3 perguntas para Breanna McCann, curadora do Arquivo Richard Manuel
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3 perguntas para Breanna McCann, curadora do Arquivo Richard Manuel

Todo mundo que já ouviu The Band sabe: Richard Manuel tem um brilho próprio. Todos temos um integrante preferido ali – o meu varia conforme o momento. Às vezes só quero ouvir o baixo de Rick Danko em “Tell Me, Momma”, outras vezes é um lick s...

Gab Piumbato
8 min
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Qual é o seu integrante preferido de The Band? O meu varia conforme o momento. Às vezes só quero ouvir o baixo de Rick Danko em “Tell Me, Momma”, outras vezes é um lick serpenteante do Robbie Robertson que me desperta, sem esquecer o Garth Hudson fazendo a sua mágica nas teclas e o Levon Helm apenas sendo Levon Helm.

Mas Richard Manuel sempre rouba o show. Ele consegue se destacar na banda que é chamada apenas de The Band, e que tem mais dois cantores que seriam os vocalistas principais de qualquer outro conjunto musical. É de tirar o chapéu, não?

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Hoje trago uma entrevista com Breanna McCann, idealizadora e curadora do The Richard Manuel Archive, “um projeto de pesquisa de longo prazo destinado a definir o legado de Richard Manuel para além de sua tragédia”, como ela mesma me contou. Você pode conferir o trabalho dela no perfil do Twitter e também os textos mais longos no Medium. Breanna também me explicou um pouco melhor como surgiu o seu interesse neste tema:

A ideia surgiu por causa da frustração com a forma como as narrativas envolvendo The Band minimizam as contribuições de Richard e, em vez disso, preferem enfatizar o seu vício, citando isso como o único fator impulsionador por trás da dissolução do grupo. Bastaria um minuto de pesquisa para ver que esse não é o caso, e isso é algo que aprendi quando comecei a mergulhar mais a fundo na história de The Band. Quando descobri como Richard era talentoso e como sua presença era integral, fiquei cada vez mais frustrada com a forma como quase todas as fontes do grupo o descartavam como tendo uma ótima voz, mas sendo um alcoólatra que se enforcou.

Na hora pensei que deveria haver algo mais sobre ele e que sua verdadeira história merecia ser contada, ainda mais depois de saber que não havia um livro nem uma biografia individual dele. Chame de intervenção divina ou confiança cega, mas o Arquivo de repente me pareceu a melhor maneira de contar a sua história e fazer-lhe justiça desde então.

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A seguir, três perguntas para Breanna McCann:

1) Como você avalia a interação entre Manuel e Dylan no contexto das Basement Tapes?

A interação entre Richard Manuel e Bob Dylan em The Basement Tapes, em particular, é fascinante. Dylan sabe que tem algo mesmo especial em Manuel e trabalha para acentuar isso. Óbvio, todos integrantes de The Band são excepcionais. Ainda assim, Manuel em particular brilha nessas faixas, tanto as escolhidas para o álbum de 1975 quanto as incluídas nas gravações completas do Volume 11 da Série Bootleg de Dylan [escrevi sobre este bootleg ontem].

O exemplo mais óbvio dessa síntese é “Tears of Rage”, para a qual Dylan escreveu a letra e Manuel a melodia. Mas mesmo nas tomadas que você ouve nos bootlegs, enquanto Dylan está lá na liderança, Manuel está no fundo e adiciona essa qualidade etérea a tudo que Dylan canta. Faz sentido que este seja um dos momentos brilhantes de Manuel com The Band. Em Basement Tapes, Manuel lidera os vocais mais do que qualquer pessoa, exceto Dylan (estou pensando em canções como "Katie’s Been Gone"), mais uma vez mostrando que Dylan tem alguma compreensão do talento extraordinário que ele tem aqui, colocando Manuel em jogo.

Richard Manuel com as pernas cruzadas à la Caetano Veloso. Bob com a sua clássica camisa de bolinhas.
Richard Manuel com as pernas cruzadas à la Caetano Veloso. Bob com a sua clássica camisa de bolinhas.

Eles têm uma coesão artística muito especial e uma dinâmica que é tão fascinante de se ouvir, especialmente em muitas das faixas do lançamento do bootleg que não entraram no álbum oficial dos Basement Tapes (1975).

Minha favorita é “People Get Ready”, uma canção linda e simples que se torna espiritual com a justaposição da voz áspera de Dylan na frente e o falsete angelical de Manuel ao fundo. Isso me paralisa e sempre traz lágrimas aos meus olhos. Juntos, eles criam um momento musical que de alguma forma pára o tempo. É um profundo reconhecimento de almas gêmeas e uma espiritualidade presente entre as notas e linhas naquele instante.

Na minha cabeça, Manuel e Dylan eram os mais semelhantes do grupo - duas almas perdidas procurando algum significado por meio de sua música, então este momento comovente é talvez o melhor testamento para a interação espiritual profunda, penetrante e subconsciente que eles encontraram naquele porão.

Isso me recorda a história da primeira vez em que Dylan ouviu Music From Big Pink. Como Robbie Robertson lembra, depois de "Tears of Rage", Dylan exclamou "Isso foi incrível, Richard!" e Richard aparentemente "agiu um pouco tímido, mas emocionado". Há magia de verdade e orgulho nesse relacionamento, e certamente tudo isso ressoa claramente em The Basement Tapes.

2) Para mim, há uma interpretação de Manuel que é infinitamente superior à de Dylan. Me refiro a "I Shall Be Released". Tenho sempre de ouvi-la ajoelhado. Você pode contar um pouquinho mais para nós o significado desta canção na trajetória de Richard Manuel? Ele simplesmente tomou para si uma canção do maior compositor do último século. Não é todo mundo que faz isso...

Esta é uma excelente pergunta, e eu não poderia concordar mais com a sua descrição. “I Shall Be Released” é uma música de Richard Manuel, ainda mais do que uma música de The Band em minha mente e, sem dúvida, muito mais do que uma música de Dylan, apesar de Bob tê-la composto. Considerando a trajetória de vida de Manuel, é uma alegoria devastadoramente clara.

Muitas das canções que Manuel cantou eram altamente autobiográficas. Canções como "Whispering Pines", "Sleeping" e "Lonesome Suzie" (todas as que ele escreveu total ou parcialmente sozinho) não se tornam paralelos diretos com sua vida por acidente, e o mesmo é verdade para "I Shall Be Released”, embora ele não a tenha composto.

A música apresenta um narrador na prisão, refletindo sobre sua vida passada e olhando para o futuro, desejando a libertação “a qualquer momento”. Não é segredo que Manuel teve dificuldades em sua vida. Embora não fosse bem compreendido na época, fica claro, olhando para trás, que ele lidava com alguma forma de depressão clínica que o tornava suscetível ao alcoolismo e ao uso de drogas. Infelizmente, como havia tão pouca compreensão da doença mental na época, ele nunca recebeu o apoio de que precisava e, em vez disso, teve acesso quase constante aos seus vícios. Ele entrou na reabilitação no final de 1978 e permaneceu sóbrio até cerca de 1983, quando teve uma recaída.

A tragédia final veio em 1986 quando ele tirou sua vida após um show da banda em Winter Park, Flórida. “I Shall Be Released” estava tão intimamente associado a Manuel que o baixista de The Band, Rick Danko, a cantou em seu memorial alguns dias depois.

Richard Manuel provavelmente entendeu os sentimentos daquele narrador melhor do que ninguém, e é por isso que toda vez que ele a interpretou ao longo dos anos, atingiu um nível tão comovente. Você tem a sensação inabalável de observar um homem que sentiu cada palavra cortando-o como uma faca. Sua convicção e desespero não podiam ser errados, e isso a torna assustadoramente bela, não importa qual seja versão que você ouve.

Acabei de participar de um tuitaço ao vivo do concerto do Royal Albert Hall de 1971 e a interpretação que ele faz lá é espetacular. Minha versão favorita é o vídeo de 1970 do Festival Express Tour. É difícil de descrever, mas talvez ali ele se mostre mais humano e sobrenatural do que ele jamais foi, e essa é a melhor maneira que eu poderia descrevê-lo em geral. Essa performance vai te deixar arrepiado.

3) Agora, falando sobre o Richard Manuel, gostaria de ouvir mais sobre a sua relação pessoal com a arte dele. O que te atrai nele? O que ele tem que os outros companheiros de The Band não têm?

Uau, essa é uma ótima pergunta, e suponho que a melhor maneira de respondê-la é contando uma versão abreviada da minha jornada com ele. “The Weight” foi uma música especial para mim por vários anos, e um dia quando precisava de algo para ouvir me decidi por Music from Big Pink.

Havia algo na voz de Richard, desde a primeira nota em "Tears of Rage", que me pegou desprevenida, mas naquele momento, algo se iniciou. Logo depois, só ouvia The Band e por vários dias seguidos não toquei quase nada além de “Across the Great Divide” e “Whispering Pines”. Nesse ponto, eu ainda não sabia direito quem cantava qual música em qual trecho; eu apenas reconhecia aquela voz e sabia que ela ressoava em mim de alguma forma. Um dia, comecei a pesquisar os integrantes do grupo e, enquanto lia sobre Richard, “Sleeping” começou a tocar. Naquele instante, enfim me dei conta - ele estava cantando sobre si mesmo. Algo naquele momento deu um clique, senti alguma conexão espiritual cósmica com ele.

Desde então, comecei a ter mais e mais momentos como aquele com a sua música - uma nota ou linha me atinge como se ele dissesse as palavras que eu estava procurando mas não conseguia encontrar. Ele colocou tanto de si mesmo em sua música que o sentimos imensamente presente nela. Ao ouvi-lo cantar, parece que ele está ali na sala, e isso exige uma quantidade insana de talento como artista. Suponho que seja isso o que me atrai nele; sinto alguma conexão com as coisas que ele diz, alguma compreensão.

Mas em um nível mais profundo, eu não sei mesmo o que me atraiu nele. Não entendo por que, de cada artista que já amei, ele é aquele com quem me conecto em algum nível superior. Não tenho certeza do que no universo me chamou para contar sua história e, muitas vezes, me pergunto se sou mesma capaz disso.

Tudo o que sei é que tive de agir de acordo com o meu sentimento. Ele era o coração e a alma de The Band e merece ter sua história contada, sinto que devo isso a ele – ao menos pelo conforto que ele me trouxe. Só espero estar deixando Richard Manuel orgulhoso, onde quer que ele esteja.

Sim, Breanna, Richard está feliz com o seu trabalho - e nós também!
Sim, Breanna, Richard está feliz com o seu trabalho - e nós também!

Estou apaixonado pelo trabalho da Breanna. A devoção dela a Richard Manuel me recordou de um poema do português Herberto Helder

Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios, 
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?

Para acompanhar Breanna McCann no twitter, vá por aqui. Não se esqueça também de seguir o perfil do Arquivo Richard Manuel.

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