O dia nem amanheceu e já chovia, o vento empurrava os eucaliptos que dançavam numa sincronia perfeita enquanto as gotas caiam no telhado dando ritmo à orquestra dos sapos que entoavam na lagoa. Gerard levantou-se e colocou lenha no fogão para esquentar a casa, a temperatura havia caído drasticamente. Pôs a chaleira para esquentar a água enquanto cortava as fatias de pão. Deu sete horas e dom Chico não apareceu, Gerard imaginou que a chuva o havia impedido de sair de casa, o volume da água deveria ter resultado em estrada cheia de lodo e isso impossibilitaria sua saída do campo à cidade. |
Gerard aproveitou para visitar Vitor, um amigo de infância, que ainda não havia despertado, roncava alto demais e ao lado de sua cama havia garrafas vazias de cervejas e bitucas de cigarros, Gerard imaginou tratar-se de uma ressaca de uma noite de farra. Enquanto esperava, sentou-se no sofá da sala e encontrou uma bíblia velha jogada no canto de uma estante, tomou-a e abriu no evangelho de Mateus, começou a ler e ao ver a simplicidade das letras indagava-se sobre como podia haver tantas interpretações em algo que estava muito claro. A dúvida era tamanha que até perguntou-se em voz alta: |
- Por que há tantas interpretações diferentes sobre um mesmo texto? |
No mesmo instante se assusta, escuta uma voz feminina: |
- Poder! |
Ao virar-se encontra-se com Joana, moça bela de cabelos lisos e longos, olhos castanhos e grandes, pele macia e dentes brancos, alta e delgada: |
- Poder! Eles não entendem a simplicidade das escrituras porque querem poder! |
Uma menina doce aparece de repente com uma voz altiva, demonstrando rudeza e fúria. |
- Assim como os religiosos nos tempos que Cristo esteve na terra queriam um rei que os governasse e se decepcionaram porque não foi dessa maneira, ainda esperam um rei, e enquanto o soberano não vem, eles mesmos governam. Assim como Cristo foi crucificado a quase dois mil anos, se ele viesse hoje, seria crucificado da mesma forma. |
No mesmo instante Vitor aparece na sala com os olhos inchados da ressaca, despertara-se ao ouvir a conversa do jovem Gerard com sua irmã. Ainda um pouco mareado exclama: |
- “O céu é só uma promessa, eu tenho pressa, vamos nessa direção”[1]. |
- Isso me lembra uma música, meu chapa! – Responde-lhe Gerard, no mesmo momento que se levantou para dar um abraço e desistindo no meio do caminho quando percebeu a pestilência que o corpo do seu amigo carregava. – Parece que tu não te banhas há um mês! Mas vem cá, essa frase me lembra uma música de uma banda de rock do sul do país e esse grupo parece ser um pouco Camusiano. |
- Sim – retruca Victor – essa música tocava ontem enquanto eu me perdia nos beijos de uma bela mulher. |
- Parece que tu estás aproveitando a vida! – Falou-lhe Gerard. |
- Se eu não aproveitar o que o mundo tem de melhor o que me restaria seria suicidar-me. |
Quando Victor terminou a frase, Gerard, como de relance, lembrou-se daquilo que o velho Chico lhe falava no dia anterior. “A vida seria um absurdo, um tremendo fastio se não a aproveitássemos e sugássemos o melhor que ela nos proporciona”, pensava consigo. |
- Fico a imaginar – continuou Victor bocejando e abrindo uma garrafa de café – que o suicídio é o último estágio de uma vida tediosa em que o indivíduo não soube aproveitá-la. |
- Como assim? – indagou a jovem Joana. |
- O homem não é feliz nem aqui, nem na china e tampouco na Cochinchina. – Prosseguiu Victor – O sujeito precisa ocupar sua alma com aquilo que o apraz porque senão morreria de tristeza, não conseguimos, de forma alguma, gerar felicidade sem depender de algo e foi por isso que lembrei que, a banda, de forma Camusiana, canta que o céu é só uma promessa e ela foi cantada no exato momento em que eu beijava uns doces lábios sensíveis e atraente. |
- E como se chama a moça que o fez um rapaz tão afortunado? – Perguntou-lhe Joana não contendo sua curiosidade. |
- Camila – respondeu Victor enquanto fechava os olhos tentando lembrar o desenho do seu rosto que não recordava porque na noite anterior estava embriagado – O nome dela é Camila e é uma bela moça e já marcou um encontro para hoje. |
- Então te encontrarás com ela hoje novamente? – Perguntou-lhe Gerard. |
- Sim – falou Victor – hoje à noite nos encontraremos no parque central, ao lado da taverna e se quiseres conhecê-la, poderás ir, mas por favor, não lhe conte os meus podres. |
Quando Victor terminou de falar a porta soa, eram batidas conhecidas. |
- Deve ser Walter – pensou Joana enquanto caminhava para ver quem era. |
De fato, era Walter, homem alto, louro, olhos grandes e redondos. Havia conseguido seu título de doutor em filosofia na melhor universidade do estado e naqueles dias lecionava no colégio Visconde de Taunay. |
- Bom dia, rapazes – cumprimentou alegremente ao entrar – ontem estava na festa do parque central e vi que nosso amigo Victor estava bêbado, não consegui ficar até o fim da festa e vim saber se conseguiu chegar bem em casa. |
- Cheguei bem e dormi feliz – responde Victor ao mesmo tempo em que soltou uma forte gargalhada – aliás, professor Walter, você chegou na hora certa, estamos tentando filosofar sem ser filósofos e gostaria que você tomasse assento e entrasse nessa conversa, não temos uma mesa parecida com aquelas que Platão mencionava em seus diálogos, mas temos bebida, vinho, whisky, ou se preferir, temos café, caso não queira embriagar-se conosco. |
- Eu aceito um pouco de vinho – disse-lhe ao sentar-se. |
De forma burlesca pergunta de qual tema filosófico eles tratavam, parece que havia posto aspas quando mencionou o “filosófico”. |
- Estamos discutindo sobre a felicidade: o homem é feliz ou não? Ah, e antes que o senhor comece, excelentíssimo professor, não pretendo que o senhor faça perguntas contraditórias assim como fazia Sócrates a Mênon ou a Górgias. Quero que o senhor nos dê seu parecer, seu ponto de vista: Nós somos felizes, sim ou não? |
- Tu achas que és feliz, Victor? – Pergunta na mesma hora o professor. |
- Já lhe disse que não gostaria de responder perguntas socráticas, mas essa eu vou objetar: Não sou feliz, preciso beijar os lábios de uma linda mulher para sê-lo, preciso ter dinheiro no meu bolso, preciso tomar um vinho e ter um bom charuto em mãos, necessito viajar e conhecer novas pessoas, sempre precisarei de algo para satisfazer-me. Eu, por mim mesmo, não consigo ser feliz e acho que ninguém consegue. A verdade é essa e ela é insuportável[2], ninguém a aceita, nenhuma pessoa deseja aproximar-se dela. |
- Você tem razão, e escrevi exatamente sobre isso em meu livro, então me dê outra taça de vinho porque ao ingeri-lo, consigo filosofar melhor. – Disse o professor no exato momento que se levanta e pega a garrafa de vinho que estava sobre à mesa – “Quid est Veritas”? Isso já é questionado a um bom tempo! Dizer a verdade implica um compromisso e Sócrates, ao caminhar junto com ela, sofreu a morte. O grande filósofo foi um crítico ferrenho daqueles que afirmam tudo saber, porém nada sabem, ele foi capaz de despertar o ódio de tantos políticos, poetas, artesãos e oradores porque a verdade é que os homens fingem serem sábios. Sofreu a condenação ao revelar com precisão aquilo que os cidadãos atenienses empreendiam com força para esconder: a ignorância. Lembro-me do célebre escrito de Blaise Pascal[3]: “Não é certo que odiamos a verdade e aqueles que no-la dizem, e que gostamos que se enganem em benefício nosso, e que queremos ser estimados como se fôssemos outros e não aquilo que realmente somos?” |
- Onde deseja chegar, professor? – perguntou-lhe Gerard. |
- Imagina se houvesse um surto de verdade no mundo? Já imaginou o caos que isto traria a nós, aos hipócritas? Você disse, caro Vitor, que não somos felizes, eu acho que você está corretíssimo, não te tiro a razão. Ao fazermos um paralelo entre um enlutado e um melancólico, podemos concluir que se para um enlutado o mundo torna-se vazio e insignificante, para o melancólico o próprio “eu” torna-se insignificante. Começamos a ser atormentados quando olhamos para dentro de nós, quando enxergamos o vazio existente, quando percebemos que nossa rotina nos mantém vivos para a morte. |
- Há algumas formas de enfrentar o absurdo – continuou o professor – uma delas adquirir uma esperança metafísica, outra usufruir dos prazeres mundanos para tapar o buraco que nossa existência tem. |
- Eu prefiro acreditar que estamos aqui com um propósito, - interrompeu Gerard – e após o término de nossa missão, acredito que há um lugar preparado para nós. Eu prefiro ter essa esperança. Nossa estada aqui na terra é passageira, há um lugar melhor que isto, eu prefiro acreditar nisso. |
- Como você pode provar, meu caro, – disse Vitor – se não se pode provar então como você pode ter certeza disso? |
- Você é um tremendo de um niilista, - respondeu Gerard – se você não acredita o problema é seu – Walter toma mais um pouco de vinho. – Precisa ter mais fé para ser ateu do que para não seu ateu. Precisa-se de muita fé para acreditar que tudo isso veio do nada. Toda a ordem que há no cosmos me faz acreditar que há um Criador por trás de tudo isso. |
- Ah é? – Vitor chegou até a levantar-se - se Deus fez tudo isso, então o que ele fazia antes de criar a terra? |
- Os céus e a terra? – Pergunta Gerard. |
- Sim, os céus e a terra. |
- Pois bem. Vou lhe explicar. Esses dias atrás eu estava lendo um livro que dom Chico me emprestou[4]. Neste livro havia essa pergunta: O que Deus fazia antes de criar os céus e a terra. Pois bem, comecei a ler e descobri muitas coisas. Mas vamos lá. Quer ouvir? Então sente-se. Vou lhe falar. Mas presta bem a atenção, quem sabe assim você vai entender alguma coisa. O Bispo de Hipona tratou sobre isso. Para entender o pensamento agostiniano e mergulhar neste questionamento, devemos primeiro, entender a diferença entre tempo e eternidade. Se pensarmos que Deus, antes de criar o céu e a terra, ficou inoperante por séculos, segundo o Bispo de Hipona, esta admiração seria enganosa. Agostinho escreveu: “Com efeito, como poderiam passar esses séculos inumeráveis, se não tivessem sido feitos por ti, que és o autor e fundador de todos os séculos? E quais foram os tempos que não foram fundados por ti? E como passariam, se nunca foram”? |
- Lindas palavras. – Vitor se levanta e aplaude. Walter, estava admirado. Joana, petrificada. |
- Espero que lhe sirva de algo. – Disse Gerard mirando a Vitor. – Há, vou conhecer essa tal de Camila, quer ver se ela realmente é bonita como você está falando. Conte comigo. |
Naquele instante a chuva já havia parado e o sol começava a brilhar. Gerard se levanta e sai. Passou a tarde trabalhando na carpintaria de seu pai, havia se esquecido do seu Chico, mas não da conversa que haviam tido no dia anterior. “Só sei que nada sei”, pensara na célebre frase de Sócrates, não escondia sua ignorância e enfurecia-se com a certeza dos que se diziam sábios e que supostamente teriam a solução do problema do mundo. Terminou o dia, banhou-se e lembrou-se do parque central, queria conhecer a guria que tanto mexera com Vitor no dia anterior e movido por uma horrenda curiosidade aprontou-se para ir conhecê-la. A noite começou a esfriar, mesmo assim apressou-se para ir, quando chegou ao local, Victor não havia aparecido. Entrou em um bar, pediu uma dose de whisky e pôs-se a esperar. |
[1] Trecho de uma música da banda gaúcha Engenheiros do Hawaii. |
[2] O personagem de nome Walter lembra muito o professor e filósofo brasileiro Andrei Venturini Martins, que foi professor de filosofia, coordenador e professor do escritor do livro. O filósofo também é autor da obra “A Verdade é Insuportável”, livro que inspirou esse trecho. |
[3] Blaise Pascal (1623-1662) foi um físico, matemático, filósofo e teólogo francês. Autor da famosa frase: "O coração tem razões que a própria razão desconhece". |
[4] Trata-se do livro “Confissões” de Agostinho de Hipona. |