Witzel: Flávio Bolsonaro e o perigo nos hospitais federais
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Witzel: Flávio Bolsonaro e o perigo nos hospitais federais

Resumo: desde que Witzel abriu a boca na CPI sobre a influência na gestão de seis hospitais e nove institutos - todos federais - no Rio de Janeiro, a temperatura nos bastidores sobe. E os senadores sabem por que.

Salete Rossini
9 min
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Resumo: desde que Witzel abriu a boca na CPI sobre a influência na gestão de seis hospitais e nove institutos - todos federais - no Rio de Janeiro, a temperatura nos bastidores sobe. E os senadores sabem por que.

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        Rio de Janeiro, 2020-21: entre os hospitais federais do Rio de Janeiro, o Hospital Federal de Bonsucesso é eleito uma referência no atendimento de pacientes com C19, quando a pandemia deu seu primeiro boom no Brasil. A partir daí, ele seria palco de importantes notícias, algumas das quais extensivas a outras unidades. Como a suspeita do sinistro método "escolha de Sofia", pelo qual, devido ao grande número de doentes, se selecionaria quem deveria viver - então, os mais jovens e sem comorbidades. Uma série de conflitos entre a direção e alguns servidores. Em paralelo aconteceu um importante incêndio , que decorreu em danos e perdas materiais e de vidas. E, finalmente, com o setor de emergência chegando a ser fechado, os fatos supramencionados seriam “esquecidos” pelos meios de comunicação, que sequer os relembrariam para concatenar com o presente. Uma operação abafa.

        Brasília, 2021. após o sinistro recorde pela C19 em março, redundando em quase 100 mil mortes notificadas, começa no final de abril a CPI da C19, já prometendo calores altos e forte audiência a partir do depoimento do ex-MS Henrique Mandetta, que expôs a público a má conduta do governo Bolsonaro em retaliação às regras de segurança da OMS. Quando o ex-governador do RJ Wilson Witzel compareceu por vontade própria para depor, o calor da CPI teve seu primeiro pico: ele expôs para a cúpula e para a tribuna a influência do senador Flávio Bolsonaro (Patriotas-RJ) na gestão dos seis hospitais e três institutos federais, redundando em intenso tumulto quase incontornável. Novos picos desse calor reapareceriam em depoimentos posteriores, com direito a sexismo e homofobia, rebatidos com discursos bastante civilizatórios e históricos. Mas, o depoimento de Witzel, com o complemento do da advogada dos ex-médicos da Prevent Sênior Bruna Morato, seria decisivo para os novos e definitivos rumos investigativos da CPI.

        OSs nos hospitais federais- Para se ter uma ideia do quão explosivo foi o depoimento de Witzel, foi preciso continuá-lo no privado, em diligência, pela qual senadores na tribuna não podem participar. E foi lá que o ex-governador apontou Flávio de atuar como “dono” dos hospitais federais, não só indicando direções, como emitindo ordens diretamente de Brasília às direções, e os fornecedores de materiais e medicamentos, bem como a autorização para servidores de organizações sociais (OSs) para atuar nessas unidades. Ou seja, um claro tráfico de influência em larga escala. Em todos esses casos estão envolvidas pessoas ligadas a Flávio.

        O depoimento detalhado de Witzel, que teve que solicitar proteção a si e sua família, fez com que a cúpula da CPI decidisse pela quebra de sigilos bancário e fiscal de sete OSs criadas pelo governo de Witzel, uma vez que as mesmas têm sido partícipes dos esquemas de recursos no Estado, e que o seu impeachment teria sido financiado por uma máfia da saúde local, por trás da qual está uma milícia – e daí, correr risco de vida, como o próprio declarou.

        Entre as OSs envolvidas no depoimento, se destaca a Associação Filantrópica Nova Esperança, cuja a receita saltou de R$ 337,3 mil para R$ 17 milhões no período 2018-19, ou seja, aumento de 50 vezes em prazo tão curto. E, entre 2019-20, de R$ 17 milhões para R$ 249 milhões. Além desses aumentos tão estranhos, as movimentações financeiras envolveram grandes quantias em espécie, ou seja, dinheiro vivo, conforme analistas dos documentos - o que a referida OS nega em sua nota oficial. É nesse crescimento da suspeita que reside a acusação de desvio pelo ex-governador.

        Quanto às empresas fornecedoras de equipamentos hospitalares, há também menção de ligações de seus representantes com Flávio Bolsonaro. A Malugue Comércio Ltda., empreendimento localizado no bairro da Saúde, no Rio de Janeiro, pertence a Stelvio Bruni Rosi, advogado e empresário. Stelvio tem outros empreendimentos, entre eles uma pousada em Itacaré, litoral baiano. Foi dessa pousada que ele teria enviado um e-mail para o senador, solicitando que houvesse reunião com o MS e com representantes do laboratório estadunidense Vaxxinity, produtor da vacina idem. Apesar das suspeitas de desvio, não houve menção de quantias envolvidas que pudessem gerar suspeitas de superfaturamento ou outra irregularidade.

        Detalhe: a vacina estadunidense ainda está em fase de testes, sem, autorização da OMS para uso emergencial. Quando a informação vazou na imprensa, Stelvio, procurado, disse "ter-se expressado mal" no e-mail, em esforço para tirar Flávio da reta. Também procurado, Elcemar Almeida, que nas redes sociais se apresenta como presidente da Vaxxinity no Brasil, negou ter feito qualquer contato com Stelvio e Flávio. Não foram encontradas fontes que detalhassem quantias envolvidas para a compra dessa vacina, nem indícios de conclusão do negócio.

        Iniciativa privada- a intenção que move a intenção da decisão tomada pela cúpula da CPI da C19 em investigar essa provável interferência de Flávio Bolsonaro nas nove instituições federais no Rio de Janeiro reside na ideia de que o filho do presidente supostamente tenha a intenção de efetuar entrega paulatina, por via irregular, dessas instituições para a iniciativa privada. Se evidenciada, a suspeita de irregularidade se desdobraria de dois modos: a ausência de licitação para sorteio da terceirizada a gerir as unidades hospitalares; e o propósito dessa terceirizada (uma das OSs dita como de caráter filantrópico ligada ao senador) agir por trás no desvio de mais volumes de recursos públicos. Mas, vale ressaltar que, a despeito das evidências materiais, os fatos são considerados pelos senadores e órgãos investigativos como indícios, justamente por carecerem, ainda, de investigação.

        A privatização na área de saúde é um sonho político pelo menos desde a era Collor. Muitos servidores antigos estimaram que a Lei 8080/1990 nunca foi seguida em sua integralidade - uma verdade infeliz -, pois sempre sofreu subinvestimento e, agora, é sistematicamente desinvestido, abrindo portas para a criação de OS, terceirizadas de capital público e direito privado que empregam (muito mal) profissionais de saúde, substituindo os urgentemente necessários concursos públicos (o último grande concurso com garantia de estabilidade ocorreu em 2005, seguido de um para cargos específicos em 2010).

        Quando a Constituição de 1988 tornou pétrea a saúde pública como direito popular e dever estatal, o sonho do SUS privatizado nasceu difícil de ser realizado. Mas, com o subinvestimento cada vez mais profundo ao ponto do desinvestimento da era atual, e com a aplicação de Lei específica para contratados temporários da União (CTUs) em casos de calamidade pública, portas para terceirizações indiscriminadas e outras irregularidades foram abertas, ao ponto de vermos terceirizados na direção de grandes instituições da Administração Pública direta e indireta, com substituição crescente de servidores por CTUs e terceirizados em vez de concursados. A senha para a interferência posterior da elite econômica e política.

        Com os Bolsonaro no poder, essas portas antes entreabertas foram escancaradas aos olhos dos espectadores desavisados. Mas, foi somente com o desenrolar de revelações na CPI que podemos ver com mais clareza os detalhes sórdidos com que, em nome da família do presidente, ou de quaisquer nomes da elite econômica, crimes contra o erário público como um todo têm acontecido.

        As práticas nazistas com pacientes da Prevent Sênior (também a Hapvida e, quiçá, outras operadoras das quais nem sabemos ainda), reveladas pela advogada Bruna Morato e alguns ex-médicos na CPI, em nome de uma ideologia torpe que se voltou contra a vida e a dignidade de pacientes e familiares, nos leva a inferir sobre as possibilidades de a interferência de Flávio Bolsonaro nas nove unidades federais no Rio se mover na intenção de estender esses métodos escabrosos nelas e, em seguida, pelas demais unidades do SUS, no sentido de padronização. E tudo gerido não por servidores públicos, mas pela iniciativa privada, seja esta OS ou operadora de plano de saúde, que lucraria muito mais às custas do SUS, da dignidade pública e de vidas humanas.

Reflexões finais

        As revelações de Witzel não amenizaram o seu início político aliado aos Bolsonaro, nem a sua inclinação para a privatização dos serviços na saúde pública através das terceirizações em massa, que resultaram na criação de sete OSs. Por isso mesmo, não está inocentado. Mas, por outro lado, o seu impeachment serviu ao menos para refletir sobre os perigos da aliança com uma família cujas ligações com gente muito suspeita dão margem para a queda de aliados, pois estes são vistos pelo Bolsonaro pai como potenciais adversários ao menor passo em falso.

        Por outro lado, é inegável que seu depoimento se mostrou assaz útil para que aqueles servidores que votaram em Bolsonaro por antipetismo ou por infrutífera crença em mudança a partir da moralização da política pudessem repensar seus conceitos e aceitar a sua mea culpa pelo status deteriorado a que a saúde pública chegou, obrigando os servidores da área a um esforço hercúleo e traumático para salvar tantas vidas na pandemia.

Embora a referência à série de infortúnios passada pelos hospitais federais do RJ, como as citadas no de Bonsucesso, não tenha sido falada publicamente por Witzel, a decisão de investigação pela cúpula da CPI, se levada a cabo sem ser impedida por tentativas de impedimento que certamente ocorrerão, poderá elucidar os fatores para muitos desses fatos, e até descobrir novos e escabrosos fatos não revelados no tempo útil da Comissão. Como, quiçá, alguns indícios de projeto de extensão privatista para padronizar o atendimento em C19 à la Prevent Sênior nas unidades federais. É meter a cabeça, e nós torcermos para que renda frutos. Pois Witzel, por pior que tenha sido como político, como testemunha abriu caminhos para a dissolução de uma ideologia de morte do povo a partir da pulverização do Estado. 

REFERÊNCIAS

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2021/07/receita-de-organizacao-de-saude-que-witzel-acusou-na-cpi-saltou-cinquenta-vezes-em-um-ano.shtml

https://www.istoedinheiro.com.br/flavio-bolsonaro-participou-de-negociacao-suspeita-para-compra-de-vacina/

https://oglobo.globo.com/politica/cpi-da-covid-cria-nucleo-para-investigar-hospitais-federais-do-rio-conexao-com-flavio-bolsonaro-25112247 (via Ouline)

https://brasil.elpais.com/brasil/2021-09-23/prevent-senior-em-busca-do-macabro-milagre-da-cura-pela-cloroquina-que-alimentou-bolsonaro.html

https://www.cartacapital.com.br/politica/cpi-restringe-acesso-a-documentos-sigilosos-e-neutraliza-acao-de-flavio-bolsonaro/