Em meu último texto abordei a reforma do Judiciário proposta pela atual coalizão de governo liderada por Benjamin Netanyahu. É difícil comparar realidades e sistemas políticos distintos, mas é possível aqui imaginar, ao menos parcialmente, qu...
Em meu último texto abordei a reforma do Judiciário proposta pela atual coalizão de governo liderada por Benjamin Netanyahu. É difícil comparar realidades e sistemas políticos distintos, mas é possível aqui imaginar, ao menos parcialmente, que Israel vive hoje o que o Brasil estaria vivendo caso Bolsonaro tivesse vencido as eleições. A reforma do Judiciário e a mudança no processo de nomeação de juízes da Suprema Corte são passos tradicionais de governos comandados por admiradores do autoritarismo. | ||
Há, no entanto, um questionamento óbvio em Israel: ora, se Netanyahu tem aspirações autoritárias, por quais razões ele não levou adiante os projetos acima durante os 15 anos em que exerceu o cargo de primeiro-ministro? Bem, as respostas são distintas e estão relacionadas a contextos diferentes e à própria biografia de Netanyahu. Ele é um político tradicional de direita - não de extrema direita - e que considera, como escrevi, não haver qualquer outra figura além de si capaz de ocupar a posição política mais relevante do país. | ||
Netanyahu considera-se de fato o guardião de Israel, alguém que irá protegê-la, em especial diante das ameaças externas, mas também alguém capaz de compreender as dinâmicas do mundo moderno. Ou seja, as interações com a comunidade internacional, as relações com os aliados norte-americanos, a defesa das posições de Israel num mundo hostil ao estado judeu e, ao mesmo tempo, alguém que tem sucesso no projeto de transformação do potencial inventivo israelense na realidade da nação "startup". Na visão de Bibi, todas essas características e qualidades estão resumidas apenas, bem, nele mesmo. É isso o que dá a entender pelos discursos, ações, entrevistas e apresentações. Netanyahu está imerso numa visão de si que é messiânica sem necessariamente ser religiosa. Pelo menos em boa parte não é religiosa. | ||
Toda essa clarividência acerca da própria missão não é apenas rara, mas também o impediria de ser um ditador. Sim, porque ressaltar o caráter democrático de Israel também faz parte de sua missão. Mas aqui está o grande dilema de sua vida política: se o país precisa dele porque não há mais ninguém capaz de exercer o cargo de primeiro-ministro, como lidar com a derrota que é natural em qualquer sistema democrático? Netanyahu não trabalhou este ponto, nem refletiu sobre a questão. O que explica em boa medida a aliança com algumas das figuras mais extremistas do espectro político do país, casos dos agora ministros Itamar Ben Gvir (Segurança Nacional) e Bezalel Smotrich (Finanças). | ||
Em nome de seguir sua missão, Netanyahu cedeu diante de personagens que quase certamente abomina. Não se trata de justificar, mas de compreender sua linha de raciocínio e motivações. Ao mesmo tempo, esta coalizão que se pretende estável no instável ambiente político de Israel em tese pode dar a Netanyahu a paz de espírito de que necessita. A reforma no Judiciário poderá impedir, por exemplo, que ele se mantenha livre da Justiça enquanto permanecer primeiro-ministro. Como escrevi, a chamada "Lei Francesa" pode conceder imunidade a Netanyahu, desde que ele se mantenha no cargo. E Bibi sabe lidar melhor com as negociações políticas do que com as investigações da Justiça. | ||
E logo na primeiro semana de governo já ficou claro para todo mundo e para o próprio Netanyahu o tamanho e a complexidade de seu desafio; Yair Lapid, ex-primeiro-ministro, e Benny Gantz, ex-ministro da Defesa, classificaram o projeto de reforma do Judiciário como um "golpe político". O parlamentar Zvika Fogel, do partido Otzma Yehudit, de Itamar Ben Gvir, disse que Lapid e Gantz deveriam ser presos por "traição nacional". | ||
Em sua conta no Twitter, Lapid respondeu: "Era óbvio que isso iria acontecer. Em países não democráticos, a liderança sempre ameaça prender os líderes da oposição", escreveu. | ||
As manifestações da população contra a reforma proposta pelo governo Netanyahu já começaram. E a tendência é que se tornem maiores e mais frequentes. Mais de 80 mil manifestantes estiveram deibaixo de chuva no sábado, dia 14 de janeiro, em Tel Aviv. O número parece pequeno, em especial se comparado ao Brasil, mas é importante lembrar que a população israelense está na casa de 9,5 milhões de pessoas. Fazendo uma conta simples, os 80 mil manifestantes seriam correspondentes a mais de um milhão de pessoas no Brasil. É um número bastante relevante. | ||
No final, Bibi já está precisando exercitar sua habilidade retórica e disse que a oposição tem sim direito de se manifestar, mas sem violência. Este é um exemplo do dilema e uma degustação a Netanyahu dos desafios que irá enfrentar ao longo deste novo mandato: manter a coalizão de governo funcional e explicar ao restante do mundo, em especial aos EUA, como conseguirá dar um jeito em figuras como Fogel e, ao mesmo tempo, levar adiante uma reforma para lá de controversa. Tudo para seguir no cargo e conseguir completar o que considera ser a missão de sua vida. |