Dona Carula e Bastião
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Dona Carula e Bastião

Uiliam da Silva Grizafis
8 min
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Por um instante esquecemos de dona Carula, a velha foi à Santa Catarina para visitar o filho e os netos, chegou no outro dia pela manhã bem cedinho. Carula viajava uma vez por ano para visitar a família e até hoje não entendemos como conseguia viajar pois, junto com sua bagagem, levava uma televisão, um radinho que quando tocava as músicas se acendiam várias luzinhas que piscavam ao ritmo do som, e o litro de cachaça. Não entendíamos como Carula conseguia pegar os ônibus nessa situação, mas chegava, ela sempre chegava sã e salva. Como ela foi criada na roça, amava pegar a enxada e capinar o quintal da casa, o terreno não era tão pequeno, mas era seu passatempo. Gerard amava quando ela preparava as coxinhas e Jaurício sempre aguardava que ela trouxesse uma farinha especial que ele amava comer. Com essa farinha, ela fazia virado de ovo, virado de feijão, bom, colocava a farinha em tudo. A senhora quando estava com seu filho, nora e netos cuidava muito bem da casa, não cuidava mais dos netos pois já estavam grandes, no entanto, Gerard sempre fazia perguntas sobre o seu passado. Gerard fora um jovem muito nostálgico, gostava de recordar o passado e conhecer histórias que vinham da boca de sua avó. Ela contava dos seus namorados, das festas que organizava, das travessuras dos filhos, sobre tudo que o leitor possa imaginar. Carula contava que um dia foi almoçar na casa dos pais da nora, os pais da nora gostavam de colocar um chuchu inteiro para cozinhar junto com o feijão, naquela região era normal fazerem isso, o chuchu colocava um sabor especial no feijão, quem já comeu sabe que aquilo não tem sabor nenhum, mas quando se coloca para cozinhar com o feijão traz um sabor especial. A velha, sem saber disso, pensou que o chuchu era uma carne, colocou-o inteiro em seu prato, quando percebeu que não era uma carne, ficou sumamente envergonhada, não sabia onde enfiar a cara, não daria para comer aquele pedaçote de chuchu, mas a velha o deixou de um lado e desfrutou da comida. Bastião, o pai da nora de dona Carula e avô de Gerard era homem importantíssimo na cidade, era um político conservador, na sua biblioteca, havia livros de autores conservadores como Edmund Burke[1], Michael Oakeshott[2], Russell Kirk[3], Juan Donoso Cortés[4], Visconde de Cairu[5] e vários outros. Quando não estava na câmara de vereadores ou na prefeitura gostava de ficar em casa a entonar seu violão, gostava muito de tomar cerveja além de cantar até não conseguir mais. Gerard despertou-se do sono após passar à noite no baile e foi, junto com Carula, seu pai e sua mãe à casa do vô Bastião para almoçarem todos juntos. Comeram pirão de feijão, salada de alface, arroz, bife frito e suco de goiaba e, após o almoço, Bastião pegou seu violão e encheu a mesa de cervejas e começaram a cantar. A música os alegrava e as cervejas também.

- A senhora gosta de músicas, dona Carula – pergunta Bastião.

- Pois é claro, vamos cantar!

A velha, que não desperdiçava uma chance para meter um álcool em seu estômago, estava feliz. Cantavam, bebiam e dançavam. Era tudo muito divertido, todos felizes, Carlos, que era tio de Gerard batia palmas e se alegrava junto com o público. Pais, filhos, noras, netos, todos cantando e dançando ao som do violão do seu Bastião até o momento que dona Carula interrompeu a festa. Súbito ficou de pé sobre uma cadeira e começou a proferir uma espécie de poema que ela criara ali mesmo, sem programar-se, no improviso.

- Ouçam, senhoras e senhores, jovens e crianças. Para os velhos que aqui estão, declaro que vivemos a melhor época de nossa vida, o tempo passou, quem desfrutou aproveitou, quem não desfrutou se ferrou. Nós que desfrutamos de muitos amores, danças, viagens e alegrias temos história para contar, os netos ficam ao nosso redor a nos escutar sobre aquilo que temos para contar, só quem tem histórias são aqueles que viveram, quem não viveu não tem história nenhuma para contar. Essa geração de hoje está muito sensível, já não tem cicatrizes nos joelhos, nós temos muitas – súbito levantou a saia para mostrar as cicatrizes e todos gritaram fazendo-a baixar imediatamente – mas também passamos por momentos de lutas, arre, e que lutas, fomos amados e traídos, bom não sei se fomos amados, quando envelhecemos nos tornamos um pouco céticos, não é verdade, seu Bastiãozinho? – o velho concordava e batia palmas – Trabalhamos duro para criar nossos filhos e filhas, no meu rosto, no seu rosto, nobre Bastião, estão as marcas que a vida nos deixou.

- Isso é belo, dona Carula. – Interrompeu de súbito seu Bastião com o violão ainda em suas mãos – Essas rugas são belas, há uma história, há algo para ser contado, há muitos amores, perdas e ganhos, toda nossa história se encontra nessas rugas. Se ainda estamos aqui é para recordar aquilo de bom que a vida nos deu.

- Será que devemos recordar o mal que a vida nos trouxe? – de repente Carlos interrompe.

- Podemos recordar sim, a vida não é só alegria, a vida também é tristeza, mas temos que pegar essa tristeza e transformá-la, de algum jeito, em alegria. Como? Não sei, mas temos que fazê-lo. – Todos gargalharam, mas dona Carula pediu silêncio para continuar: - e vocês, jovens, transmito-lhes o conselho de Nelson Rodrigues: “Jovens, envelheçam...” – Carula tentou imitar a voz de Nelson para dar mais emoção. A melhor fase da vida é a velhice, enxergamos o mundo de outra forma, não temos mais tantas preocupações, somos sábios, podemos dar conselhos em abundância, vocês, jovens, ainda têm muito a aprender.

Todos aplaudiram dona Carula que desceu da cadeira com ar de satisfeita. A festa continuou, o violão voltou a entoar e as vozes a soar, trouxeram mais cervejas e vinho. O dia estava lindo, o sol brilhava e trazia uma beleza extraordinária, até os pássaros que estavam nas árvores cantavam. Gerard via tudo aquilo como a mais sublime beleza. Havia o violão, vozes que cantavam, Carlos e outros tentavam dar um ritmo batendo em algumas panelas, outros dançavam, outros conversavam, tudo parecia ser uma desordem quando na verdade a união de tudo que havia revelava uma única e preciosa ordem. Súbito a festa foi interrompida quando um senhor alto, rosto fino, vestia um sobretudo preto e uma boina da mesma cor abre o portão e se aproxima da porta de entrada, a festa não fora interrompida com sua presença, mas sim todos pararam quando ele toca no ombro de Bastião. Esse senhor com ar sombrio, assim como Bastião, era um importantíssimo político da cidade. A festa parou e todos ficaram paralisados, tratava-se de um ferrenho opositor de Bastião, mas que ousara entrar em casa para falar de um assunto sério. O assunto era o seguinte: no sindicato dos trabalhadores mineiros foi encontrado um homem do partido progressista negociando uma espécie de propinas, era aquela famosa troca de favores e que Bastião tinha que imediatamente encontrar-se com essa para avisar-lhe que fora denunciado. Era a oportunidade do partido conservador derrotar de uma vez seus opositores nas próximas eleições. Já haviam entregado, como fonte primária, na principal rádio da cidade a notícia que traria um horrendo escândalo na pequena cidade. Bastião levantou-se e foi-se a banhar com o fim de sair e tentar resolver o assunto. Todos se foram, saíram um por um, cada qual à sua casa. Aquilo que parecia uma desordem, que na verdade revelava ordem foi desfeita por aquilo que deveria ser ordem, sem embargo, é uma desordem, mas era uma oportunidade única para Bastião revelar a força do seu partido e derrotar, de uma vez por todas, seus opositores.



[1] Edmund Burke (1729-1797) foi um político e escritor irlandês, um dos mais brilhantes membros do Partido dos Whigs no Parlamento Britânico e considerado o fundador do pensamento conservador ocidental.

[2] Filósofo político inglês, autor da obra “A política da fé e a Política do Ceticismo”.

[3] Autor norte-americano. Também representa em seus escritos o conservadorismo. 

[4] Juan Donoso Cortés foi um filósofo, político e diplomata espanhol. 

[5] Jose da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, foi um economista, jornalista e político brasileiro, responsável por traduzir e difundir os escritos de Edmund Burke e de outros autores do iluminismo escocês no Brasil Império.