Em um relacionamento sério comigo
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Em um relacionamento sério comigo

Para ler ouvindo Pense e Dance - Barão Vermelho  no looping. 

Sandra Peres
7 min
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Para ler ouvindo Pense e Dance - Barão Vermelho  no looping. 

Não, esse não é um daqueles textos clichês que eu vou dizer como é que eu aprendi a me amar, ou como tudo mudou quando eu me priorizei, até porque eu sempre me curti muito. 

Desde criança eu achava muito chato e cansativo conviver com pessoas e adorava ficar trancada no quarto ouvindo minhas músicas e dançando de um lado pro outro. 

Na adolescência eu até descobri que tinha admiradores que ficavam me olhando dançar das suas janelas ou que iam fumar do outro lado da rua pra me observar, coisa que eu nunca percebi, eu estava presa no meu universo. Talvez já fosse o hiperfoco. 

Eu concentrava horas e horas em reproduzir coreografias que eu mesmo criava e só parava quando julgava pelo espelho e pela sombra na parede que estava bom. 

Meus pais achavam que eu era louca, ninguém na família ou na vizinhança fazia nada parecido, mas em que médico iam me levar pra ver isso?

Eu ouvia músicas o dia todo e criava universos que a Marvel iria achar no mínimo interessante. Tudo isso enquanto fazia a lição de casa, cantava e ouvia as ameaças de que iria ficar de castigo caso eu tirasse nota baixa porque não levava nada a sério. Isso nunca aconteceu. 

Eu cresci, casei cedo porque meus pais achavam melhor delegar logo esse probleminha, assim outra pessoa ficaria responsável de correr atrás das minhas maluquices. 

Mais de uma década casada e ele nunca entendeu que eu não conseguia parar quieta,que  a música ia continuar tocando e quando eu me irritasse com rock eu ia ouvir a tupy e cantar todos os clássicos do sertanejo universitário, do forró, do rap, do funk e até fugir de casa pra ir ver o Mr Catra. 

Eu nunca consegui fazer nada só fazendo, tudo tinha minha assinatura, uma graça, uma piada, uma bagunça, uma trilha sonora, uma tradução mal feita, uma dancinha, minha mãe olhava e já falava: coisa da Sandra, nem adianta reclamar, ela vence a gente pelo cansaço. 

Sempre vivi muito presa nos meus pensamentos, nos meus planos que nunca me dei conta que tinha gente em volta, eu só fazia o que queria fazer e pronto, sempre tinha um milhão de argumentos, todos muito bem embasados que ninguém se atrevia a discordar, era muito mais fácil atender meus pedidos. 

Eu me separei e comecei a namorar, meus filhos cresceram, novas músicas, novos amigos, novas danças,, novos comportamentos, um milhão de histórias, um mundo com câmeras, vídeos e fotos, agora tudo tinha registros, breves registros é verdade, mas os flashes de memória se tornaram mini flashbacks no Google photos e até mesmo no Instagram. 

Mais de uma década depois eu me separei novamente, agora com filhos crescidos, com gatos, um diploma de publicidade, muitos sonhos realizados, viagens, shows, textos, famosos e muita história boa no currículo, uma nuvem carregada de imagens e vídeos. 

Meus pais já não estão mais aqui pra falar que eu tenho que sossegar um pouco, nem pra me lembrar de falar baixo ou parar de dançar. O pai dos meninos também não me pergunta mais como vai ser quando os meninos crescerem e eu continuar com esse comportamento, eles já cresceram e riem muito comigo. 

Meu antigo namorado às vezes, raramente me manda uma mensagem falando pra eu continuar na terapia e esquecer essa coisa de tinder, focar no trabalho, eu preciso ter foco, afinal não sou mais criança e não tenho mais ninguém pra cuidar de mim. 

Na última reunião de família meus filhos e noras estavam discutindo pra ver quem ia me levar pra morar com eles quando eu estiver bem velhinha, cada um me prometendo mais benefícios só pra me ter por perto e não perder o show de humor que vai ser a Sandra com sei lá, 80 e poucos anos. 

Achei legal, fiz um bom trabalho com os meninos e amo essas meninas mais que tudo, defendo elas de tudo se for preciso, como se fossem minhas filhas, mas não me iludo, sei que não é fácil cuidar de um idoso, ainda mais se esse idoso for eu, eles foram bem criados, mas errei num ponto, escondi perfeitamente bem meus dias ruins. 

Dias como hoje que eu percebo que tem mais de 40 anos entre hoje e o dia em que eles querem que eu vá morar com eles e eu não tenho ideia do que fazer comigo até lá. 

Todas as músicas já tem uma história que me lembra alguém, já é trilha sonora de algum momento que eu construí com alguém em algum lugar e não me sobrou nada além de lembranças. 

Ouvir músicas o tempo todo, não parar quieta, fazer várias coisas ao mesmo tempo me deixou exausta e completa. Eu meio que fiz tudo o que tinha pra fazer e ao mesmo tempo não construí nada. 

Passei a vida toda vivendo com alguém, me apoiando em alguém e sozinha na minha cabeça, vivendo acelerada, a mil anos luz de distância da pessoa mais próxima. Eu estudei demais, eu li demais, eu dancei demais, eu ouvi demais. 

Agora preciso me reconstruir, sozinha, desacelerar, parar de gostar dos outros, ouvir músicas e criar universos e trilhas sonoras. Reencontrar prazer em me trancar no quarto e dançar até a hora de dormir sem pensar em nada e em ninguém como se aquelas músicas nunca tivessem sido tocadas antes na minha vida. 

Preciso encontrar novas músicas, novas histórias, novos amores, novos problemas, e construir algo sólido. Sair do universo da minha cabeça e vir pro mundo real. 

A sensação é que caiu a ficha que todo mundo tanto me cobrava de que eu era egoísta, que eu só pensava em mim, que um dia eu iria encontrar alguém que faria comigo o que eu fiz com eles. 

Encontrei e percebi como é olhar no espelho. Como foi sair do meu universo pra entrar em outro e não ser aceita, não caber, não ter nem chance e ficar pra fora, sem conseguir voltar pro meu e sem ter pra onde ir. 

Então foi isso que eu fiz com todo mundo esse tempo todo?

Putz, foi mal! Eu realmente não tinha noção do que estava acontecendo, vocês deveriam ter me levado no médico quando acharam que eu não era normal, ou não, provavelmente nenhum médico iria saber o que fazer ainda. 

Mesmo agora ninguém sabe ao certo o que fazer comigo, mas eu agora só quero aprender a viver sem me perder no fantástico mundo maravilhoso da Sandra, viver no mundo real, com pessoas de verdade, que não se importam se eu vou chorar, ou fazer drama. 

Agora eu só preciso recomeçar esse relacionamento sério comigo, de algum ponto, eu sozinha, dançar conforme a música, como se eu ainda pudesse viver tudo outra vez, porque eu posso!

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                                                                                       ***

Em um relacionamento sério são Crônicas de relacionamentos e descobertas de amor próprio, afinal todo mundo espera alguma coisa a mais da vida, nem que seja boas risadas.

Toda terça feira uma história diferente, inspirada em fatos dessa pessoa que vos escreve.

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