A ideia de que a Europa é um continente pacífico parecia algo claro. Ao menos esta era até agora a realidade quase consensual, especialmente após a Segunda Guerra Mundial e, ainda mais, entre os atores nacionais que experimentaram aquele conf...
A ideia de que a Europa é um continente pacífico parecia algo claro. Ao menos esta era até agora a realidade quase consensual, especialmente após a Segunda Guerra Mundial e, ainda mais, entre os atores nacionais que experimentaram aquele conflito. Mas a Europa foi um teatro de operações militares. E a realidade do pós-guerra pode ser considerada uma pausa, uma exceção absoluta. Para além dos fatos óbvios em si, a invasão russa à Ucrânia tem atuado no imaginário europeu. | ||
A operação de Putin - ainda em curso e sem sinais claros de retrocesso - tem o poder de ativar antigas memórias na Europa, como quando arrumamos um armário em casa e nos deparamos com uma fotografia antiga. A guerra é uma realidade brutal, e o conflito na Ucrânia vai deixar marcas importantes em toda a Europa. A começar com a própria Rússia. | ||
Moscou tem variado suas expectativas e parece cada vez mais inclinada a se concentrar na região de Donbass, no leste da Ucrânia. A conquista do território, onde também estão as autodeclaradas independentes (com a chancela de Vladimir Putin) as "repúblicas populares" de Luhansk e Donetsk, poderia fornecer a rota de saída aos russos, um caminho para encerrar a operação declarando algum tipo de vitória. Vivemos numa era de batalhas digitais que muitas vezes são até mais importantes do que os enfrentamentos reais. Encontrar uma narrativa vitoriosa é uma das prioridades do governo russo. | ||
Importante lembrar que, no início da invasão, a expectativa por parte de Putin parecia ser a de levar adiante uma ofensiva rápida capaz de pôr em prática sua grande superioridade militar sobre a Ucrânia. Possivelmente, havia ao menos a expectativa quanto à possibilidade de troca de regime em Kiev, levando à presidência do país novamente uma liderança mais próxima a Moscou. Isso soa cada vez mais distante da realidade. | ||
Putin precisou mudar o foco. Em parte em função disso, cada vez mais usa slogans como "desnazificação da Ucrânia" e as ameaças à integralidade do território russo representadas pelos "imperialistas" do Ocidente. A questão é evidentemente mais complexa, mas serve como exemplo sobre novos olhares e expectativas de vitória por parte da Rússia. | ||
E, seguindo a lógica deste texto, vale o questionamento em torno das mudanças que a própria Rússia irá experimentar quando a guerra terminar e a poeira baixar. A ideia de "Império Russo" - e, claro, poder e grandiosidade - está em xeque - aí não pela narrativa, mas pelos acontecimentos reais. É fato que a Rússia não obteve a vitória inquestionável que Putin imaginava no início da invasão. Quais serão os impactos desta constatação no pós-guerra? | ||
Para os demais países, estão em curso outras mudanças importantes. Fica a constatação óbvia: a ideia de alianças multilaterais de defesa sai profundamente abalada. A OTAN - a aliança militar ocidental liderada pelos EUA - não foi diretamente testada (até agora) no conflito. Quer dizer, a posição do bloco é curiosa; por mais que a Rússia não a tenha desafiado, ficou evidente que o bloco jogou com o regulamento. Não houve socorro direto para defender o território ucraniano porque a Ucrânia não era um país-membro. Mas Putin invadiu um país soberano, na Europa, vizinho de países-membros. E a OTAN preferiu não interferir diretamente. | ||
O cenário descrito acima deixa implícita duas mensagens um tanto contraditórias: a primeira delas é que não haverá socorro a qualquer estado nacional invadido; a segunda tem a ver com um movimento a que estamos assistindo neste momento exato: países até então considerados neutros, como Finlândia e Suécia, correm para aderir à OTAN. E aí este é um problema que a própria Rússia criou. A invasão à Ucrânia tornou a Europa um continente de incertezas. Cada um que busque seu guarda-chuva. Caso contrário, o cenário é de completa vulnerabilidade. | ||
E aqui cabe retornar a um ponto deste texto. Talvez a Rússia não tenha iniciado a operação na Ucrânia com este propósito. Talvez nem sequer se dê conta disso de forma clara. Mas o presente de Moscou ao "imperialismo" do Ocidente, a "vitória" a ser celebrada por Putin, seja justamente este aspecto: o retorno da Europa a uma realidade anterior à Segunda Guerra Mundial - de instabilidade, desunião, acordos secretos. Putin encontrou uma fotografia antiga ao mexer no armário dos europeus. Uma fotografia que causa medo, instabilidade e, acima de tudo, põe em risco o conceito que a Europa conseguiu construir para si a partir da segunda metade do século 20. |