioridade sobre seu adversário, pois boa parte das equipes que optaram por segurar o resultado sofreram mais do que o necessário para vencer ou foram castigadas com empates ou vitórias. | ||
Uma rápida pincelada sobre evoluções táticas | ||
Antigamente, a Copa apresentava ao mundo tendências táticas e propostas de modelos de jogo. Profissionais das comissões técnicas de países menos tradicionais vivenciavam experiências in loco e espectadores acompanhavam e aprendiam assistindo pela televisão. A implementação de algo novo, contudo, demanda tempo. Quando o desenvolvimento progredia, a edição seguinte já contava com alterações que deixavam estas seleções para trás. Ainda que em alguns mundiais não houvesse mudanças estruturais no formato tático, movimentações e troca de funções de determinadas peças permitiam variações dentro dos esquemas. | ||
As disposições táticas se alteraram ao longo dos anos. Voltando rapidamente ao tempo, o obrigatório 2-3-5 passou por progressivas mudanças. Após a metade da década de 1920, o técnico Herbert Chapman, do Arsenal, criou o revolucionário “WM”. Na prática, este esquema adotado pela seleção inglesa em sua primeira participação na Copa, em 1950, formou um 3-2-2-3 e muito tempo depois virou base para o 3-4-3. | ||
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Logo na edição seguinte (1954), a Hungria apresentou tendências táticas e também no preparo físico de seus atletas, que praticavam exercícios de aquecimento minutos antes dos jogos e entravam em campo já bem dispostos, ao passo que seus adversários adquiriram ritmo durante as pelejas. Essas combinações, aliadas às frequentes movimentações dos jogadores, provocaram alterações no W-M influenciando, inclusive, o surgimento do 4-2-4, esquema da seleção brasileira bicampeã mundial de 1958 e 1962. Ainda sobre esse estilo campeão, Zagallo, que atuava como ponta pela esquerda, por vezes recuava ao meio de campo para permitir os avanços do lateral-esquerdo ou para apoiar o meio de campo. Ou seja, em determinados momentos havia uma flexibilização para um 4-3-3. | ||
Quando o assunto é revolução tática, alguns são icônicos e relembrados com frequência. O “Catenaccio”, por exemplo, surgiu na Suíça e foi incutido na cultura italiana que antes, na década de 1930, já adotara uma estratégia semelhante denominada "Metodo", criada pelo treinador bicampeão mundial (1934 e 1938) Vittorio Pozzo. | ||
Há também a Holanda de 1974 com seu “futebol total” arquitetado por Rinus Michels e orquestrado em campo por Johan Cruijff, onde todos os jogadores assumiram características polivalentes e ajudavam a atacar e defender. Também no mesmo ano da 'Laranja Mecânica', o gênio alemão Franz Beckenbauer popularizou a posição de líbero. | ||
Uma porção de esquemas táticos eclodiu ao longo do tempo, como os populares 4-4-2, 4-3-3, 3-5-2, 4-2-3-1 dentre outros. | ||
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O ponto é que desde sempre há muitas fases dentro de um jogo. O favoritismo no papel, assim como um jogador ser escalado apenas pelo status adquirido ao longo da carreira, não é garantia de bom desempenho e construção de resultado. | ||
Tecnologia forneceu maior rapidez e democratização de informações, colaborando para mitigar a defasagem didática de seleções menos tradicionais | ||
A evolução tecnológica facilitou o trabalho de clubes e seleções na obtenção de informações. O frenético fluxo digital possibilita interações em tempo real, além da rápida disponibilidade ao acesso de vídeos, estatísticas e diversas ferramentas que contribuem para o aprofundamento dos estudos. | ||
A otimização das análises de desempenho permite monitorar detalhes e colabora para as constantes inovações no plano tático e físico em qualquer esporte. Isso ajuda a diminuir a lacuna que há entre países mais e menos desenvolvidos. | ||
Outrora incomum, atualmente é frequente a presença de atletas africanos, asiáticos e até da Oceania atuando em clubes das principais ligas europeias, com muitos deles em times de ponta. Esse intercâmbio os permite absorver o conhecimento na prática através dos treinamentos e das partidas disputadas, facilitando uma troca de informações valiosas com as comissões técnicas das seleções de seus países para o desenvolvimento do estilo de jogo. | ||
Bons desempenhos podem ajudar a crescer o interesse de pessoas nestes locais e motivar um maior investimento para a captação de novos talentos e assim, consequentemente, elevar o nível dos jogadores e campeonatos. | ||
Para elucidar, citarei dois casos, cada um a seu modo, que corroboram a importância no avanço da velocidade de informações e troca de experiências em grandes centros do futebol. | ||
A vitória surpreendente e inteligente da Arábia Saudita sobre a Argentina pela estreia da Copa | ||
A seleção da Arábia Saudita, que aprontou e venceu a Argentina por 2 a 1, é treinada por um francês e não possui nenhum jogador em seu elenco que atua na Europa. A maioria permanece no próprio país e assimilou conhecimento suficiente para ler o jogo e executar os planos com qualidade mesmo fora de um polo tradicional. | ||
Além dos dois gols feitos, o triunfo saudita possui méritos também pela ousada arquitetada pelo técnico Hervé Renard. Qualquer falha de sincronia entre os envolvidos poderia resultar em goleada. | ||
A primeira linha de defesa atuou longe de sua própria área. Os jogadores subiram a marcação entre a intermediária e o meio-campo, enquanto os mais avançados ajudavam a pressionar a saída de bola dos argentinos e a povoar a faixa central. A compactação atrapalhou a troca de passes pelo meio e os hermanos foram induzidos a forçarem lançamentos longos para tentar explorar as costas dos marcadores, saindo de suas características de aproximação e passes rápidos. Curiosamente, três gols advindos destas jogadas foram anulados por impedimento justamente pela sintonia defensiva, executada à perfeição pelos boleiros. | ||
Marrocos registrou seu nome na história do futebol mostrando muita competência, eficiência e paciência | ||
Ao contrário dos sauditas, Marrocos dispõe de 19 atletas espalhados por Alemanha, Itália, Espanha e Inglaterra e outros países do 'velho continente', mas é comandada do banco por um nativo. | ||
A equipe atuou muito bem compactada. Soube tanto explorar os contra-ataques como também propor o jogo. Esta seleção é um exemplo claro de que, por sua atuação neste Mundial, não poderíamos considerá-la como 'zebra'. | ||
Os comandados de Walid Regragui classificaram-se em primeiro lugar num grupo onde enfrentaram Croácia e Bélgica, vice-campeã e terceira colocada na edição de 2018, respectivamente. | ||
Pelas fases eliminatórias passaram pelas tradicionais Espanha e Portugal e caíram na semifinal para a poderosa França. Em um bom jogo, perderam a disputa do terceiro lugar para a Croácia, mas registraram seus nomes na história ao protagonizarem a melhor campanha africana em Copas do Mundo, finalizando a competição num quarto lugar. | ||
A respeito do embate decisivo frente aos espanhóis, todos nós sabemos que os jogadores da seleção europeia, individualmente, são melhores. Entretanto, dentro de campo, a disciplina tática e física dos marroquinos mitigou as diferenças. | ||
Por mais que a Espanha preze ao máximo pela posse da bola não somente para atacar, como também para se defender das investidas adversárias, falta jogadores mais agudos, velozes e finalizadores. Assim como em 2014 e 2018, a “La Furia” pecou por se debruçar somente sobre seu estilo, sem apresentar variações. | ||
Marrocos soube se defender explorando tais carências e ainda levou mais perigo à meta dos adversários do que o contrário. Portanto, mereceu avançar às quartas de final porque apresentou um futebol aplicado, organizado e objetivo. | ||
O Japão também demonstrou características semelhantes. Bateu Alemanha e Espanha por 2 a 1 de virada e foi eliminado nas oitavas de final para a Croácia somente nos pênaltis. | ||
Em termos de organização dentro das quatro linhas, apenas o Qatar ficou devendo ao menos uma boa apresentação tática nesta Copa do Mundo. O anfitrião não conseguiu executar seu plano de jogo e se desestruturou conforme o desempenho de seus adversários. | ||
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Não há fórmula mágica para ganhar, senão todos seriam campeões | ||
Enfim, não há uma fórmula exata para alcançar a vitória. Existem infinitas possibilidades de vencer uma partida. Às vezes um estilo pode não fazer brilhar os olhos dos torcedores e da imprensa, porém, é necessário ponderar contextos e analisar o que cada adversário e as situações que ocorrem dentro do jogo podem oferecer. | ||
As estatísticas, por exemplo, não devem ser um parâmetro único na avaliação. Precisa, sim, ser encarada como um elemento que ajuda a entender o desempenho e aprofundar os estudos. | ||
Porém, há outros elementos necessários para compreender, como por exemplo o “imponderável”. Um lance mágico ou um bate e rebate e até mesmo um chutão para frente também podem sobressair à qualquer estrutura iniciada e é isso que torna os esportes um prato cheio para histórias marcantes. Partir para uma espécie de “caça às bruxas” é o mais comum após resultados negativos, mas há situações em que não há como explicar o inexplicável. | ||
Para tudo tem de haver um equilíbrio. Talento sempre será importante, contanto que se dose à dedicação e outros fatores para potencializar o funcionamento da estrutura, pois o estreitamento de nível parece cada vez mais evidente não somente no presente, como também num futuro próximo. | ||
E que assim permaneça. Todo crescimento e emparelhamento de forças contribuem para a constante evolução e para o bem do esporte. |