Reflexões de uma leitora espantada com o livro "O mestre e Margarida", de Mikhail Bulgákov, e a série de Mitologias, de Gonçalo M. Tavares.
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O livro de Bulagákov e os de Gonçalo M. Tavares aparentemente não têm muito em comum: foram escritos em séculos, línguas e locais distintos. | ||
Mas, por coincidência, na minha falta de método como leitora, li esses livros em sequência no mês de maio. Agora, passado um tempo do fim das leituras, é engraçado notar como a falta de ordem nas minhas escolhas acabou me permitindo ler livros que possuem tanto em comum, para além das diferenças. | ||
Explico. Para começar, nas Mitologias do escritor português, as únicas personagens que têm o nome desvinculado de seus comportamentos ou atributos fisiológicos são as cinco crianças Alexandre, Olga, Maria, Tatiana e Anastácia, nome dos filhos do czar Nicolau II que foram mortos em 1918 após a Revolução Russa. Além disso, nos livros, a Revolução, liderada pelo Homem-Mais-Alto, persegue pessoas que tremem ao serem confrontadas, a partir do mantra "quem tremer é culpado". Há, ainda o jovem Moscovo que comemora seus dezoito anos com um jogo de cabra-cega macabro, em que, de olhos fechados e com um revólver, atira ao acaso nos convidados do evento, dentre eles, o Padre e Anastácia, que escapa por pouco da "brincadeira". | ||
Homens, mulheres e crianças avançam em linha recta desde o ponto de partida até ao destino. Subitamente, de uma carroça saem inúmeros combatentes. É a Revolução, diz alguém. O chefe é o mais alto dos homens e proclama:"Quem tremer é culpado".Homens e mulheres percebem. Até as crianças percebem. Não podem tremer. | ||
Assim, existem muitos paralelos entre o contexto autoritário do regime stalinista, vivenciado por Bulgákov no período de escrita de O mestre e Margarida e que transparece também na narrativa do livro, com, ao menos, parte das alusões históricas presentes nos mitos e histórias contadas por Gonçalo M. Tavares. Isso talvez se reflita também nos temas da loucura e da violência, comuns aos textos e que, curiosamente, em ambos o caso, convivem com o humor e a tragédia, embora cada qual à sua maneira. | ||
Contudo, o que mais me chamou a atenção foi a semelhança de sensações durante a leitura. Seja em O mestre e Margarida, sejam nas Mitologias de Tavares, o leitor permanece em constante espanto e estranhamento, intercalando momentos de riso rápido com outros de indignação e aflição, que despertam a curiosidade (e ansiedade pelo que está por vir) e fazem com que a leitura flua em um ritmo quase compulsivo. Ou pelo menos foi o que aconteceu comigo. | ||
Em parte, acho que isso ocorreu pelas personagens fantásticas, mitológicas ou bíblicas, que aparecem nos livros, sem explicação ou justificativa, e convivem com elementos do mundo da técnica, do poder e da burocracia que conhecemos. | ||
E, por isso, penso que a principal mensagem dos livros de Bulgákov e Tavares seja a de que há coisas que são melhor compreendidas quando não são explicadas e que a literatura e a fantasia são capazes de alcançar pontos inatingíveis para a ciência ou a técnica. | ||
É isso que Gonçalo M. Tavares deixa claro ao final de A mulher-sem-cabeça & o homem-do-mau-olhado, com a citação de Walter Benjamin: "(...) somos cada vez mais pobres de histórias de espanto. Isso se deve ao fato de nenhum acontecimento chegar até nós sem estar já impregnado de uma série de explicações". | ||
Por vezes, o espanto, mais que a explicação, é capaz de nos levar à reflexão. Por isso, quis escrever esse texto, a partir da coincidência de que, sem nenhuma razão, justificativa ou método, esses três livros tenham sido lidos, em sequência, no mês de maio. | ||
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