O telhado de vidro do Marrocos
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O telhado de vidro do Marrocos

Como complemento ao texto anterior que escrevi por aqui, é importante deixar claro que nas Relações Internacionais não há espaço para maniqueísmos. Embora bem sucedida, a campanha de relações públicas da seleção marroquina em favor dos palest...

Henry Galsky
5 min
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Como complemento ao texto anterior que escrevi por aqui, é importante deixar claro que nas Relações Internacionais não há espaço para maniqueísmos. Embora bem sucedida, a campanha de relações públicas da seleção marroquina em favor dos palestinos deixa também espaço para questionamentos sobre o cobertor curto do próprio Marrocos. E a contradição que expõe os marroquinos atende pelo nome de República Árabe Saaraui Democrática (SADR, na sigla em inglês).

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O desconhecimento amplo da república acima também expõe o chamado duplo padrão de avaliação internacional que cerca o conflito árabe-israelense e, em particular, o conflito entre palestinos e israelenses. É provável que parte dos leitores não tenha ouvido falar do país do primeiro parágrafo, mas ele representa a última região do continente africano sob ocupação estrangeira. E aqui talvez a surpresa final: é justamente o Marrocos - o autodenominado representante da "causa" palestina na Copa do Mundo - o ocupador, o opressor das aspirações nacionais do povo saaraui na África Ocidental.

Ex-colônia espanhola entre 1884 e 1976, a região foi reivindicada pelo Marrocos em 1957, ano seguinte ao reconhecimento da independência marroquina pelos colonizadores franceses. Em 1958, o Saara Ocidental se tornou província da Espanha a partir da decisão de Madri de unir os distritos de Saguia Hamra e Rio de Oro. O território passou a ser conhecido como Saara Espanhol. Dois anos depois, a Mauritânia, país que faz fronteira com o Saara Ocidental, reivindicou soberania sobre a região.

A população nativa local do Saara Ocidental, conhecida como saaraui, iniciou a luta por autodeterminação, estabelecendo um movimento de guerrilha chamado de Frente Popular pela Libertação de Saguia Hamra e Rio de Oro (Frente Polisario). Os problemas causados ao governo espanhol e a situação política interna na própria Espanha levaram Madri a declarar, em 1975, que deixaria a região, optando por partilhá-la entre Marrocos e Mauritânia. No entanto, coube à Corte Internacional de Justiça (ICJ) julgar as reivindicações dos dois países africanos sobre a região. E, em relatório publicado em 16 de outubro daquele ano, decidiu que o território saaraui deveria ser descolonizado por completo.

Entretando, o então rei do Marrocos Hassan II optou por ignorar a decisão do ICJ, iniciando um movimento de colonização que ficou conhecido como "Marcha Verde". A política marroquina foi levar 350 mil habitantes para o Saara Ocidental, terminando por anexar o território. Marrocos e Mauritânia partilharam a região entre si, cabendo ao Marrocos dois-terços do território. A Mauritânia ficou com o terço restante. Em 1976, a partir do exílio na Argélia, a liderança da Frente Polisario estabeleceu a chamada República Árabe Saaraui Democrática.

Já em 1988, a ONU propôs um acordo de paz e um referendo no qual os saarauis decidiriam entre a anexação ao Marrocos ou a independência. O governo marroquino e a liderança da Frente Polisario aceitaram a proposta, e as Nações Unidas levaram à região sua missão de paz, a Minurso. O governo do Marrocos, entretando, seguiu com a construção de mais assentamentos, levando ainda mais marroquinos a se estabelecer no Saara Ocidental, para além daqueles 350 mil alocados em 1975.

O Marrocos também continuava a contruir infraestrutura no solo, criando o que na política se costuma chamar de "facts on the ground", dificultando ainda mais a criação de um estado independente para o povo saaraui. Os marroquinos passaram a lançar dúvidas sobre a identidade dos habitantes locais, de forma a questionar quem tinha direito a voto no referendo. Desta forma, a votação foi sucessivamente adiada e, no final, jamais foi realizada.

Em 2001, o rei Mohammed VI, assumiu o trono do país depois da morte do rei Hassan II. Ele segue como monarca e, especificamente em relação ao Saara Ocidental, mantém a política de manutenção do status quo. Ou seja, continua a empurrar e adiar a questão de forma indefinida, rejeitando qualquer solução que possa resultar na independência e criação de um estado independente do povo saaraui.

Nos anos 1980, o Marrocos decidiu estabelecer uma barreira física no interior do Saara Ocidental; um muro de 2.700 km de extensão. Feito de pedra e areia, a construção é permanentemente patrulhada por mais de cem mil soldados marroquinos. O muro deixou os saarauis a leste no interior do deserto e seu lugar de construção foi planejado de forma a deixá-los sem acesso aos recursos naturais da região. Desta maneira, a Frente Polisario tem acesso a 20% do Saara Ocidental, equanto o Marrocos controla os 80% restantes.

Em 2020, no âmbito da corrida presidencial norte-americana e em busca de aumentar seu capital político no ano eleitoral, o ex-presidente Donald Trump optou por tornar os EUA o único país no mundo a reconhecer a soberania do governo marroquino sobre o Saara Ocidental. Em troca, o Marrocos assinou os chamados "Acordos de Abrãao" na sequência de Emirados Árabes, Bahrein e Sudão, passando então a normalizar relações diplomáticas com Israel.

Em outubro deste ano, o Conselho de Segurança da ONU renovou até 31 de outubro de 2023 a Minurso, sua missão de paz no Saara Ocidental, constando da decisão o registro quanto à degradação das relações entre os grupos pró-independência e o governo do Marrocos. Na resolução também lançou um apelo "para que as partes retomem as negociações sob a égide do secretário-geral da ONU sem condições prévias e de boa-fé, com o propósito de alcançar uma solução política justa, duradoura e mutuamente aceitável" e que resultem no estabelecimento de um estado independente ao povo saaraui no Saara Ocidental.