Outro dia eu reparei que nunca escrevi sobre a minha mãe. E verdade que eu sempre falo dela, cito em alguma frase, conto alguma coisa engraçada que ela faz... como quando eu era criança e ela verdadeiramente me convenceu de que o Zezé de Cama...
Outro dia eu reparei que nunca escrevi sobre a minha mãe. É verdade que eu sempre falo dela, cito em alguma frase, conto alguma coisa engraçada que ela faz... como quando eu era criança e ela verdadeiramente me convenceu de que o Zezé de Camargo cantava "saudade vai chamar Simone" — que é o nome dela —, em vez de "saudade vai chamar seu nome". | ||
Teve também a vez que ela salvou a minha vida. Foram várias, na verdade, mas teve uma que foi a mais engraçada. Que foi quando eu tinha uns 12 ou 13 anos. Eu fui de ônibus encontrar com ela em algum lugar em Santo Amaro. Mas quando desci do busão um cara me seguiu e pediu minha carteira. Eu coloquei a mão no bolso, peguei a carteira e entreguei tranquilamente, porque eu já tinha sido assaltado umas três vezes antes e, ora, o que mais poderia ter em uma carteira de criança, além de cartão velho de adulto e figurinhas das Chiquititas? | ||
Eu tava passando a carteira para a mão do cara quando minha mãe surgiu como o The Flash, não sei de onde, se colocou como uma mulhara na frente do cara e, com a voz mais grossa que o João Gordo cantando no Ratos de Porão, ela ordenou: "ME DÁ ESSA PORRAAA!!!". Ela or-de-nou. O cara se encolheu e ficou assustadíssimo. | ||
Eu também. | ||
Não sabia da capacidade gutural da minha mãe. O cara entregou a carteira e disparou em direção ao nada. | ||
Quando ele sumiu, minha mãe perguntou se era meu amigo. Eu disse que obviamente não — e depois daquele apavoro jamais seria. Ou seja, ela não tinha certeza do que tava rolando, só teve a impressão de que eu tava em perigo e nem pensou que o cara podia ter uma arma ou coisa do tipo, ela só se atirou na frente dele pra impedir que me fizesse alguma coisa. | ||
Depois, nós entramos num consultório médico e ficamos lá com medo do cara voltar armado e com sede de vingança. Mas ele não voltou. E eu tive a oportunidade de assistir ao vivo e de camarote a materialização de todo cuidado que minha mãe sempre teve comigo. | ||
Enfim, eu sempre falo da minha mãe, mas nunca escrevo propriamente sobre ela. Por quê? Foi o que eu fiquei me perguntando. | ||
Por que eu não escrevo sobre alguém que lê tarô pra mim com quatro jogos cruzados? Por que eu não escrevo sobre alguém que me apresentou à literatura espírita aos 10 anos, mas não me deixou ler O Silêncio dos Inocentes? Por que eu não escrevo sobre alguém apaixonada por cristais e que me confiou o seu cristal mais bonito sem nem titubear? | ||
Teve uma vez, durante uma experiência psicodélica, que eu senti como se tivesse sendo cegado por uma luz roxa muito intensa. | ||
E aí lembrei que, quando eu era pequeno, minha mãe tinha uma pedra exatamente daquela cor. Mas eu não tinha a mínima ideia de onde ela tava. Então, saí daquela experiência com a ideia fixa de perguntar pra minha mãe onde tava a tal pedra roxa. Se ela ainda tinha guardado, se existia... | ||
Ela disse que aquela pedra era uma ametista. Que não era roxa, era violeta. E que ela tava guardada. Mas que ela me daria se eu cuidasse dela. E eu cuidei. E eu cuido. | ||
Quando tô com ela me sinto o próprio Rodrigo Lombardi no remake da novela O Astro, cantando aquela música de rima estranha do João Bosco: "Minha pedra é ametista/ Minha cor, o amarelo/ Mas sou sincero/ Necessito ir urgente ao dentista". | ||
A ametista sempre ocupa o ponto principal da minha casa, onde quer que eu esteja morando. E, desde que me mudei pra Ubatuba, ainda antes da viagem pra Argentina, sempre levo ela pra tomar banho no mar. | ||
Tem quem olhe e diga que é só uma pedra roxa e pontiaguda. E é verdade, da fato, ela é uma pedra roxa e pontiaguda mesmo. Não precisa ser geólogo pra chegar nessa conclusão. Mas sempre que eu olho pra ela, vejo minha mãe incorporando o João Gordo e atacando um assaltante pra me defender. E me sinto protegido. A pedra é um lembrete. | ||
Logo que eu comecei a me questionar sobre o porquê eu não escrevo sobre minha mãe, eu comecei a perceber o porquê. Escrever sobre a minha mãe é igual a tentar pegar fumaça com a mão. Eu não escrevo sobre a minha mãe porque eu não consigo capturar ela. Qualquer coisa que eu escreva vai ser só um retrato desfocado de toda beleza que ela tem. | ||
Eu sei que ela me lê. E tô escrevendo isso pra dizer que te amo, mãe. | ||
Acho que é uma homenagem bonita pra 50ª edição desta newsletter, que sai na semana em que eu completo 34 anos: feliz, tranquilo e protegido pelo João Gordo. | ||
Caso não tenha ficado claro, chegar a 50 edições é um marco, tá? Lá se foram três anos desde que eu resolvi criar uma newsletter do nada para zero pessoas com coisas que eu achava que não caberia escrever em outro lugar. | ||
Os assinantes foram aumentando, as edições foram crescendo e agora tô aqui com a certeza de que fiz a coisa certa ao vencer o medo e a vergonha de criar uma coisa nova. | ||
Houve algumas interrupções no caminho, houve preguiça, houve questionamentos do tipo "pra que eu tô escrevendo essa caralha?". Mas foi graças a tudo isso que eu me descobri como escritor, talvez um artista, seja lá o que isso quer dizer... | ||
O fato é que essa newsletter abriu caminhos dentro da minha mente que jamais se abririam de outra forma. | ||
E se você está lendo isso, é porque você faz parte dessa construção. Muito obrigado! | ||
Vai pela sombra e fica na paz de Bowie. | ||
Com amor, | ||
Nathan | ||
Se você chegou aqui através de um link, deve tá pensando: "Como eu assino essa newsletter maneira?". Ora, é só deixar seu e-mail aqui. E dá pra ler as edições anteriores aqui também. Se não curtiu e tá aqui lendo esta última linha, admiro sua capacidade de autoflagelação. |