Uma visita inesperada
0
0

Uma visita inesperada

Uiliam da Silva Grizafis
13 min
0
0

A vida no campo era perfeita para nosso herói, os grandes eucaliptos e os lagos baixavam a sensação térmica e Gerard aproveitava para, na casa de Dom Chico, colocar os pinhões sobre o fogão à lenha para assar. Após descascar, o comia acompanhado de um chimarrão quente. Dona Laura o queria como filho, lembrava-se, com lágrimas nos olhos, de quando nosso moço a acompanhava a tirar leite da vaca e fazer toda a preparação para entregá-los pela cidade.

Os dois irmãos deitaram no sofá e dormiram. Acordaram no outro dia perto das oito da manhã, Dona Laura já havia preparado o desjejum, Dom Chico, já havia tirado o leite das vacas. As nuvens carregadas traziam a impressão de um fim de tarde, o ar, demasiado úmido e um frio que pedia mais lenha na fogueira. Perto da casa de Dom Chico vivia um homem alto e forte, sempre usava um chapéu cartola e era companheiro de Bastião, ambos do partido conservador, o nome desse indivíduo é Hercílio. O partido conservador era influenciado pelos tories[1] britânico, seguido pelas leituras do iluminismo escocês, adaptado à realidade brasileira e tendo como suas principais referências Visconde de Cairu, Bernardo Pereira de Vasconcelos e Visconde de Uruguai[2]. No fim das contas, era um partido monárquico.

Hercílio era um homem rico e que possuía muitas terras, gados, plantações e empresas, era muito chegado ao Dom Chico por ser seu vizinho. O principal meio de comunicação da cidade era uma pequena rádio, em que se debatia quem poderia governar melhor os cidadãos. Todas as famílias, durante os desjejuns, ouviam os candidatos prometerem e discutirem assuntos relevantes de ordem cívica. Enquanto Dona Laura servia o café, um delicioso ensopado de pato acompanhado com arroz e Champion, Dom Chico liga o seu radinho.

- Vamos ver quem vai mentir melhor hoje. – Diz Dom Chico.

As discussões eram da seguinte forma: os candidatos do partido progressista propunham projetos para os mais vulneráveis, prometiam construir casas pagas pela prefeitura para aqueles que viviam de aluguel, além de incentivar programas sociais que tinham como objetivo dar dinheiro para os desamparados. Faziam propagandas do sindicato dos mineiros, a maioria dos pais de família trabalhavam com a extração de carvão, e trabalhar nas minas, acarretava problemas fortes nos pulmões além de correrem o risco por trabalharem debaixo da terra. Prometiam mais direito aos mineiros.

Em contrapartida, o partido conservador, prometia melhorar a educação, reformar a biblioteca municipal, dar crédito aos homens do campo, construir estradas, além de preservar os símbolos históricos da cidade. A disputa era acirrada, mas o partido progressista sempre esteva à frente. Gerard parou de mastigar após ouvir uma propaganda que anunciava um grande concerto na cidade, uma pianista estrangeira faria uma apresentação na escola Visconde de Taunay, para todos os alunos, e de outras escolas também. Alunos de graduação, de outras cidades, também estariam presentes e todos estavam convidados. 

- É a chance de matar um pouco seu tédio. – Disse-lhe Dom Chico ao nosso jovem.

- Eu desejaria ir, contudo, gostaria que o senhor e Dona Laura me acompanhassem, sei que gostam de música clássica e é uma oportunidade de ver a cidade um pouco mais erudita.

Junior, parecia ignorar o assunto, após tomar o café, levantou-se, despediu e foi-se para sua casa.

- Pois sim, meu querido, eu quero ir sim. – Responde Dona Laura. – Mas o evento, pelo que vejo, será hoje à noite, tenho que ver a roupa que usarei.

Estava claro que o evento seria realizado por Hercílio e seus amigos tories brasileiros, os moradores da cidade não se interessavam muito por este tipo de evento, mas atraía alunos de toda a região. O professor Walter, certamente estaria lá. Gerard se levanta da mesa, ajuda Dona Laura a lavar os pratos como era de praxe, e se despede do casal:

- Tenho que ir à casa ver com qual roupa irei, nos encontramos logo mais.

O dia passou rápido, Gerard agarra uma outra camisa xadrez e outro casaco além de sua boina preta. Estava galanteador, sua mãe ainda estava no hospital e como não pôde ir naquele dia lhe escreveu uma carta e mandou pelo seu pai:

“Mãe, perdoa-me, de todo coração, não me encontrava bem e sei que sente saudades de mim. Hoje não fui, mas lhe prometo que amanhã irei. Recebi notícias de que a senhora já se encontra melhor, em breve a verei em casa. Te amo. Beijos!”

 Era uma noite fria e charmosa, Gerard havia posto seu melhor perfume, tomou seu relógio favorito e uma bota marrom que havia ganhado de seu avô Bastião. O concerto seria no teatro da escola. Quando Gerard chegou ao local viu entrar pessoas da alta classe como o próprio prefeito, o dono das minas de carvão, os mais ricos homens do campo e comerciantes. Todos olhavam com desdém para o nosso herói. Gerard, de forma tímida, se acerca à bilheteria e compra as três entradas que seriam para Dona Laura, Dom Chico e para si. O casal chega logo em seguida.

- Já comprei suas entradas.

- Mui amável, cavalheiro. Quanto lhe devo?

- Assim o senhor me ofende, Lorde Chico.

As brincadeiras aliviaram a tensão que Gerard tinha ao sentir-se inferior a todos que entravam ao local, apesar de haver vários alunos de diferentes classes sociais. Algo que não mencionei neste capítulo, caro leitor, talvez por descuido, é que nosso jovem havia decidido cursar filosofia em vez de teologia, por influência do professor Walter, estava certo de que filos e teologia caminhavam juntas e que o próprio Platão influenciou muito o cristianismo. Impossível negar a relação entre ambos, tampouco a longa caminhada que fizeram juntos através dos pais da igreja.

Os três entraram, todos na plateia estavam bem-vestidos, parecia uma festa de gala e de fato, o era. Os três se sentam na terceira fileira, o que permitia estarem mui cerca da estrela da noite, Mari Cedeño, pianista espanhola que passava um tempo no sul do Brasil. Após a palavra do prefeito, da diretora da escola e de outros que não citarei o nome, foi anunciado o nome da artista que entra e se senta para começar a entoar o piano. A estrela da noite era, de fato, a mais bela mulher que havia no evento, não por ser a artista principal, tampouco porque era espanhola, mas sim, porque nela, via-se transparecer um brilho quase transcendental. Usava um vestido prata brilhante que chegava um pouco acima do joelho, sapatos vermelhos, um colar de pedras de diamantes que, junto com sua pele branca, trazia um luxo seguido de uma beleza inimaginável. Seus cabelos eram pretos com mechas vermelhas, nos seus braços, refletia a luz do palco, impossível transcrever aqui, amigo leitor, a formosura surreal que seu rosto carregava, era a mulher mais esplêndida, admirável, luxuosa, majestosa que Gerard havia visto em toda sua vida. A pianista, transportava uma soberba beleza, jamais vista em toda a cidade.

Gerard, ao vê-la, paralisou-se, por um momento foi transportado a um mundo inexistente. Mari, havia aprendido a dizer “boa noite” em português e quando o disse, sua voz preencheu todo tédio, angústia e tristeza que Gerard carregara nos últimos dias. “Tenho que conhecê-la pessoalmente, mas como o farei? Não sei, mas tenho que fazê-lo”, pensou. A Pianista começa a entoar de forma suave o piano, não demorou muito para o nosso jovem perceber que se tratava de Chopin, seu músico preferido que o acompanhava em sua solidão. O primeiro nocturne da noite terminou, a moça, arrancou demorados aplausos da plateia, ouvia-se gritos e assovios por todo o auditório. A segunda canção foi acompanhada por um cello entoado por um aluno do conservatório de música, não era para menos, tratava-se de Bach, mais precisamente Cello Suit.

Gerard, esqueceu que estava ao lado de Dona Laura, olvidou-se do público, de suas angústias e incertezas, dos seus olhos escorriam lagrimas, não teve vergonha, perdia-se nas mais belas melodias feitas pela artista e seus acompanhantes. Após uma hora e meia foi anunciada a última apresentação, Mari Cedeño teve como companhia o coral da igreja matriz, que ensaiou por meses a fio uma linda canção cristã. Os cantantes foram perfeitos, os homens, vestiam um majestoso paletó azul marinho, as mulheres, um luxuoso vestido branco com botões dourados. A maquiagem, os cabelos, os sapatos, tudo era perfeitamente parecido. Quando o show terminou, todos se levantaram e, com gritos de “bravo”, os aplaudiram por mais ou menos um minuto de forma ininterrupta. Enquanto todos saiam, Gerard permanece sentado, atônito, vira-se para Don Chico, agarra-o com as duas mãos, e exclama:

- Preciso conhecer essa mulher!

- Aí você quer demais, meu garoto. Para quê desejas conhecê-la?

- Preciso conversar com ela, dizer-lhe o quanto admirei o seu concerto, preciso tirar uma foto, pegar um autógrafo. Qualquer coisa, mas preciso vê-la.

Quando Gerard termina de falar, mira o palco e não a vê mais. A moça que tocara seu coração já havia desaparecido. Neste momento, parecia que um punhal atravessara o coração do nosso jovem herói, desiste, pega o caminho da porta e vai-se embora com o coração na mão.

Nosso moço chega em sua casa, pega a garrafa de whisky e enche o copo. Senta-se numa cadeira que estava na parte de fora, olha para o céu e encontra-se só, com a lua, as estrelas, os grilos e o vento que soprava em seu rosto. Uma mulher, uma linda pianista tocara profundamente seu coração, mas sabia que era impossível dizer-lhe qualquer palavra, amanhã, talvez, estaria longe da cidade. Hercílio ou seu avô Bastião poderiam ajudá-lo, eles ajudaram a organizar o evento, sua esperança estava nesses dois. “Amanhã irei à casa de Hercílio e perguntarei por Mari Cedeño, ele pode me dar alguma pista”, pensou. Gerard terminou seu whisky e foi deitar-se. Rolava-se na cama, a imagem da bela donzela ainda permanecia em sua memória, demorou para pegar no sono. As duas da madrugada, por fim, apagou.

O dia amanheceu, Gerard, desperta-se um pouco tarde, levantou-se rapidamente, tomou seu café e foi para a carpintaria. O som de Chopin continuava em sua memória, não queria esquecer, não ligou o radinho para permanecer com o som do piano em sua mente. Trabalhou até o meio-dia, não almoçou, pegou sua bicicleta e foi diretamente procurar Hercílio. O encontrou na prefeitura.

- Preciso de um favor, candidato. Preciso conhecer pessoalmente a pianista que deu o concerto ontem à noite na escola, preciso vê-la, fazer-lhe algumas perguntas.

- Meu jovem, ela já não está mais aqui. Viajou hoje pela manhã à Nova Veneza. Dará um concerto lá em algum dia desta semana.

Nova Veneza, caro leitor, era uma pequena cidade que havia sido colônia de italianos no início do século e deram o nome em homenagem a cidade da Itália. O povoado ficava longe de Lauro Müller e o nosso moço não pensou duas vezes em ir procurá-la, mas não podia ir naquele momento. Triste por pensar ser difícil encontrá-la, entrou no primeiro bar que encontrou, sentou-se, pediu um prato de arroz, feijão e bife, uma taça de vinho e pôs-se a comer.

Esse bar era um pouco diferente de todos da cidade. Era um pouco escuro e sujo, sem embargo, era um ambiente em que se reuniam os músicos e poetas da cidade, além de, como todas as outros, tinha uma mesa de bilhar e outras mesas que os mineiros ou músicos e poetas jogavam truco. Enquanto Gerard comia, homens jogavam e riam alto. O nosso herói foi surpreendido com a chegada de seu melhor amigo, Vitor, que sentou-se à mesa de frente à Gerard. Seu confidente talvez tenha se arrependido por haver entrado no bar após ter que ouvir de Gerard toda a história que se passou na noite anterior. Gerard contou com detalhes tudo que aconteceu, e seu amigo, quase a dormir, teve que ouvir de forma detalhada toda a história.

- Mulheres mexem com nossa alma. – Afirmara Vitor quando teve a oportunidade de falar. – Aliás, você, meu caro, precisa de uma companheira paciente para ouvir todas suas inquietações, não é qualquer uma que está disposta a isso.

Gerard ria-se. De certa forma, seu amigo estava certo. “Preciso de alguém que me entenda”, pensava, “e ela parece ser madura suficiente para ter uma conversa à altura”.

O bar, como já foi dito, paciente leitor, era um lugar onde reuniam-se poetas e músicos da cidade. Os cantores, com seu violão, cantavam durante às tardes e às noites, com intervalos para disputas de poemas. Não era uma segunda-feira normal, o bar se encheu de homens que, no intervalo de seu almoço, iam para distrair-se. Vitor, levanta-se subitamente e põe-se de pé e propõe aos poetas ali presentes uma disputa, mesmo fora de hora,

- Eu proponho, em homenagem ao meu caro amigo Gerard, que está aqui sentado, uma disputa de versos e prosas.

Todos que estavam no local aceitaram o desafio e Victor, após pedir uma dose de conhaque, fez a lista daqueles que fariam suas apresentações. O primeiro a subir ao palco foi Carlos Freitas, locutor e jornalista que escrevia crônicas semanalmente ao jornal da cidade, além de, todos os dias, recitar na rádio os poemas criados por ele próprio e de poetas que viveram nos séculos XIX e XX. Fez sua apresentação de forma convincente, leu um poema de T.S. Eliot[3] sobre Bustopher Jones: The Cat about Town. Quando terminou obteve os aplausos necessários para otimizar sua vitória. Victor, colocou-se à frente e disse:

- Meu poema não será sobre gatos, quero apresentar-lhes, nesta tarde, um grande poeta equatoriano, um dos responsáveis por levar o modernismo francês ao país latino, dizem que ele se suicidou, e claro, seus poemas faziam com que transparecessem suas paixões e dores. Seu nome era: Medardo Angel Silva[4]. Tirou do bolso um papel escrito à mão, o abriu e leu:

“Ayer miré unos ojos africanosen una linda empleada de una tiendaEran ojos de noche y de leyendaeran ojos de trágicos arcanos...

Eran ojos tan negros, tan gitanos,vagabundos y enfermos, ojos seriosque encierran cierto encanto de misteriosy cierta caridad con los hermanos...

Ayer miré unos ojos de leyendaen una linda empleada de una tiendaojos de huríes, débiles, huraños.

Quiero que me devuelva la miradaque tiene su pupila apasionadacon el lazo sutil de sus pestañas.”

- Choro cada vez que leio este poema, lembro-me de uns olhos que me trazem encanto e, além do mais, esse escrito faz meu coração palpitar mais forte. Os olhos de uma mulher, certamente, podem desestabilizar um homem.

Gerard lembrou-se, subitamente, da professora de canto, dos seus olhos, seu rosto perfeito. Victor ganhou a disputa, apesar de haver trazido um poeta desconhecido, seu prêmio foi uma taça de vinho. Não quis beber, deu-a a seu amigo que ainda estava sentado à mesa com seus pensamentos distantes. Após beber o vinho levantou-se e anunciou sua partida. Vitor o acompanhou até a porta gabando-se de haver ganhado a disputa. Quando chegam à porta, Vitor é surpreendido com uma cena horrível.



[1] Os políticos conservadores britânicos eram chamados de Tories.

[2] Bernardo Pereira de Vasconcelos e Visconde de Uruguai, ambos membros do partido conservador brasileiro do século XIX.

[3] T. S. Eliot, poeta anglo-americano.

[4] Medardo Angel Silva, poeta equatoriano.