Irã e Arábia Saudita se reaproximam e assim nasce um novo Oriente Médio
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Irã e Arábia Saudita se reaproximam e assim nasce um novo Oriente Médio

A retomada das relações diplomáticas e da cooperação de segurança entre Irã e Arábia Saudita é o tipo de evento que altera a geopolítica do Oriente Médio. Em especial porque as fidelidades, desconfianças, conflitos e rivalidades estavam até a...

Henry Galsky
6 min
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A retomada das relações diplomáticas e da cooperação de segurança entre Irã e Arábia Saudita é o tipo de evento que altera a geopolítica do Oriente Médio. Em especial porque as fidelidades, desconfianças, conflitos e rivalidades estavam até agora baseadas na divisão regional entre dois eixos: o bloco sunita, formado basicamente pelas monarquias do Golfo cada vez mais próximas a Israel; e o eixo xiita de Irã e seus aliados não-estatais Hezbollah e as inúmeras milícias que operam na região, inclusive os Houthis que encabeçam a mortal (e invisível ao Ocidente) luta contra a Arábia Saudita no Iêmen - além da Jihad Islâmica Palestina (PIJ, em inglês) armada e financiada pelos iranianos na Faixa de Gaza.

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Como se vê, há muitos elementos em torno da reaproximação entre as lideranças desses dois eixos. Assim como há inúmeras perguntas que não sabemos nem quando, nem se serão respondidas; qual será o destino dessa divisão? Qual será o destino dos Acordos de Abraão, por meio dos quais Israel, Bahrein, Emirados Árabes Unidos e posteriormente o Marrocos estabeleceram (ou restabeleceram, no caso do Marrocos) relações diplomáticas? Havia a expectativa real de que a própria Arábia Saudita se juntasse ao grupo de maneira formal, o que cristalizaria e possivelmente tornaria ainda mais poderoso este eixo de oposição ao projeto hegemônico que os iranianos buscam no Oriente Médio.

A reaproximação entre sauditas e iranianos (mediada pela China) é um gigantesco revés de expectativas. E aqui Israel torna-se ainda mais vulnerável na região porque precisa, antes de mais nada, entender quais serão as consequências deste novo alinhamento de forças. A frente de contenção ao Irã que os israelenses imaginavam estar completa pode ter ruído de vez. Por mais que os sauditas não tivessem embarcado de cabeça nos Acordos de Abrãao, Israel e o governo do reino já estabeleciam contatos - inclusive os aviões comerciais que partem de Tel Aviv obtiveram autorização de sobrevoar o território saudita desde agosto do ano passado para outros destinos além de Bahrein e Emirados Árabes Unidos (os sauditas já haviam autorizado sobrevoo para esses dois países a partir da assinatura dos acordos, em 2020).

Um aspecto fundamental para a retomada das relações entre Irã e Arábia Saudita é o foco iraniano em seu programa nuclear. Tema permanente da agenda internacional e das preocupações existenciais por parte de Israel e também das monarquias do Golfo, o projeto do Irã atingiu um ponto de preocupação máxima em virtude do impasse nas negociações para um novo acordo e também por Teerã ter atingido a marca de 83,7% de enriquecimento de urânio.

Próximos a alcançarem capacidade nuclear e armas atômicas, os iranianos sabem que Israel pressiona os EUA para manter a promessa de que "todas as possibilidades estão sobre a mesa", uma mensagem de aviso sobre o potencial de impedir o prosseguimento das aspirações nucleares iranianas por meios militares. Igualmente aliada dos EUA, a Arábia Saudita se torna para o Irã uma espécie de "garantia", ou seja, um alívio no rol de problemas militares do país. Mencionei a guerra do Iêmen mais acima. Importante sempre lembrar que o conflito é também o que se chama de "guerra por procuração" entre sauditas e iranianos. A reaproximação com os sauditas pode ser compreendida como a desmontagem de uma "bomba" armada contra si, sob o ponto de vista do Irã. E, além disso, atinge em cheio um ponto fundamental que unia israelenses e sauditas. Ainda há muito o que ser compreendido em relação às repercussões sobre as conexões entre as monarquias do Golfo e Israel.

Benjamin Netanyahu, que enfrenta um grande movimento de oposição popular interna, fica ainda mais fragilizado na arena internacional. Netanyahu se orgulha dos Acordos de Abraão como o resultado palpável de uma visão partircular sobre Relações Internacionais, o que ele chama de "paz entre os fortes". Na prática, os acordos serviram até aqui para Bibi se orgulhar de atingir objetivos estratégicos de normalização regional sem necessariamente abordar a questão palestina, ou seja, sem se debruçar sobre novas tentativas de paz com os palestinos ou fazer qualquer concessão (o que é absolutamente parte inerente de processos de negociação, evidentemente). Não se sabe neste momento qual será o destino dos Acordos de Abraão, mas já se sabe que os sauditas não entrarão neste barco. A retomada de relações plenas entre sauditas e iranianos é mais uma derrota para Netanyahu no pior momento de sua carreira política.

Por fim, os EUA experimentam uma sensação de ambiguidade. A China mediou o acordo. Antes, prometia que seus interesses no Oriente Médio seriam apenas econômicos. Bom, os fatos falam por si. O distanciamento norte-americano do Oriente Médio não pode ser atribuído apenas a Joe Biden. Seus dois antecessores - Donald Trump e Barack Obama - se afastaram da região por motivos distintos. Obama durante a Primavera Árabe, em especial quando optou por não se envolver na Guerra Civil Síria, mesmo depois que o ditador Bashar al-Assad cruzou todas as "linhas vermelhas" (termo usado por Obama na época para se referir aos ataques com armamento químico contra a própria população civil síria). Trump fez o serviço que os interessados na exclusão norte-americana do Oriente Médio imaginavam que faria mesmo; nunca foi visto como alguém capaz de ser um mediador equilibrado dos conflitos regionais.

No entanto, o lado positivo tem a ver com a ideia de que, por ora, um ataque ao programa nuclear iraniano pode estar descartado pelas circunstâncias de momento. Netanyahu está isolado da comunidade internacional enquanto insistir em seu projeto de reforma do Judiciário; os sauditas são aliados próximos aos EUA e, neste momento, vão buscar tranquilizar seus parceiros no Golfo sobre as ambições iranianas, imagino. Tudo isso quer dizer também que, aparentemente, os israelenses estão sozinhos nessa, até porque esta reaproximação certamente valeu aos sauditas inúmeras garantias quanto 1) a própria segurança e 2) a certeza de que os iranianos não deverão ameaçar os regimes ditatoriais das demais monarquias. O acordo entre sauditas e iranianos, portanto, retira da mesa o argumento de ameaça existencial que unia o eixo sunita a Israel em sua abordagem ao Irã. Este item do cardápio ("ameaça existencial") permanece válido apenas a Israel que, a partir de agora, terá de se virar por conta própria neste novo Oriente Médio.