O sentido da vida
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O sentido da vida

Uiliam da Silva Grizafis06/19/2023
10 min
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Antes de começar este capítulo, caro leitor, devo admitir-lhe que, ao ler a obra Tom Jones, de Henry Fielding[1], aprendi que o escritor deve fazer da história o que bem entender e que os críticos devem tratar de sua vida e não se meterem em negócios ou obras que não lhes dizem respeito. Deste modo, anuncio que a diferença de um capítulo para outro pode saltar alguns anos, mas fique tranquilo, eu avisarei. Nessa parte da história, Gerard já havia crescido e se tornado um moço capaz de beber uma cerveja. Frequentou a capela e ouviu muitas histórias bíblicas durante seu crescimento, mas agora a história começa a ter mais maturidade assim como nosso jovem moço.

O sol nascia com seu brilho esplendido, os sabiás e bem-te-vis já cantavam suas canções diárias a fim de ajudar os transeuntes a encarar o dia de trabalho. Era outono e o frio começava a chegar. Gerard levanta-se, senta-se à mesa e toma seu café, enquanto levava a xícara de café à boca, Gerard se perguntava sobre o motivo do catolicismo e o protestantismo se dividirem tanto se o Deus que seguiam era o mesmo. “Quem poderia estar certo?” Pensava enquanto mordia o último pedaço do seu pão.

Quando Gerard levantou-se da cadeira viu parar na frente de sua casa o Dom Chico, montado em sua carroça puxada por um cavalo marrom forte e robusto. Dom Chico, diferente do seu cavalo, era um senhor baixo e velho, aparência cansada de um senhor que beirava seus setenta anos, vivia no campo e nas manhãs preparava-se para ir à cidade entregar as garrafas de leite como de costume. Quando Gerard viu a carroça parada, correu e subiu para ajudá-lo como era costume, o velho mal podia levantar-se para bater nas portas e entregar os leites.

 - Bom dia, Dom Chico. Preparado para mais um dia de batalha?

- Claro, meu jovem, e conto com sua ajuda porque hoje minha coluna está ardendo de dor e pretendo ficar sentado, somente a conduzir o cavalo.

No momento em que a carroça começa a andar, Gerard pensou em compartilhar com Dom Chico as inquietações que o atormentavam, calou-se por cinco ou dez minutos tentando conter-se, mas não resistiu:

- O senhor acredita em alguma religião? – Pergunta timidamente Gerard.

- Acredito sim, caríssimo, sou católico e devoto. Frequentei por muitos anos o mosteiro que fica ao cume da montanha.

- E o que o senhor aprendeu no mosteiro sobre Deus, será que ele existe de verdade?

- Ora, ora, rapaz, falar sobre Deus nos demandaria muito tempo e na verdade, não entendo muito sobre Ele, apenas leio o evangelho e tento, com a ajuda dos monges, aprender algo e pôr em prática aquilo que está escrito.

- Se o evangelho é um só, então por que houve muitas divisões na igreja dos santos? Não creio que seja tão difícil interpretar o que está escrito. Tento enxergar Deus em tudo, quando olho para o céu e contemplo o pôr do sol, no momento que vejo a lua brilhante que parece intentar revelar-me algum segredo, no instante que olho para as montanhas e pergunto-me como se formaram, ou até mesmo quando vejo seu cavalo que lhe obedece de forma tão simples, mas nunca parei para pensar que posso ver Deus nas escrituras.

No momento em que o moço terminou de falar a carroça parou e Gerard teve que descer para entregar a primeira garrafa de leite. Quando a porta se abre, uma linda mulher loura, alta e magra o recebe, toma a garrafa e agradece o rapaz pela bondade. Atrás da senhora tinha uma vela acesa, um crucifixo e uma bíblia aberta, Gerard, no mesmo instante ficou petrificado. Parecia que a ideia que estava a desvendar-se o seguia para todos os lados, de volta à carroça encontra o velho adormecido. Sem querer acordá-lo, o jovem assume as rédeas pois sabia exatamente os lugares que tinham que visitar, após entregar todas as garrafas desperta o pobre senhor, que assustado, pôs-se feliz em saber que todo o trabalho já estava feito.

- Antes de levá-lo à casa, nobre cavalheiro, preciso que me acompanhe até o alto daquela montanha porque precisamos conversar. – Disse-lhe o velho.

Percorreram um longo caminho de terra até chegar ao destino, era aproximadamente onze da manhã e o sol não estava um pouco quente, no local havia água para o cavalo. Dom Chico apanhou uma garrafa de café que estava debaixo do seu assento, duas xícaras, ofereceu uma ao jovem que a tomou.

- Vejo que estás ansioso, meu nobre companheiro. – disse o senhor enquanto enchia a xícara de café. – Não há dúvidas que no nosso coração sempre há uma inquietude, sempre haverá, temos que aprender a conviver com ela até o dia do nosso descanso, aliás, um santo da igreja[2] já havia falado sobre isso quando escreveu suas Confissões, ele disse: “Fizeste-nos para ti e inquieto está o nosso coração enquanto não repousa em ti”[3]. Outro filósofo[4], do século XX, este não sendo católico, elaborou a filosofia do absurdo e no fim de sua obra nos relembra o castigo de Sísifo[5], a pena posta a ele era a de empurrar uma pedra até o cume da montanha, uma vez lá em cima, a pedra descia fazendo-o repetir todo o trabalho, sucessivamente, por toda a eternidade. Ao ler esse mito, posso fazer uma analogia com o homem contemporâneo que se levanta cedo, toma seu café, vai ao seu trabalho, e no fim da tarde, bate o cartão e volta à sua casa, é lhe oferecido o jantar e após isto, deita-se para descansar. No outro dia tudo se repete, no outro também, até o dia que perde toda a sua força. O filosofo que trabalhou isso, me fez entender o absurdismo, que é a confrontação do homem com o mundo em que vive, como ele mesmo escreveu: “Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia”. Lembro-me deste escrito quando me pergunto se a vida tem ou não sentido. Quando me deito fico a pensar em Santo Agostinho e Albert Camus, imagino os dois se discutindo, um católico colocando toda a esperança de sua vida em Deus, outro, não religioso, tentando encontrar algum deleite em empurrar a pedra até o topo da montanha, mostrando que podemos encontrar prazer aqui na terra. Mas vejo que você, meu jovem, está inquieto e não está encontrando prazer algum em tudo que faz, você deve encontrar alguma esperança.

- Pois é, meu nobre amigo – responde Gerard enquanto o velho termina de tomar seu café - a dúvida sobre o sentido da existência sempre esteve presente em meus pensamentos, me atormentaram a vida inteira, qual é o motivo de estarmos aqui? A religião tenta desvendar esse mistério, para que isso aconteça foi necessário fazer guerras, inquisições, mortes em nome de Deus. Vejo os pastores e sacerdotes dizendo o que pode e não pode, pessoas amarradas através do peso da sua consciência, líderes a criticar os niilistas por dizerem que tudo é permitido. O maior problema disso, Dom Chico, é que esse evangelho que você diz seguir, se fosse tão simples não haveria milhares de interpretações, cada um o lê com sua lente, através da sua cosmovisão, tentam colocar Jesus dentro da sua caixinha, pregam como lhe convém e as vezes me ponho a meditar e penso que dentre tantas visões ninguém esteja certo. E se ninguém estiver certo? E se os mulçumanos, Judeus, Hindus estiverem certos? A mesma convicção que você tem a respeito do evangelho os mulçumanos têm sobre o alcorão, e para ser franco, acredito que eles tenham mais convicção que o senhor.

- Não lhe tiro a razão, e me assombra sua sinceridade. – Falou-lhe o velho com os olhos esbugalhados.

- Mas eu não consigo imaginar que não exista alguém por trás de todo esse universo, um autor, um arquiteto. Não consigo acreditar que tudo isto veio do nada.

Neste momento, após Dom Chico tomar todo o café que estava em sua garrafa teve fome.

- Meu caro amigo, acho que temos que retomar essa conversa amanhã, porque já é tarde, não almocei e tenho fome. Vou deixá-lo em casa e amanhã, na mesma hora eu passo por você para entregar os leites e continuar a conversa. Gerard, por sua vez, insistiu para que a conversa continuasse:

- Devo ser-lhe franco, dom Chico, o senhor é a única pessoa que consigo me abrir, o senhor me ouve e a conversa flui. Peço-lhe que fique e me responda uma pergunta: qual foi a contribuição que a igreja deu ao ocidente?

- Ah, essa é fácil responder. A igreja moldou a moral do ocidente, as leis são feitas com base na escritura e fora isso, há algo muito importante que é a virtuosidade. Podemos ver Deus nas pessoas se elas exercem a virtude, Platão chegou à conclusão, após um longo debate com seu amigo Mênon[6] sobre a virtude, para Platão, a virtude nos é dada por uma disposição divina e sem participação da inteligência que ela se encontra em quem se encontra, não é por natureza, mas sim uma disposição supranatural. Certamente o Platão não conhecia o Deus que conhecemos, mas há algo que dialoga, se compararmos, há uma semelhança. As virtudes que possuímos nos é concedida unicamente por Deus. Imagina se não houvesse esse entendimento de termos fé, caridade, prudência e tantos outros atributos que correspondem uma vida bem vivida?

- Certamente o cristão deve refletir a imagem de Cristo em si, sobre isso não tenho dúvida. Se reuníssemos todas as obras de caridade que a igreja faz no mundo seria incontável. Grandes homens nos legaram o exemplo, por isso, não lhe tiro a razão.

A barriga de dom Chico roncava e Gerard por fim concordou em descer e ir para a casa.

- Dom Chico, a conversa ainda não terminou. Retornaremos com esse assunto amanhã.

- Combinado, meu caro.

Dom Chico pegou as rédeas, gritou com o cavalo e desceram a montanha pelas estradas estreitas e de difícil acesso. Nosso herói chegou em casa sabendo que não era a primeira pessoa a ter essa inquietação e que após as experiências que tivera durante os anos anteriores e após essa conversa esteve mais certo sobre o motivo da existência, mas ainda havia uma inquietação. Comeu, tomou uma dose de whisky para acalmar sua ansiedade e foi trabalhar na carpintaria de seu pai. O dia terminou e exausto foi-se a descansar. 



[1] Henry Fielding (1707-1754) foi romancista inglês conhecido por seu humor vulgar e sua intrepidez satírica, e por criar o romance Tom Jones.

[2] Agostinho de Hipona.

[3] Trecho do livro “Confissões” de Agostinho de Hipona.

[4] Albert Camus.

[5] Trata-se da obra: “O Mito de Sísifo” de Albert Camus.

[6] Mênon – Diálogos de Platão.

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