O encontro entre os líderes de Irã, Rússia e Turquia realizado em Teerã, no chamado Processo de Astana, carrega em si uma mensagem óbvia: os três países pretendem colocar em prática uma visão própria do mundo e das relações internacionais que...
O encontro entre os líderes de Irã, Rússia e Turquia realizado em Teerã, no chamado Processo de Astana, carrega em si uma mensagem óbvia: os três países pretendem colocar em prática uma visão própria do mundo e das relações internacionais que desafia a ordem estabelecida pelas potências ocidentais - da Europa e, em especial, dos EUA. Apenas para começar do começo, é importante dizer que o Processo de Astana foi lançado em 2017 a partir do objetivo declarado por esses três países que, como discurso oficial, diziam buscar uma solução para a guerra civil síria. | ||
Sim, há ainda uma guerra civil em curso na Síria, mas que, em virtude de um profundo olhar desinteressado por parte da comunidade internacional, não recebe lá grande atenção. Mas nunca é demais lembrar que este conflito ainda em curso e que se arrasta desde março de 2011 nasceu como consequência das políticas de repressão do presidente sírio, Bashar al-Assad, às manifestações a favor da democracia embaladas pelo movimento que se convencionou chamar de Primavera Árabe. Não deu certo. Não apenas o conflito continua, Assad segue presidente - ajudado militarmente pelo aliado Vladimir Putin - e também a guerra civil coleciona mortos desde então - a esta altura, já são 610 mil. | ||
O próprio trio em questão - Rússia, Irã e Turquia - tem outros interesses geopolíticos para além da declarada boa vontade ou intenção de buscar caminhos na Síria. Como sempre, a política é um conjunto de símbolos, e esta reunião não poderia ter intenções simbólicas - e práticas, é bem verdade - mais claras. A primeira delas é a intenção de escape por parte de Putin. O atoleiro ucraniano em que se meteu também resultou em sanções internacionais. Como escrevo desde o início da invasão à Ucrânia, o Oriente Médio é uma rota de saída viável a Putin. Para isso, nada melhor do que se unir a um gigante da região acostumado às sanções e que também busca caminhos alternativos: o Irã. | ||
Há uma pedra cantada nas relações russo-iranianas: um acordo já nem tão secreto assim que incluiria negócios entre a estatal russa de gás, a Gazprom, e o Irã que não apenas contornaria as sanções mas que também daria aos russos - possivelmente num quadro mais amplo de pacote de negócios - acesso aos drones iranianos a serem usados por Moscou na guerra contra a Ucrânia. | ||
E no conjunto que mistura práticas e símbolos o Irã necessita de alternativas às sanções, mas também de gestos simbólicos capazes de demonstrar força a seus adversários regionais: o eixo sunita sobre o qual sempre escrevo e que agora está cada vez mais abertamente aliado a Israel. As monarquias do Golfo Pérsico e Israel têm em comum este fato também óbvio de se considerarem existencialmente sob ameaça iraniana. O modelo de revolução representado pelo Irã é considerado uma ameaça pelas monarquias sunitas; para Israel, os sinais são ainda mais claros: o estabelecimento de bases iranianas ao redor de sua fronteira, o repasse de armamento e recursos financeiros a seus principais adversários (Hezbollah, ao norte, e Hamas, ao sul), além de um discurso claro que prega a destruição do estado judeu - fatos que nenhuma autoridade israelense se arrisca a desconsiderar. | ||
O Irã levou as monarquias do Golfo e Israel a adotar um discurso pragmático de união que, digamos, há dez anos seria absolutamente inimaginável. O momento escolhido pelo Irã para receber em seu território dois aliados de força também não é ocasional: uma semana depois da visita do presidente norte-americano, Joe Biden, a dois dos estados que lideram o projeto de contenção regional ao Irã - Israel e Arábia Saudita. | ||
Por fim, vale examinar a situação da Turquia. O principal pilar a reger as diretrizes internacionais do país é a dedicação que procura impedir, de todas as formas, a criação de um estado curdo em qualquer parte do Oriente Médio. Os curdos são uma minoria étnica que historicamente se distribui entre o sudeste da Turquia, o nordeste da Síria, o norte do Iraque, o noroeste do Irã e o sudoeste da Armênia. Na Turquia, a população curda é estimada entre 15% e 20% da população total de 84 milhões de habitantes. Neste momento, a Turquia se prepara para uma nova ofensiva militar no norte da Síria, onde há combates em curso entre o exército turco e as milícias curdas conhecidas como Unidades de Proteção Popular (YPG). | ||
Não é portanto surpreendente que o encontro para tratar de soluções na Síria tenha terminado como uma declaração igualmente óbvia (e absolutamente contraditória) por parte do presidente iraniano, Ebrahim Raisi, que reafirmou que a única solução para a crise deve ser política e sem a "interferência de potências estrangeiras". O que diz muito sobre a transformação regional ocorrida neste século (em especial a partir da segunda década deste século); pelas perspectivas iranianas, a Rússia já deixou de ser uma "potência estrangeira" no Oriente Médio. |