Lágrimas de raiva: estamos na terra e a vida é breve
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Lágrimas de raiva: estamos na terra e a vida é breve

Em 1967, Bob Dylan se escondeu no porão de Big Pink, a casa ocupada por The Band, em Woodstock, para tocar canções que jamais deveriam flanar pelo ar novamente. Como seria gravar um disco que ninguém ouviria?

Gab Piumbato
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Em 1967, Bob Dylan se escondeu no porão de Big Pink, a casa ocupada por The Band, em Woodstock, para tocar canções que jamais deveriam flanar pelo ar novamente. Como seria gravar um disco que ninguém ouviria?

A resposta está nas Basement Tapes, um de seus discos mais apocalípticos. As palavras são cantadas num tal estado de torpor que passamos a questionar o próprio senso do tempo. O sentido das letras é ainda mais elusivo. Para Greil Marcus, Dylan & The Band estavam a inventar um novo país.

Dylan à caráter para a capa das Basement Tapes. Ao fundo, Rick Danko
Dylan à caráter para a capa das Basement Tapes. Ao fundo, Rick Danko

Que país seria esse? Esta questão não me interessa hoje, dia 4 de julho, data da independência americana. Quero falar duma das canções mais misteriosas jamais gravadas: Tears of Rage. Tudo nela é incerto, desde o tom e a letra até o seu significado.

Por algum tempo pensei que a filha ingrata poderia ser uma referência à história de Jacó, talvez Lia ou Raquel. Improvável que Dylan alguma vez tenha lido o soneto de Camões. Mas nós lemos - e no entanto nenhum coelho sai dessa cartola.

Qualquer interpretação da letra parece insuficiente - e até imbecil (uma referência a Rei Lear, como sustenta Andy Gill? Dá um tempo!). Dylan rima purse com worse. O coração cheio de ouro como se fosse uma bolsa é uma crítica ao materialismo da sociedade americana? Esta criança birrenta pode ser a mulher de outras canções das Basement Tapes? Mas por que diabos ela serve ao pai e só diz não? E quem é o ladrão?

O tom de lamento e elegia da primeira estrofe (And now you'd throw us all aside / And put us on our way) reverberam na lírica punk do trovador Renato Russo (Desde pequenos nós comemos lixo / Comercial e industrial / Mas agora chegou nossa vez / Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês).

tradução portuguesa de Angelina Barbosa e Pedro Serrano
tradução portuguesa de Angelina Barbosa e Pedro Serrano

Há quem prefira o "take 1" de "Tears of Rage", mas eu concordo com a escolha do Robbie para o álbum "oficial": o "take 3" tem aquela magia impossível de explicar em palavras - é a combinação das vozes de Manuel e Danko no refrão, que se enroscam e esmaecem, é uma vacilação na entonação do Bob, forçando mais os agudos, é o órgão gospel do Garth Hudson ali no fundo dando o tom.

A versão da Rolling Thunder (1975) com Joan Baez naquela fase gritada do Bob Dylan é simplesmente insuportável. Perde todo o mistério. Joan Baez tem uma certa veia punk: está sempre cantando in your face - não há muita ambiguidade em sua arte. Esta certeza (também política) da Baez é o que retira bastante de seu fascínio para mim.

Bob Dylan e Joan Baez em 1975
Bob Dylan e Joan Baez em 1975

Tears of Rage debutou nos palcos dylanísticos apenas em 1989, na cidade grega de Patras. O arranjo conta com quase 7 minutos de duração, dois longos solos de guitarra, reminicentes da fase "Greatful Dead". Como sempre, é preciso atenção para perceber as nuances - aqui, é o modo como Dylan passa da doçura de And now the heart is filled with gold à rispidez de As if it was a purse, desembocando na ansiedade de But, oh, what kind of love (sim, o fruto desolado desse amor pode ser Love Sick).

Odense, na Dinamarca, marca a última vez (2008) em que esta canção foi tocada, nas bordas dos 8 minutos de duração. Há muito humor no fraseado, nos versos alternativos e em certas pausas. Após o último refrão, Dylan nos concede um solo de gaita - não muito inspirado, é vero, podemos sentir que ele está procurando as notas.

Mas é aquele "life is brief", como um sopro do Eclesiastes, que nos atinge em cheio.

Um amigo costumava dizer que a minha palavra hebraica preferida deveria ser Hevel. Traduzi-la não é fácil: tanto pode ser sopro, respiração, vapor...quanto "vaidade". Na tradução consagrada: "Vaidade de vaidades, tudo é vaidade".

Num livro budista, descobri uma lenda a respeito do poeta Robert Desnos. Preso no campo de concentração nazista, ele estava num caminhão com outros condenados a caminho da câmara de gás. Num puro ato surrealista, decidiu ler as mãos dos seus infortunados companheiros: um seria muito feliz, outro ganharia na loteria, uma mulher teria gêmeos etc.

Desnos passou então a ler as mãos dos próprios carrascos, que não suportaram a situação insólita e desistiram, naquele dia, de executar os presos.

Há um poema dele chamado Terra, cuja tradução (minha, até onde sei, a primeira em pt-br) compartilho a seguir:

Um dia após um dia

uma onda depois de uma onda,

Onde tu vais? Onde vocês vão?

Terra ferida por tantos andarilhos!

Terra enriquecida por tantos cadáveres.

Mas a terra somos nós,

Não estamos sobre ela

Mas desde sempre nela.

De um lado, a ressonância do Gênesis: "No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porquanto és pó e em pó te tornarás". Do outro, o "Hevel": um sopro de vida.

Estamos na terra e a vida é breve.


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