Minha mãe sempre contou aos quatro ventos sobre o dia em que descobriu que eu seria inteligente — uma daquelas memórias que não guardo, mas a ouvi tantas vezes que se tornou minha, sabe? E ter registro fotográfico não ajuda: minha roupa, a te...
Minha mãe sempre contou aos quatro ventos sobre o dia em que descobriu que eu seria inteligente — uma daquelas memórias que não guardo, mas a ouvi tantas vezes que se tornou minha, sabe? E ter registro fotográfico não ajuda: minha roupa, a textura do lençol, a bola do outro lado da cama, meu cabelo bagunçado, o sorriso travesso, a ideia que se formou e me levou a fazer o que eu fiz... tudo isso me ocorre naturalmente sempre que o assunto vem à tona. |
Acontece que, talvez por naturalizar essa memória ao ponto de torná-la uma coisa minha, ela tenha significado diverso para mim. Enquanto mamãe se fascinava por um bebê puxar o lençol da cama para trazer até si o brinquedo que rolara para longe em vez de ir até ele, como toda criança normal faria (o que não acredito, porque parece inconcebível ter ideia distinta da que eu tive), eu me envergonhava, ciente da farsa que eu era, pois aquilo não me parecia prova de inteligência coisíssima nenhuma, mas a pura manifestação de minha essência: uma pessoa acomodada, que não sai de sua zona de conforto e espera (em todos os aspectos da vida) que as coisas venham até ela — desde uma ideia ou inspiração para escrever um poema, um TCC ou uma petição inicial, até uma oferta de emprego ou bate-papo entre amigos. |
Sempre essa figura passiva e espectadora da própria vida. |
Claro que não me aprofundei nessa análise para mamãe, resumindo simplesmente ao fato de que não era prova de inteligência e sim de preguiça, e por mais que ela discordasse a princípio, os últimos vinte e cinco anos foram mais do que suficientes para provar meu ponto. |
Se da primeira vez que publicizei essa conclusão, por não mais suportar a sensação de fraude que me invadia sempre que ouvia a versão enfeitada da história, ela relutou e afirmou que eu estava sendo dura demais comigo mesma, tempos depois (precisamente quando voltei para casa e me recusei a fazer qualquer outra coisa além de existir em meu quarto), numa dessas vezes em que mães se vangloriam de conquistas do filho e retiram do fundo do baú histórias completamente distorcidas para contar às amigas, eu percebi que o tom dado a essa história havia mudado. Ela não só alterou o discurso e aderiu à minha teoria, como aproveitou a oportunidade, é claro, de me alfinetar por tê-la iludido por tantos anos. |
Curiosamente, quando abri o editor de texto para realizar esse exercício de escrita, logo depois de receber o e-mail com o feedback do anterior, essa lembrança foi a primeira coisa que me ocorreu. Por uma fração de segundo, pude vislumbrar nela nossa discussão sobre memória enquanto história que se reescreve a partir da lente (espelhada) utilizada por quem se recorda, as minas que se escondem sob o meu terreno florido, o eu. E isso me conduziu à resposta da pergunta: o que é usual para mim? |
Eu estava desde quinta-feira tentando encontrar um lugar não comum de onde eu pudesse falar, mas tudo ao meu redor (que seria fonte potencial de inspiração) era familiar. Tentei, portanto, me distanciar de mim e me deter não ao que eu já conhecia, mas ao que ignorava e poderia conhecer se me permitisse e me esforçasse para tanto, o que, por si, era algo não usual: a busca pelo brinquedo que correu para longe, o meu movimentar em direção ao que almejasse. |
E foi assim que eu percebi o que é a minha inspiração e sobre o que escrevo. Foi ao receber o e-mail e perceber que alguém, de fora do meu convívio, conseguia perceber que tudo que eu escrevo gira em torno de mim: o que eu tenho, o que eu sou, o que eu sinto. Eu. Desde a forma como eu vejo ou, ao revés, não enxergo (e por que não?), o que sinto e como reajo às coisas que aguçam meus sentidos (em especial, o toque e o paladar), o significado que eu dou às músicas, aos dias, às estações, o apego pela memória afetiva de cada nota fiscal ou embalagem que eu guardo, meu gosto pelas coisas que se eternizam, meu medo do abandono e das críticas, enfim, tudo que eu, enquanto centro, conheço do mundo. |
O não usual para mim é escrever sobre as coisas que eu não sei e que me excluem, como aquela narrativa fantasiosa com criaturas mágicas e guerras que eu sempre sonhei escrever, mas que não o fiz porque eu precisaria sair de onde, confortavelmente, espero o brinquedo me alcançar. Eu precisaria agir. |