Antes de começar este capítulo, caro leitor, devo admitir-lhe que, ao ler a obra Tom Jones, de Henry Fielding[1], aprendi que o escritor deve fazer da história o que bem entender e que os críticos devem tratar de sua vida e não se meterem em negócios ou obras que não lhes dizem respeito. Deste modo, anuncio que a diferença de um capítulo para outro pode saltar alguns anos, mas fique tranquilo, eu avisarei. Nessa parte da história, Gerard já havia crescido e se tornado um moço capaz de beber uma cerveja. Frequentou a capela e ouviu muitas histórias bíblicas durante seu crescimento, mas agora a história começa a ter mais maturidade assim como nosso jovem moço. |
O sol nascia com seu brilho esplendido, os sabiás e bem-te-vis já cantavam suas canções diárias a fim de ajudar os transeuntes a encarar o dia de trabalho. Era outono e o frio começava a chegar. Gerard levanta-se, senta-se à mesa e toma seu café, enquanto levava a xícara de café à boca, Gerard se perguntava sobre o motivo do catolicismo e o protestantismo se dividirem tanto se o Deus que seguiam era o mesmo. “Quem poderia estar certo?” Pensava enquanto mordia o último pedaço do seu pão. |
Quando Gerard levantou-se da cadeira viu parar na frente de sua casa o Dom Chico, montado em sua carroça puxada por um cavalo marrom forte e robusto. Dom Chico, diferente do seu cavalo, era um senhor baixo e velho, aparência cansada de um senhor que beirava seus setenta anos, vivia no campo e nas manhãs preparava-se para ir à cidade entregar as garrafas de leite como de costume. Quando Gerard viu a carroça parada, correu e subiu para ajudá-lo como era costume, o velho mal podia levantar-se para bater nas portas e entregar os leites. |
- Bom dia, Dom Chico. Preparado para mais um dia de batalha? |
- Claro, meu jovem, e conto com sua ajuda porque hoje minha coluna está ardendo de dor e pretendo ficar sentado, somente a conduzir o cavalo. |
No momento em que a carroça começa a andar, Gerard pensou em compartilhar com Dom Chico as inquietações que o atormentavam, calou-se por cinco ou dez minutos tentando conter-se, mas não resistiu: |
- O senhor acredita em alguma religião? – Pergunta timidamente Gerard. |
- Acredito sim, caríssimo, sou católico e devoto. Frequentei por muitos anos o mosteiro que fica ao cume da montanha. |
- E o que o senhor aprendeu no mosteiro sobre Deus, será que ele existe de verdade? |
- Ora, ora, rapaz, falar sobre Deus nos demandaria muito tempo e na verdade, não entendo muito sobre Ele, apenas leio o evangelho e tento, com a ajuda dos monges, aprender algo e pôr em prática aquilo que está escrito. |
- Se o evangelho é um só, então por que houve muitas divisões na igreja dos santos? Não creio que seja tão difícil interpretar o que está escrito. Tento enxergar Deus em tudo, quando olho para o céu e contemplo o pôr do sol, no momento que vejo a lua brilhante que parece intentar revelar-me algum segredo, no instante que olho para as montanhas e pergunto-me como se formaram, ou até mesmo quando vejo seu cavalo que lhe obedece de forma tão simples, mas nunca parei para pensar que posso ver Deus nas escrituras. |
No momento em que o moço terminou de falar a carroça parou e Gerard teve que descer para entregar a primeira garrafa de leite. Quando a porta se abre, uma linda mulher loura, alta e magra o recebe, toma a garrafa e agradece o rapaz pela bondade. Atrás da senhora tinha uma vela acesa, um crucifixo e uma bíblia aberta, Gerard, no mesmo instante ficou petrificado. Parecia que a ideia que estava a desvendar-se o seguia para todos os lados, de volta à carroça encontra o velho adormecido. Sem querer acordá-lo, o jovem assume as rédeas pois sabia exatamente os lugares que tinham que visitar, após entregar todas as garrafas desperta o pobre senhor, que assustado, pôs-se feliz em saber que todo o trabalho já estava feito. |
- Antes de levá-lo à casa, nobre cavalheiro, preciso que me acompanhe até o alto daquela montanha porque precisamos conversar. – Disse-lhe o velho. |
Percorreram um longo caminho de terra até chegar ao destino, era aproximadamente onze da manhã e o sol não estava um pouco quente, no local havia água para o cavalo. Dom Chico apanhou uma garrafa de café que estava debaixo do seu assento, duas xícaras, ofereceu uma ao jovem que a tomou. |
- Vejo que estás ansioso, meu nobre companheiro. – disse o senhor enquanto enchia a xícara de café. – Não há dúvidas que no nosso coração sempre há uma inquietude, sempre haverá, temos que aprender a conviver com ela até o dia do nosso descanso, aliás, um santo da igreja[2] já havia falado sobre isso quando escreveu suas Confissões, ele disse: “Fizeste-nos para ti e inquieto está o nosso coração enquanto não repousa em ti”[3]. Outro filósofo[4], do século XX, este não sendo católico, elaborou a filosofia do absurdo e no fim de sua obra nos relembra o castigo de Sísifo[5], a pena posta a ele era a de empurrar uma pedra até o cume da montanha, uma vez lá em cima, a pedra descia fazendo-o repetir todo o trabalho, sucessivamente, por toda a eternidade. Ao ler esse mito, posso fazer uma analogia com o homem contemporâneo que se levanta cedo, toma seu café, vai ao seu trabalho, e no fim da tarde, bate o cartão e volta à sua casa, é lhe oferecido o jantar e após isto, deita-se para descansar. No outro dia tudo se repete, no outro também, até o dia que perde toda a sua força. O filosofo que trabalhou isso, me fez entender o absurdismo, que é a confrontação do homem com o mundo em que vive, como ele mesmo escreveu: “Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia”. Lembro-me deste escrito quando me pergunto se a vida tem ou não sentido. Quando me deito fico a pensar em Santo Agostinho e Albert Camus, imagino os dois se discutindo, um católico colocando toda a esperança de sua vida em Deus, outro, não religioso, tentando encontrar algum deleite em empurrar a pedra até o topo da montanha, mostrando que podemos encontrar prazer aqui na terra. Mas vejo que você, meu jovem, está inquieto e não está encontrando prazer algum em tudo que faz, você deve encontrar alguma esperança. |
- Pois é, meu nobre amigo – responde Gerard enquanto o velho termina de tomar seu café - a dúvida sobre o sentido da existência sempre esteve presente em meus pensamentos, me atormentaram a vida inteira, qual é o motivo de estarmos aqui? A religião tenta desvendar esse mistério, para que isso aconteça foi necessário fazer guerras, inquisições, mortes em nome de Deus. Vejo os pastores e sacerdotes dizendo o que pode e não pode, pessoas amarradas através do peso da sua consciência, líderes a criticar os niilistas por dizerem que tudo é permitido. O maior problema disso, Dom Chico, é que esse evangelho que você diz seguir, se fosse tão simples não haveria milhares de interpretações, cada um o lê com sua lente, através da sua cosmovisão, tentam colocar Jesus dentro da sua caixinha, pregam como lhe convém e as vezes me ponho a meditar e penso que dentre tantas visões ninguém esteja certo. E se ninguém estiver certo? E se os mulçumanos, Judeus, Hindus estiverem certos? A mesma convicção que você tem a respeito do evangelho os mulçumanos têm sobre o alcorão, e para ser franco, acredito que eles tenham mais convicção que o senhor. |
- Não lhe tiro a razão, e me assombra sua sinceridade. – Falou-lhe o velho com os olhos esbugalhados. |
- Mas eu não consigo imaginar que não exista alguém por trás de todo esse universo, um autor, um arquiteto. Não consigo acreditar que tudo isto veio do nada. |
Neste momento, após Dom Chico tomar todo o café que estava em sua garrafa teve fome. |
- Meu caro amigo, acho que temos que retomar essa conversa amanhã, porque já é tarde, não almocei e tenho fome. Vou deixá-lo em casa e amanhã, na mesma hora eu passo por você para entregar os leites e continuar a conversa. Gerard, por sua vez, insistiu para que a conversa continuasse: |
- Devo ser-lhe franco, dom Chico, o senhor é a única pessoa que consigo me abrir, o senhor me ouve e a conversa flui. Peço-lhe que fique e me responda uma pergunta: qual foi a contribuição que a igreja deu ao ocidente? |
- Ah, essa é fácil responder. A igreja moldou a moral do ocidente, as leis são feitas com base na escritura e fora isso, há algo muito importante que é a virtuosidade. Podemos ver Deus nas pessoas se elas exercem a virtude, Platão chegou à conclusão, após um longo debate com seu amigo Mênon[6] sobre a virtude, para Platão, a virtude nos é dada por uma disposição divina e sem participação da inteligência que ela se encontra em quem se encontra, não é por natureza, mas sim uma disposição supranatural. Certamente o Platão não conhecia o Deus que conhecemos, mas há algo que dialoga, se compararmos, há uma semelhança. As virtudes que possuímos nos é concedida unicamente por Deus. Imagina se não houvesse esse entendimento de termos fé, caridade, prudência e tantos outros atributos que correspondem uma vida bem vivida? |
- Certamente o cristão deve refletir a imagem de Cristo em si, sobre isso não tenho dúvida. Se reuníssemos todas as obras de caridade que a igreja faz no mundo seria incontável. Grandes homens nos legaram o exemplo, por isso, não lhe tiro a razão. |
A barriga de dom Chico roncava e Gerard por fim concordou em descer e ir para a casa. |
- Dom Chico, a conversa ainda não terminou. Retornaremos com esse assunto amanhã. |
- Combinado, meu caro. |
Dom Chico pegou as rédeas, gritou com o cavalo e desceram a montanha pelas estradas estreitas e de difícil acesso. Nosso herói chegou em casa sabendo que não era a primeira pessoa a ter essa inquietação e que após as experiências que tivera durante os anos anteriores e após essa conversa esteve mais certo sobre o motivo da existência, mas ainda havia uma inquietação. Comeu, tomou uma dose de whisky para acalmar sua ansiedade e foi trabalhar na carpintaria de seu pai. O dia terminou e exausto foi-se a descansar. |
[1] Henry Fielding (1707-1754) foi romancista inglês conhecido por seu humor vulgar e sua intrepidez satírica, e por criar o romance Tom Jones. |
[2] Agostinho de Hipona. |
[3] Trecho do livro “Confissões” de Agostinho de Hipona. |
[4] Albert Camus. |
[5] Trata-se da obra: “O Mito de Sísifo” de Albert Camus. |
[6] Mênon – Diálogos de Platão. |