capítulo nove.
capítulo nove. |
MUITO ALÉM DA FELICIDADE E DA INFELICIDADE EXISTE A PAZ. |
O bem supremo além do bem e do mal. |
Existe diferença entre felicidade e paz interior? |
Existe. A felicidade depende de circunstâncias consideradas positivas, ao passo que a |
paz interior não precisa delas. |
Há possibilidade de só atrairmos coisas positivas para as nossas vidas? Se a nossa atitude e o nosso |
pensamento forem sempre positivos, só haverá situações e acontecimentos positivos, não é mesmo? |
Você pode afirmar, com certeza, o que é positivo e o que é negativo? Já fez o |
levantamento completo? Muitas pessoas devem ter aprendido bastante com as suas |
próprias limitações, seus fracassos, suas perdas, suas doenças e sofrimentos. Tudo isso |
ensinou-as a se desfazer das imagens falsas que tinham de si mesmas, dos desejos e |
objetivos superficiais ditados pelo ego e lhes deu profundidade, humildade e compaixão. |
Fez delas pessoas mais reais. |
Sempre que acontece alguma coisa negativa, há sempre uma lição embutida, embora |
nem sempre se perceba isso na hora. Uma doença ou um acidente pode mostrar o que há |
de real ou irreal em uma situação, aquilo que é importante e o que não é. |
De uma perspectiva mais elevada, as circunstâncias são sempre positivas. Para ser mais |
preciso, elas não são positivas nem negativas. São do jeito que são. E quando aceitamos as |
coisas como são, o “bem” ou o “mal” deixam de existir em nossas vidas. Só o que existe é |
um bem supremo, que inclui o “mal”. Mas, pela perspectiva da mente, existe o bem e o |
mal, o igual e o diferente, o amor e o ódio. É por isso que no Livro do Gênesis está escrito |
que Adão e Eva não tiveram mais permissão para habitar o “paraíso” quando “comeram da |
árvore do conhecimento do bem e do mal”. |
Isso me parece negação e ilusão. Quando alguma coisa ruim acontece comigo, ou com alguém chegado |
a mim, tal como um acidente, uma doença, ou a morte, posso até fingir que não é mal mas permanece o fato |
de que isso é mal. Por que negar? |
Você não está fingindo nada. Só está permitindo uma coisa ser como é, apenas isso. |
Essa “permissão para ser” nos transporta para além da mente, com os seus padrões de |
resistência que geram as polaridades positiva e negativa. É um aspecto fundamental do |
perdão. Perdoar o presente é até mais importante do que perdoar o passado. Se |
perdoarmos cada momento, se permitirmos que ele seja como é, não haverá nenhum |
acúmulo de ressentimento a ser perdoado mais tarde. |
Lembre-se de que não estamos aqui tratando de felicidade. Por exemplo, quando a |
pessoa amada acabou de morrer, ou se sentimos a nossa própria morte se aproximar, não |
podemos nos sentir felizes. É impossível. Mas podemos estar em paz. Pode até haver tristeza |
e lágrimas, mas, se deixarmos de resistir, conseguiremos perceber uma profunda serenidade |
por baixo da tristeza, uma calma, uma presença sagrada. Isso é a emanação do Ser, isso é a |
paz interior, o bem que não tem opositores. |
E se for uma situação sobre a qual eu possa fazer algo a respeito? Como posso permitir que ela |
exista e mudá-la ao mesmo tempo? |
Faça o que você tem de fazer. Enquanto isso, aceite o que é. Como mente e resistência |
significam a mesma coisa para nós, aceitar aquilo que acontece nos liberta na mesma hora |
do domínio da mente e restabelece a nossa conexão com o Ser. Como resultado, as |
costumeiras motivações do ego para “agir”, como o medo, a cobiça, o controle, a defesa ou |
a alimentação do falso sentido do ego, não vão mais funcionar. Uma inteligência muito |
maior do que a mente passa a dominar tudo e, com isso, uma diferente qualidade de |
consciência vai influenciar as nossas ações. |
“Aceite o que quer que venha para você nas tramas do destino, pois o que se ajustaria |
mais adequadamente às suas necessidades?” Isso foi escrito há dois mil anos por Marco |
Aurélio, um homem extraordinário que, além de poderoso, tinha uma grande sabedoria. |
Parece que a maioria das pessoas precisa vivenciar uma grande carga de sofrimento |
antes de abandonar a resistência e aceitar, isto é, antes de perdoar. Com o perdão, acontece |
o milagre do despertar da consciência do Ser, através do que aparenta ser o mal: a |
transformação do sofrimento em paz interior. Todo o mal e todo o sofrimento do mundo |
vão nos forçar a descobrir quem somos realmente. Assim, aquilo que, de uma perspectiva |
limitada, percebemos como o mal é, na verdade, parte de um bem maior que não tem |
opositores. Entretanto, isso só se torna uma verdade através do perdão. Sem ele, o mal |
permanece como mal. |
Através do perdão – que significa reconhecer a falta de consistência do passado e |
permitir que o momento presente seja como é –, acontece o milagre da transformação, não |
só no lado de dentro, mas também do lado de fora. Um espaço silencioso de uma presença |
intensa surge dentro de nós e à nossa volta. Quem quer e o que for que penetre no campo |
da consciência será afetado, algumas vezes de forma clara e imediata, outras em níveis mais |
profundos, com mudanças só notadas algum tempo depois. Você dissolve a discórdia, cura |
o sofrimento, desfaz a inconsciência, sem fazer nada, simplesmente sendo e sustentando essa |
freqüência de presença intensa. |
O fim dos dramas em sua vida |
Nesse estado de aceitação e paz interior, pode aparecer alguma coisa na vida para ser chamada de |
“má”, da perspectiva da consciência comum? |
Muitas das assim chamadas coisas más que nos acontecem na vida são devidas à |
inconsciência. Elas são criadas por nós, ou melhor, são criadas pelo ego. Refiro-me a isso, |
às vezes, como “drama”. Quando restabelecemos a conexão com o Ser e não deixamos |
mais a mente governar, paramos de criar essas coisas. |
Mas há muitas pessoas que se apaixonam pelos seus dramas particulares de vida. |
Identificam-se com suas histórias. O ego governa a vida delas. Investiram nele todo o |
sentido de eu interior. Até mesmo a busca de uma resposta, de uma solução, ou de uma |
cura se torna parte dele. O que mais temem é que seus dramas tenham um fim. Enquanto |
essas pessoas forem a mente, seu maior medo será o próprio despertar. |
Quando vivemos em uma completa aceitação do que é, todos os dramas da nossa vida |
chegam ao fim. Ninguém consegue ter a mais leve discussão conosco, não importa quanto |
tente. Não se pode discutir com alguém completamente consciente. Uma discussão implica |
uma identificação com a mente e uma determinada posição mental, tal como resistência e |
reação às posições da outra pessoa. O resultado é que as polaridades opostas ficam |
mutuamente energizadas. Esses são os mecanismos da inconsciência. Ainda podemos |
estabelecer o nosso ponto de vista de modo claro e firme, mas não haverá nenhuma força |
reagindo ao fundo, nenhuma defesa e nenhuma agressão. Assim, não se transformará em |
um drama. Quando estamos completamente conscientes, deixamos de estar em conflito. |
“Ninguém que esteja em unidade consigo mesmo consegue pensar em conflito”, diz o livro |
A Course in Miracles (Um curso em milagres). O livro se refere não só ao conflito com |
outras pessoas, mas, fundamentalmente, ao conflito dentro de nós, que deixa de existir |
quando não há mais nenhum desacordo entre as buscas e expectativas da nossa mente e |
aquilo que é. |
A impermanência e os ciclos da vida |
Enquanto permanecermos na dimensão física e em conexão com a psique humana |
coletiva, o sofrimento, embora raro, ainda pode acontecer. Não devemos confundi-lo com |
o sofrimento emocional. Todo sofrimento é criado pelo ego e fruto de uma resistência. |
Além disso, nessa dimensão, ainda nos sujeitamos à natureza cíclica e à lei da |
impermanência de todas as coisas, mas já não vemos mais o sofrimento como uma coisa |
“má”. Ele simplesmente é. |
Ao permitir o “existir” de todas as coisas, uma dimensão mais profunda, por baixo do |
jogo dos opostos, se revela para nós como uma presença permanente, uma serenidade |
profunda e estável, uma alegria sem motivos que se situa além do bem e do mal. Essa é a |
alegria do Ser, a paz de Deus. |
No nível da forma existe nascimento e morte, criação e destruição, crescimento e |
dissolução de espécies aparentemente independentes. Podemos ver isso em tudo: no ciclo |
da vida de uma estrela ou de um planeta, em um corpo físico, em uma árvore, em uma flor; |
na ascensão e queda de nações, de sistemas políticos e de civilizações, e também nos |
inevitáveis ciclos de lucros e perdas que temos na vida. |
Existem ciclos de sucesso, como quando as coisas acontecem e dão certo, e ciclos de |
fracasso, quando elas não vão bem e se desintegram. Você tem de permitir que elas |
terminem, dando espaço para que coisas novas aconteçam ou se transformem. Se nos |
apegamos às situações e oferecemos uma resistência nesse estágio, significa que estamos |
nos recusando a acompanhar o fluxo da vida e que vamos sofrer. |
Não é verdade que o ciclo ascendente seja bom e o ciclo descendente seja ruim, a não |
ser no julgamento da mente. O crescimento é, em geral, considerado positivo, mas nada |
pode crescer para sempre. Se o crescimento nunca tivesse fim, poderia acabar em algo |
monstruoso e destrutivo. É necessário que as coisas acabem, para que coisas novas |
aconteçam. |
O ciclo descendente é absolutamente essencial para uma realização espiritual. Você |
tem de ter falhado gravemente de algum modo, ou passado por alguma perda profunda, ou |
algum sofrimento, para ser conduzido à dimensão espiritual. Ou talvez o seu sucesso tenha |
se tornado vazio e sem sentido e se transformado em fracasso. O fracasso está sempre |
embutido no sucesso, assim como o sucesso está sempre encoberto pelo fracasso. No |
mundo da forma, todas as pessoas “fracassam” mais cedo ou mais tarde, e toda conquista |
acaba em derrota. Todas as formas são impermanentes. |
Você pode ser ativo e apreciar a criação de novas formas e circunstâncias, mas não se |
sentirá identificado com elas. Você não precisa delas para obter um sentido de eu interior. |
Elas não são a sua vida, pertencem à sua situação de vida. |
Nossa energia física também está sujeita a ciclos. Não consegue estar sempre no |
máximo. Teremos momentos de baixa e de alta energia. Em alguns períodos, estaremos |
altamente ativos e criativos, mas em outros tudo vai parecer estagnado, teremos a |
impressão de não estarmos indo a lugar nenhum, nem conseguindo nada. Um ciclo pode |
durar de algumas horas a alguns anos e dentro dele pode haver ciclos longos ou curtos. |
Muitas doenças são provocadas pela luta contra os ciclos de baixa energia, que são |
fundamentais para uma renovação. Enquanto estivermos identificados com a mente, não |
poderemos evitar a compulsão de fazer coisas e a tendência para extrair o nosso valor de |
fatores externos, tais como as conquistas que alcançamos. Isso torna difícil ou impossível |
para nós aceitarmos os ciclos de baixa e permitirmos que eles aconteçam. Assim, a |
inteligência do organismo pode assumir o controle, como uma medida autoprotetora, e |
criar uma doença com o objetivo de nos forçar a parar, de modo a permitir que uma |
necessária renovação possa acontecer. |
A natureza cíclica do universo está intimamente ligada à impermanência de todas as |
coisas e situações. Buda fez disso uma parte central de seu ensinamento. Todas as |
circunstâncias são altamente instáveis e estão em um fluxo constante, ou, como ele |
colocou, a impermanência é uma característica de cada circunstância, de cada situação com |
que vamos nos deparar na vida. Elas vão se modificar, desaparecer, ou deixar de |
proporcionar prazer. A impermanência também é um ponto central dos ensinamentos de |
Jesus: “Não acumule tesouros na terra, onde as traças e a ferrugem arruínam tudo, onde os |
ladrões arrombam as paredes para roubar...” |
Enquanto a mente julgar uma circunstância “boa”, seja um relacionamento, uma |
propriedade, um papel social, um lugar, ou o nosso corpo físico, ela se apega e se identifica |
com ela. Isso faz você se sentir bem em relação a si mesmo e pode se tornar parte de quem |
você é ou pensa que é. Mas nada dura muito nessa dimensão, onde as traças e a ferrugem |
devoram tudo. Tudo acaba ou se transforma: a mesma condição que era boa no passado, |
de repente, se torna ruim. A prosperidade de hoje se torna o consumismo vazio de amanhã. |
O casamento feliz e a lua-de-mel se transformam no divórcio infeliz ou em uma |
convivência infeliz. A mente não consegue aceitar quando uma situação com a qual ela |
tenha se apegado muda ou desaparece. Ela vai resistir à mudança. É quase como se um |
membro estivesse sendo arrancado do seu corpo. |
Às vezes ouvimos falar de pessoas que cometeram suicídio porque perderam a |
fortuna ou tiveram sua reputação arruinada. Esses são casos extremos. Outras pessoas, ao |
sofrer uma grande perda, tornam-se profundamente infelizes ou adoecem. Não conseguem |
distinguir a vida da situação de vida. Li recentemente sobre uma famosa atriz que morreu |
depois dos oitenta anos e foi ficando cada vez mais infeliz e reclusa conforme envelhecia. |
Ela estava identificada com uma circunstância: a sua aparência externa. No início, isso lhe |
deu um sentido feliz do eu interior, depois um sentido infeliz. Se tivesse sido capaz de se |
conectar com a vida interior, que é dissociada da forma e do tempo, ela poderia ter aceitado |
o desaparecimento da beleza, observando-a de um lugar de serenidade e paz. Além do |
mais, sua aparência teria se tornado cada vez mais transparente à luz que brilha através da |
verdadeira natureza, de modo que a beleza externa não teria sumido, mas se transformado |
em beleza espiritual. Porém, ninguém contou a ela que isso era possível. O tipo de |
conhecimento mais básico ainda não está ao alcance de todos. |
Buda ensinou que até mesmo a felicidade pessoal é dukka – uma palavra da língua páli |
que significa “sofrimento” ou “insatisfação”. Ela é inseparável do seu oposto. Significa que |
a felicidade e a infelicidade são, na verdade, uma coisa só. Somente a ilusão do tempo as |
separa. |
Isso não significa uma negatividade. É simplesmente reconhecer a natureza das coisas, |
para não viver atrás de uma ilusão pelo resto da vida. Nem quer dizer que você não deva |
mais apreciar os objetos e as circunstâncias agradáveis e bonitas. Porém, usá-los para |
procurar aquilo que não podem dar – uma identidade, um sentido de permanência e |
satisfação – é uma receita para a frustração e o sofrimento. Toda a indústria da propaganda |
e a sociedade de consumo entrariam em colapso se as pessoas se tornassem iluminadas e |
deixassem de tentar encontrar as suas identidades através dos objetos. Quanto mais usarmos |
esse caminho para encontrar a felicidade, mais estaremos nos iludindo. Nada lá fora vai |
conseguir nos trazer satisfação, exceto por um tempo e de modo superficial. Mas talvez |
você precise passar por muitas decepções antes de perceber a verdade. Os objetos e as |
circunstâncias podem lhe dar prazer, mas também vão lhe trazer sofrimento. Eles podem |
lhe dar prazer, mas não trazer alegria. A alegria não tem uma causa e brota dentro de nós |
como a alegria do Ser. É uma parte essencial do estado de paz interior, conhecido como a |
paz de Deus. É o nosso estado natural, não algo por que tenhamos de lutar para conseguir. |
As pessoas, em geral, não percebem que a “salvação” não está em nada do que façam, |
possuam ou consigam. Aquelas que percebem ficam, muitas vezes, enfastiadas do mundo e |
deprimidas. Se nada pode lhes dar um verdadeiro prazer, será que resta alguma coisa por |
que se empenhar? Com que objetivo? O profeta do Velho Testamento deve ter chegado a |
essa conclusão quando escreveu: “Tenho visto tudo o que se faz debaixo do sol e eis que |
tudo é vaidade e uma luta contra o vento”. Quando você chega a esse ponto, está a um |
passo do desespero e um passo mais longe da iluminação. |
Uma vez um monge budista me disse: “Tudo o que aprendi nos vinte anos em que |
sou monge pode ser resumido em uma frase: Tudo o que surge, desaparece. Isso eu sei”. O que |
ele quis dizer foi o seguinte: aprendi a não oferecer qualquer resistência ao que é; aprendi a |
permitir que o momento presente aconteça e a aceitar a natureza impermanente de todas as |
coisas e circunstâncias. Foi assim que encontrei a paz. |
Não oferecer resistência à vida é estar em estado de graça, de descanso e de luz. Nesse |
estado, nada depende de as coisas serem boas ou ruins. É quase paradoxal, mas, como já |
não existe mais uma dependência interior quanto à forma, as circunstâncias gerais da sua |
vida, as formas externas, tendem a melhorar consideravelmente. As coisas, as pessoas ou as |
circunstâncias que você desejava para a sua felicidade vêm agora até você sem qualquer |
esforço, e você está livre para apreciá-las enquanto durarem. Todas essas coisas |
naturalmente vão acabar, os ciclos virão e irão, mas com o desaparecimento da |
dependência não há mais medo de perdas. A vida flui com facilidade. |
A felicidade que provém de alguma coisa secundária nunca é muito profunda. É |
apenas um pálido reflexo da alegria do Ser, da paz vibrante que encontramos dentro de nós |
ao entrarmos no estado de não-resistência. O Ser nos transporta para além das polaridades |
opostas da mente e nos liberta da dependência da forma. Mesmo que tudo em volta desabe |
e fique em pedaços, você ainda sentirá uma profunda paz interior. Você pode não estar |
feliz, mas vai estar em paz. |