As manifestações das mulheres no Irã e por que razões o país está ajudando a Rússia na Ucrânia
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As manifestações das mulheres no Irã e por que razões o país está ajudando a Rússia na Ucrânia

Essa é uma pergunta, digamos, lateral à guerra, uma vez que não está no cerne do conflito. Mas que faz sentido especialmente porque, como costumo escrever por aqui, é parte integrante da estratégia regional do país, ainda mais num momento de ...

Henry Galsky
5 min
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Essa é uma pergunta, digamos, lateral à guerra, uma vez que não está no cerne do conflito. Mas que faz sentido especialmente porque, como costumo escrever por aqui, é parte integrante da estratégia regional do país, ainda mais num momento de grande contestação ao regime. A liderança iraniana não conseguiu conter as manifestações da juventude local, muitas delas conduzidas por mulheres e que receberam ampla cobertura e solidariedade da comunidade internacional. As jovens que se rebelam contra a repressão e a violência das autoridades estão produzindo o maior e mais simbólico movimento antissistema desde a Revolução Islâmica de 1979.

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Não é exatamente complexo entender por que razões o governo iraniano imaginou que seria capaz de interromper esta onda da mesma forma como já fez tantas outras vezes: com o uso de amplo mecanismo de repressão violenta. Mas num mundo hiperconectado - e num mundo onde as mulheres corretamente questionam o domínio masculino e todas as suas graves consequências -, as poderosas imagens de iranianas botando membros do aparato de repressão para correr ganharam o planeta rapidamente, transformando as atuais manifestações no maior acontecimento internacional deste ano. Não fosse pelo momento do Brasil, o assunto teria naturalmente maior repercussão na imprensa brasileira.

E daí retorno aos planos do Irã na Ucrânia, disponibilizando e vendendo armamento aos russos, majoritariamente seus drones. Há o caminho mais óbvio desta análise, o financeiro. Mergulhado em sanções internacionais, os iranianos precisam encontrar fontes de recursos, algo que guerras sempre fornecem. No caso da relação com os russos, é de fato um caminho de simbiose, uma vez que Moscou também enfrenta fortes sanções e também perdeu clientes importantes numa de suas principais áreas de sucesso econômico, a venda de energia. Grandes potências europeias deixaram de receber gás e combustíveis fósseis da Rússia, uma carteira de clientes que inclui Alemanha, Itália, França, Áustria, Dinamarca, Holanda, Finlândia, Polônia, Bulgária e outros países.

A política externa iraniana passa pelo estabelecimento de áreas de influência e também pela construção de hegemonia no Oriente Médio. Não por acaso, Teerã expandiu sua presença por meio de alianças, financiamento, treinamento e abastecimento de armas no Líbano, por meio do Hezbollah, na Síria, no Iêmen, por meio dos rebeldes Houthis, no Iraque, com as milícias xiitas, e na Faixa de Gaza, com apoio ao Hamas e também ao principal grupo de contestação interno do território, a Jihad Islâmica Palestina (PIJ). Os iranianos estão presentes em todos os focos de tensão do Oriente Médio, numa ligação que hoje se estende para oeste entre Teerã e Beirute, por exemplo, passando por Gaza, Sanaa, Bagdá e Damasco. O Irã é um fracasso em termos de relações públicas, mas um sucesso em suas aspirações regionais quando se examina os chamados eventos "no solo".

E aqui reside o segundo ponto dessa estratégia de apoio à Rússia - que pode ser considerada também, de certa forma, um prolongamento das dinâmicas e métodos já aplicados com sucesso no Oriente Médio. Para além do teste de seus armamentos nos ataques com drones à Ucrânia - o que não é pouco, já que um confronto na Europa é um laboratório de luxo -, há também um esforço de construção de novas alianças, por mais contraditório que isso possa parecer neste momento.

A guerra de narrativas é hoje um ponto central das disputas internacionais e também potencializada por este mundo hiperconectado. O confronto entre Rússia e Ucrânia parece muito claro a certos atores e também pelas lentes de parte da militância que se manifesta nos mundos real e virtual: uma potência internacional, a Rússia, invadiu um estado soberano, a Ucrânia, o que é indefensável. Ponto final na interpretação e na forma de abordagem aos acontecimentos. Mas esta não é a única leitura sobre a guerra.

Num outro lado, há quem defenda a atitude russa, como uma espécie de ato em busca da manutenção da própria soberania. Neste caso, a narrativa russa, compartilhada também por outra militância presente e engajada nos mundos real e virtual, é de que Moscou teria realizado uma espécie de ofensiva preventiva, de modo a conter a expansão da OTAN, a aliança militar ocidental liderada pelos EUA, cujos planos, portanto, representariam uma ameaça à própria soberania russa.

Os dois parágrafos acima apresentam as duas linhas de argumentação em disputa - como escrevi, nos dois universos de batalha narrativa relevantes de nossos tempos, o real e o virtual. E é nesta onda que o Irã quer surfar; portanto, para além dos acontecimentos reais, o regime de Teerã se alinha aos russos na expectativa de obter também apoios internacionais a partir desta visão de disputa de discurso polarizada; no melhor cenário para o governo, os iranianos estariam atuando ao lado dos que se opõem aos projetos de expansão da OTAN, como interpretação mais óbvia, e, numa visão posterior, como artífice da luta mais ampla contra o projeto "imperial" norte-americano, europeu e, por fim, ocidental.

Quanto mais essa narrativa se cristalizar, melhor para o regime iraniano. No entanto, o governo do Irã não contava com as manifestações internas, com a luz que elas iriam receber no Ocidente e até mesmo com a grande atenção que a própria Copa do Mundo realizada no Catar - aliado e vizinho iraniano e primeiro país do Oriente Médio a sediar o evento - lançaria sobre a repressão violenta de Teerã às mulheres, em especial.

A ideia de um grupo de países não alinhados, muito popular no século 20, ganhou novas camadas justamente a partir de elementos incontroláveis presentes neste mundo hiperconectado das redes sociais. E esses são elementos que o regime controla internamente, mas não nos demais países. No próximo texto, farei um histórico breve sobre alguns conceitos envolvendo a ideia de não alinhamento e sobre como este conceito pode não fazer mais sentido nos dias de hoje, mesmo num momento de polarização extrema.