Internet: O aldeão idiotizado
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Internet: O aldeão idiotizado

A frase do grande escritor italiano Umberto Eco que, mais ou menos, diz que a internet deu voz ao mais idiota dos aldeões é reproduzida às pencas por aí. Quando o tema é o impacto da internet na sociedade, tal frase é reverberada com bastante...

Hugo Müller05/02/2022
4 min
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A frase do grande escritor italiano Umberto Eco que, mais ou menos, diz que a internet deu voz ao mais idiota dos aldeões é reproduzida às pencas por aí. Quando o tema é o impacto da internet na sociedade, tal frase é reverberada com bastante repetição e convicção. Ouso a discordar em partes de Umberto Eco. Não aderir às frases de grandes escritores, filósofos e pensadores é um dos caminhos mais rápidos para o fracasso, seja ele qual for, e lá vou eu!

Quando Eco escrevera, ou proferira, tal assertiva, a fez com o intuito de dizer que a conectividade gerada pela internet promoveu a interação entre indivíduos provenientes de locais distante, regiões longínquas umas das outras e as vezes com culturas ainda mais distintas. As comunidades virtuais oferecidas por programas das chamadas Big Techs - Google, Microsoft, Facebook, Amazon, Apple e outras - inseriram o aldeão do rincão do Brasil, dos EUA ou do Haiti, numa sala-de-estar. Nesta sala, onde há janelas virtuais ao invés das reais de madeira e vidro, poderá se relacionar com outros indivíduos das mais distintas partes do mundo. Por mais que não haja ônibus, estrada, dinheiro ou escola para o indivíduo, a internet o permite, de alguma forma, de estar ali naquela sala. De falar, de intervir, de xingar, de apoiar, de comprar, de vender, de namorar, de se expor e de tantas outras maneiras de existir. Por mais “idiota” que seja, está lá o aldeão sentado no sofá da sala. Mesmo que essa existência seja virtual e através de uma tela. Sim, Umberto Eco tem razão quando diz que a internet deu voz ao aldeão que mesmo alienado está lá na rede se fazendo existir em perfis, postagens, avatares etc. Por outro lado, cabe perguntarmos: Qual é a voz desse aldeão?  Quem constrói o que se fala e o que se faz na internet?

O recente filme “O dilema das redes”, do diretor Jeff Orlowski, mostra como as grandes empresas que atuam na internet induzem os usuários a acessarem conteúdos que os levam a conviver digitalmente em certas “bolhas” e a praticarem determinados comportamentos. Bolhas são comunidades que compartilham coisas em comum: ideologias, hobbies, profissão etc. As bolhas induzem os internautas a adequarem os seus respectivos pensamentos ao da comunidade. As empresas, através de algoritmos, números que identificam os comportamentos na rede, oferecem exatamente aquilo que satisfaz ao comportamento do usuário, afunilando seu modo de agir e pensar, cada vez mais e mais, até a compulsão, o amarrando cada vez mais a rede. O que ocorre é que, sem o internauta perceber, não é mais ele que realiza as escolhas sobre o que fazer, aonde ir, o que comprar, como comprar, qual pensamento seguir, que valores compartilhar. Sem que o usuário perceba, a internet lhe determina as opções e assim, diariamente, de forma desapercebida, induz o aldeão a compartilhar aquilo que convém às Big Techs. Seja os produtos de seus patrocinadores ou a visão de seus acionistas. Não há liberdade de escolha quando as opções disponíveis foram impostas por terceiros. Pode haver o simples ato de escolher, mas não há a liberdade de decidir. A decisão já foi tomada por aqueles que lhe impuseram as opções.

Essa relação internauta-internet tem duas dimensões: 1) o controle dos costumes políticos, comerciais e culturais dos internautas; 2) a reprodução nas massas de internautas da sensação exatamente oposta: que a sua voz, a sua opinião, o seu jeito de pensar e os seus costumes ganharam força e espaço com a internet. Ou seja, o efeito real do pensamento homogêneo é ofuscado pela aparência do pensamento livre. Os grupos que controlam a internet a levaram a ser uma poderosa ferramenta de poder social e político. Me refiro ao poder neste caso enquanto o exercício do controle dos internautas. Controle dos seus corpos, disciplina dos seus hábitos, reprodução de costumes políticos e visões de mundo. Os efeitos ainda são novos, na perspectiva temporal desse historiador que aqui escreve, mas já impactantes nas sociedades contemporâneas. Trata-se do poder em sua mais perfeita realização: de forma sutil. O que era para ser o simples aldeão idiota na internet virou o aldeão idiotizado pela internet.

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