A RECEPÇÃO DOS ESCRITOS DE EDMUND BURKE NO BRASIL
0
0

A RECEPÇÃO DOS ESCRITOS DE EDMUND BURKE NO BRASIL

Uiliam da Silva Grizafis
5 min
0
0
Email image

O presente tópico vai analisar a recepção dos textos de Edmund Burke no Brasil oitocentista, tendo como principal responsável José da Silva Lisboa, o futuro Visconde de Cairu. Contudo, antes é necessário entender a obra do estadista anglo-irlandês, publicada em 1890, e como ela foi adaptada ao contexto brasileiro da época. As Reflexões sobre a Revolução na França demonstravam a insatisfação do escritor com o que estava acontecendo na França no final do século XVIII. Para João Pereira Coutinho[1], Burke vislumbrou nos princípios dos revolucionários o germe de abuso e violência que estavam instituindo na França: “A Revolução lançava-se na busca de uma perfeição terrena por meios exclusivamente humanos; tratava-se, conforme ele a designou, de uma ‘revolução filosófica’, em que os revolucionários, alicerçados em doutrinas políticas abstratas sobre o ‘direito do homem’, encaravam a comunidade como se esta fosse uma carte blanche para as suas visões da perfeição.”[2]

 

Burke reagiu, segundo Coutinho, de forma veemente contra a radicalidade daqueles que procuraram destruir o presente na França para inscrever, sobre as suas ruínas, novas formas de organização política. Ainda no livro “As ideias Conservadoras”, Coutinho fala sobre contrato de Burke: “No entanto, o autor se apressa a especificar de que o ‘contrato’ se trata: não de um contrato de natureza comercial, que pode ser dissolvido pela mera vontade das partes. E não será também um ‘contrato’ no sentido político (e contratualista) moderno, entendido como vínculo conscientemente estabelecido entre governantes e governados que funcionará como base da atuação política legítima. Para Burke, a sociedade será antes um contrato ‘entre os vivos, os mortos e os que estão para nascer’”.[3]

 

Podemos dizer que o conservadorismo de Edmund Burke é centralizado na ideia de que as instituições que sobreviveram aos testes do tempo, e que são boas, devem ser preservadas para aqueles que virão futuramente: “ao indivíduo cabe receber o que foi preservado; desfrutar dessa herança como fiel depositário; e passá-la às gerações vindouras em uma cadeia que se percebe como invisível e interminável”.[4]

As obras de Burke e de outros autores europeus foram trazidas ao Brasil no século XIX e o principal responsável por esta recepção foi o jornalista, economista e político baiano José da Silva Lisboa (1756-1835), futuro Visconde de Cairu. Segundo o professor e cientista político Christian Lynch, em 1812, Lisboa foi encarregado pelo Conde de Linhares de traduzir e publicar os Extratos das obras políticas e econômicas de Edmund Burke. O livro traria ao público um “antídoto contra o pestífero miasma e sutil veneno das sementes da anarquia e tirania da França, que insensivelmente voam por bons e maus ares, e por todos os ventos do globo”[5]. Para Lynch, Lisboa colocava-se, em tais textos, não como inimigo da mudança, mas sim da revolução.

O cientista político analisou o contexto do Brasil à época da recepção. Como recepcionar a obra de Burke em um país periférico? Utilizou-se de Pocock[6] para mostrar que o conservadorismo burkeano e as linguagens políticas podem ser móveis: “Qualquer pensador que pretenda valer-se de uma estratégia burkeana precisa perguntar-se em que sociedade aquela estratégia será levada a efeito: qual é o ‘passado’ daquela sociedade, ou seja, os processos de mudança e preservação pelos quais a sociedade tornou-se o que é, qual (se houver) o grau de compromisso desta sociedade com o seu passado.”[7] Dessa forma, ainda de acordo com Lynch, “a resposta está na percepção, por parte da elite dirigente da Monarquia luso-brasileira, de que ela era tão periférica e atrasada que a simples manutenção do status quo lhe ameaçava a sobrevivência.”[8]

Logo, além de ser importada ao Brasil, a obra de Burke também foi adaptada ao contexto local e, posteriormente, reforçada por escritores intelectuais através da imprensa. Assim, as traduções das obras de Burke poriam à disposição do público uma concepção contrária à anarquia e à tirania da França.



[1] Jornalista e cientista político. Professor da Universidade Católica Portuguesa e colunista da Folha de São Paulo, é autor de “Vamos ao que interessa” (2015) e coautor de “Por que virei à direita” (2012), ambos pela Três Estrelas.

[2] COUTINHO, João Pereira. Ideias Conservadoras: explicadas a revolucionários e reacionários. São Paulo: Três Estrelas, 2017. p. 30

 

[3]Ibidem, p. 61

[4] Ibidem.

[5] LYNCH, Christian C. Conservadorismo Caleidoscópio: Edmund Burke e o pensamento político do Brasil oitocentista. Lua Nova, São Paulo, 100: 313-362, 2017, p. 328. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ln/a/4MhnBqZKjLwgRK3yPrHNmrh/?lang=pt&format=pdf. Acesso em 16 de set. de 2022.

[6] John Greville Agard Pocock é um historiador do pensamento político. Especialmente conhecido por seus estudos do republicanismo no início do período moderno (principalmente na Europa, Grã-Bretanha e Estados Unidos), seu trabalho na história do Common Law inglês, seu tratamento de Edward Gibbon e outros historiadores do Iluminismo e, no método histórico, por suas contribuições para a história do discurso político. Mudou-se para os Estados Unidos em 1966, onde desde 1975 é professor titular da Universidade Johns Hopkins em Baltimore.

[7] Conservadorismo Caleidoscópio: Edmund Burke e o pensamento político do Brasil oitocentista. Lua Nova, São Paulo, 100: 313-362, 2017, p. 328. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ln/a/4MhnBqZKjLwgRK3yPrHNmrh/?lang=pt&format=pdf. Acesso em 16 de set. de 2022.

[8] Conservadorismo Caleidoscópio: Edmund Burke e o pensamento político do Brasil oitocentista. Lua Nova, São Paulo, 100: 313-362, 2017, p. 325. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ln/a/4MhnBqZKjLwgRK3yPrHNmrh/?lang=pt&format=pdf. Acesso em 16 de set. de 2022.