O show de Bob Dylan em São Paulo (21/4/2012)
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O show de Bob Dylan em São Paulo (21/4/2012)

Em 2012, Bob Dylan fez uma série de shows pelas capitais do Brasil. Aqui está o que escrevi na época sobre a primeira vez em que o meu artista predileto nos palcos:

Gab Piumbato
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Em 2012, Bob Dylan fez uma série de shows pelas capitais do Brasil. Aqui está o que escrevi na época sobre a primeira vez em que o meu artista predileto nos palcos:

no dia anterior evitamos o assunto. veio pro show, perguntavam. sim. quem conseguiu os ingressos, num momento de grande apuro aqui, foi o Felipe. no Grande Dia vesti o manto azul do newcastle (jonás pregado nas costas), ele vestiu o alvinegro (captain colo!), e fomos numa feira de vinis. saímos de lá com hard rain (ele) e infidels (eu). mas evitamos o assunto. descendo a augusta, acho (tem outra rua em sp que não seja a augusta?), ele me perguntou: e aí? mas mudei de assunto. até que chegou a hora. banho, lanche, audição das mono records (pra minha inveja, mas também, em cd, convenhamos...). paramos longe. como faz pra chegar? ainda não tava desesperador, mas tava chegando lá. anda prali, anda pracolá, até que num ato que os filósofos qualificam de Desespero Puro, abordamos um Motoqueiro Numa Viela Deserta que nos ensinou um atalho que passava por trás duma casa que ficava perto de um esgoto a céu aberto. finalmente chegamos no local. moças bonitas que jamais saberiam o que zimmerman quer dizer nos recepcionaram e havia também muitas camisetas daquele cara que não gostava de meteorologistas.

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eu fui com a minha, ele foi com a de the band (alguém gritou LEVON HELM no intervalo entre canções, o que foi muito belo e assaz pertinente, já que ele morrera dois dias antes, em 19 de abril). fomos ao banheiro umas três vezes antes de o show começar, e olha que chegamos lá faltando meia hora, o que era um tempo enorme e um tempo muito curto. nos posicionamos em nossos lugares, ao lado de socialites bebendo champanhe e de idosos comendo pipoca. havia uns moleques chamando-O de "filho da puta" e "esse porra", eu ouvi. ó, e no meio disso, as luzes se apagaram. e meu deus. meu deus. meu deus. estávamos num show do bob dylan! nós que havíamos ficado de fora da última vez, nós que estivemos juntos sem saber no maior show já acontecido da história de Curitiba (=w=), nós estávamos lá. o Thiago mandou uma mensagem perguntando como é que tá, mas acho que nem respondi, nem sei se ainda tinha dedos naquele momento. a banda e bob nos levaram direto pra 1966, e depois praquela que diz te dei meu coração mas cê queria minhalma (que soou melhor do que a gravação clássica de 62 pros meus ouvidos, heresia, heresia!), e things have changed veio com tudo, o retrato daquele velhinho simpático e dançarino, na medida da artrose, até tangled up in blue surgir como uma meditação dantesca, digo, dylanesca sobre o amor. cada canção nos levava pra mais perto da porta divina. além dali não havia nada. então não sei bem o que aconteceu, mas bóbão sentou ao teclado e tocou, quase sozinho seilá, uma canção. virei pro Felipe e disse: ou eu to muito loko ou a gente acabou de ouvir every grain of sand???!!! (depois fui descobrir que ela só havia sido tocada apenas 179 vezes) ele só recuperou a língua na jam de leeve's gonna break pra me dizer "a melhor do show cara". bem, depois da melhor do show, veio outra melhor do show, uma forte chuva. e depois da melhor do show, veio mais uma melhor do show, com aquela buzina espantosa e assustadora e assombrosa e inacreditavelmente idêntica à de 65. depois da melhor do show, veio, aí sim, a melhor do show: love sick. acho que nos demos uns soquinhos querendo dizer "não acredito". assim falando parece que foi o melhor show da história, mas calma que fica ainda melhor: thunder on the mountain, pra mostrar como a banda é fodíssima de novo (depois da primeira melhor do show). não contente, dylan ainda nos deu ballad of a thin man numa interpretação aterradora & estratosfericamente superior a qualquer gravação que eu conheça (e, crianças, posso dizer que já ouvi algumas) (assim como highway 61 tinha acabado de nascer novamente minutos antes). agora chegamos ao momento culminante da nossa existência: like a rolling stone. todo mundo sabia que ia rolar, todo mundo sabia como ia ser, todo mundo conhece essa de cór e salteado e o que acontece é que aquele senhorzinho de 70 anos em cima do palco - um palco nu, só um pedaço de pano preto no fundo, lembrando o clipe de boys dont cry, sem pirotecnia, só a música contando, só a música soando - a verdade é que bob dylan é um xamã e qualquer pessoa digna, e até mesmo os indignos, sabem disso porque bob dylan abriu um portal divino e atemporal ("The purpose of art is to stop time") e nessa hora posso ter deixado uma lágrima cair quando ninguém tava vendo, e o que vimos foi um momento sagrado, porque uma moça levantou dos assentos marcadinhos, colou na grade que separava os setores, e começou a dançar como se o septuagenário tocasse aquela canção especialmente pra ela, como nas imagens de festivais dos anos 60 que a gente vê as pessoas em transe como se nada mais existisse começou a dançar pra espanto dos moleques desrespeitosos, das socialites que não tinham a mínima idéia do que tavam fazendo ali, dos garçons que passavam com pipoca e champanhe, ela dançou e depois uma mulher mais velha, já bem passada da balzaquice, se juntou a ela e ficaram as duas dançando. se fosse um filme, certamente alguém diria ah que brega!, mas era a Verdade e somente a Verdade. nessa hora tudo acabou e parecia haver razão naquele verso do ferlinghetti, there must be a place where all is light. todos levantamos, virei pro Felipe e disse: cara vamos ajoe...e ele já tava ajoelhado, e me ajoelhei também, e nem preciso dizer que as socialites estavam ali boboquiabertas. o show acabou, mas teve bis. pra ser sincero, não sei bem qual foi o bis, só lembro que ainda mezzo aéreo, sem saber o que acontecia, todos de pé, o Felipe me tirou do estupor me agitando: "não tá reconhecendo cara não tá reconhecendo???". e só fui reconhecer no refrão - eu que só não reconheci 2, fui bem melhor do que sonhava, eu que tinha pesadelos pensando se iria conseguir reconhecer as canções do coração - que era blowin' the wind, que eu meio que desprezava porque o bob nunca foi muito fã e escreveu num guardanapo em 10 minutos enquanto piscava pra suze com o olho direito e pra joan com o olho esquerdo, mas que é de verdade uma canção poderosa, penitencio-me agora, perdoa, não sei o que digo. aí quando finalmente o show acabou, esperamos aquele lugar sagrado esvaziar encostados na parede e ficamos vagando por entre as fileiras de cadeiras, como o beletti de chinelo voltando ao gramado com o estádio vazio depois de marcar o gol da champions em 2006, sem saber o que tinha acontecido e por que fomos escolhidos praquilo. foi o único show que vi a seco, sem beber nem uma mísera gota de água. o Felipe entregou o celular pra outra Testemunha e nossas almas foram gravadas pixelmente. pode não ter sido exatamente assim, mas foi assim que me ficou. 

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